03 Setembro 2025
"As Igrejas dos nossos dias, no entanto, vivem em uma sociedade totalmente alheia às narrativas bíblicas, e muito menos às elucubrações da teologia dos primeiros séculos. As liturgias usam com bastante tranquilidade as antigas formulações, como sinal da continuidade da Igreja ao longo do tempo; se aqueles que as recitam entendem seu significado, no entanto, é mais que questionável", escreve Fúlvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado por Confronti, setembro-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
O Concílio de Niceia (325 d.C.), 1700 anos após sua convocação, marca uma virada teológica: a fé cristã proclama a unidade substancial entre Jesus e Deus, sancionando assim uma distinção irreversível do judaísmo e das tradições religiosas do mundo antigo. Uma questão ainda relevante, que desafia as Igrejas hoje sobre a linguagem da fé e da sua relação com a história.
Segundo uma famosa e feliz formulação do teólogo judeu Shalom Ben Chorin, a fé de Jesus une judeus e cristãos, a fé em Jesus os divide. A fé de Jesus é, naturalmente, aquela do povo de Israel; a fé em Jesus é aquela que vê no homem de Nazaré a revelação definitiva do rosto de Deus e do seu desígnio para a criação e, dentro dela, para a humanidade.
O Concílio Ecumênico de Niceia, em 325, cujo 1700º aniversário será celebrado em 2025, pode talvez ser considerado o passo decisivo pelo qual a comunidade cristã esclareceu a natureza única, desprovida de analogias, da relação entre Jesus e o Deus de Israel.
Na verdade, a relação entre a Igreja e Israel não está no primeiro plano na problemática abordada em Niceia: ou melhor, não está direta e explicitamente. A Igreja do século IV há muito se entende como uma realidade religiosa distinta do judaísmo e é percebida como tal por este último.
O problema fundamental do Concílio, em vez disso, reside totalmente dentro do universo simbólico cristão e pode ser resumido da seguinte forma: tendo estabelecido, com o Novo Testamento, que a relação com Deus passa pela pessoa de Jesus, na qual (para usar as palavras do quarto evangelista) se encarna o "Verbo" de Deus, como devemos pensar esse Verbo? A proposta do sacerdote Ário tem o mérito da clareza: o Verbo deve ser considerado a primeira entre as criaturas, uma realidade chamada a ser pelo Deus único, antes que o mundo existisse, e que constitui o projeto de toda a criação. Assim, o rigoroso monoteísmo, compartilhado com Israel parece confirmado, assim como a transcendência radical de Deus, que entra em relação com a realidade somente pela mediação do "Verbo".
A tese que emerge vitoriosa do Concílio, contudo, é bem diferente. Entre as palavras-chave da posição nicena, a mais famosa é provavelmente um adjetivo que em nosso idioma pode ser traduzido como "consubstancial": o Verbo é da mesma "substância" que aquele que os cristãos chamam de Pai; isto é, em termos mais próximos dos nossos, é Deus no mesmo sentido em que o é o Pai.
A objeção é óbvia: se o Pai é Deus e o é também o Verbo, então existem dois "Deuses" (no mínimo: a situação, como sabemos, se tornará ainda mais complicada).
Levará muito tempo para que a teologia, por meio de equilíbrios terminológicos bastante ousados, elabore o que se tornará a doutrina trinitária, isto é, uma compreensão de Deus como unidade diferenciada e não como mônada.
As Igrejas dos nossos dias, no entanto, vivem em uma sociedade totalmente alheia às narrativas bíblicas, e muito menos às elucubrações da teologia dos primeiros séculos. As liturgias usam com bastante tranquilidade as antigas formulações, como sinal da continuidade da Igreja ao longo do tempo; se aqueles que as recitam entendem seu significado, no entanto, é mais que questionável.
Muitos e muitas se perguntam se seria oportuno que as comunidades de hoje expressassem sua fé com palavras que sentem e entendem. Pessoalmente, considero isso uma exigência legítima: como dizia Tomás de Aquino, que não era um relativista pós-moderno, a fé se dirige a Deus e não às formulações sobre Deus, o que autoriza as diversas gerações à mesma ousadia expressiva usada por nossos pais e mães na fé. Em Niceia, não foi indicado um ponto de chegada (como, aliás, demonstra a história subsequente), mas sim um ponto sem retorno: segundo a Igreja Cristã, o nome do Deus três vezes santo, do Deus de Israel, não pode de forma alguma ser separado da história de Jesus. A afirmação de que uma história humana é crucial para a relação com aquele que é eterno é paradoxal para as tradições religiosas do mundo antigo e além, enquanto Niceia a afirma irreversivelmente.
Por essa razão, a afirmação de Shalom Ben Chorin com a qual começamos mantém sua validade. As modalidades pelas quais a Igreja pode, antes de tudo, viver, e depois também expressar, a relação entre Deus e Jesus não podem ser confinadas pela Igreja ao seu passado, mas constituem o seu futuro.
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