28 Agosto 2025
Retomada de investimentos nacionais focou em pequenas geradoras, enquanto associação do setor acusou ongs de discurso “míope” contra usinas.
A reportagem é de Aldem Bourscheit, publicada por ((o))eco, 27-08-2025.
O recente leilão de energia foi comemorado pelo governo como avanço econômico e promessa de redução de tarifas. Contudo, ele reacendeu o debate quanto aos impactos da geração hidrelétrica, sobretudo em biomas frágeis como o Pantanal, e sobre até que ponto esse modelo resistirá à crise do clima.
O pregão de 22 de agosto foi um dos maiores da recente política energética nacional. Informações do governo apontam que os 65 projetos arrematados trarão R$ 5,5 bilhões em investimentos e contratos de R$ 26,6 bilhões, com a promessa de reduzir o valor da energia paga pelos consumidores.
Todavia, as comemorações oficiais e do setor privado receberam críticas pelos riscos climáticos e impactos socioambientais da multiplicação de usinas de pequeno porte no país, que somaram 92% do certame, informou Sílvia Zanatta, especialista de Conservação da ong WWF-Brasil.
Conforme um estudo do WWF-Brasil, a instalação de novas pequenas hidrelétricas na parte alta da Bacia do Alto Paraguai pode comprometer o fluxo de água ao bioma e causar prejuízos de R$ 7 bilhões, com desempenho econômico inferior ao de fontes renováveis e perdas em pesca, turismo e serviços ecossistêmicos.
A ong lista 58 hidrelétricas operando na região – sobretudo pequenas (PCHs) e centrais geradoras (CGHs), ainda menores que as primeiras –, enquanto outras 65 são planejadas. “Qualquer uma a mais será uma perda muito grande para um território de tamanha sensibilidade”, advertiu Zanatta.
No último leilão, 8 pequenas usinas foram arrematadas nos estados pantaneiros do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul. Ainda não há confirmação se estão na BAP. As CGHs têm autorizações simples, mas as demais precisarão de licenciamento. A energia de todas chegará ao país via Sistema Interligado Nacional (SIN).
“Nosso receio é que, com o tempo, o licenciamento fique cada vez ainda mais flexível”, destacou Zanatta. Como ((o))eco vem mostrando, o Congresso aprovou regras mais flexíveis e rápidas para esse procedimento, enfraquecendo salvaguardas socioambientais históricas.
O licenciamento isolado de usinas fragmenta a análise e subestima seus impactos socioambientais acumulados, mesmo existindo instrumentos legais como a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) que, mesmo previstos em lei, raramente são aplicados.
“Uma resolução de 2020 da Aneel permite licenças rápidas e sem estudos de impacto completos para CGHs, acelerando sua entrada nos territórios”, lembrou Cristian Felipe Rodrigues Pereira, geógrafo e auxiliar de Indigenismo no Programa de Direitos Indígenas da Operação Amazônia Nativa (Opan).
“Primeiro os empreendedores se instalam com projetos menores, criam relações locais e, em seguida, avançam para empreendimentos maiores”, ressaltou. “O discurso de baixo impacto é uma estratégia para viabilizar a expansão do setor”.
Pequenas usinas, grandes prejuízos
Exemplos de impactos das usinas são visíveis. Em Pedro Gomes (MS), a PCH Cipó pode desviar até 80% do fluxo da Cachoeira Água Branca, ameaçando turismo e paisagens naturais. Mais ao norte, 6 pequenas geradoras no Rio Cabaçal arriscam uma das últimas bacias sem barramentos nas nascentes do Pantanal.
Em Mato Grosso, rios antes usados para turismo e esportes foram barrados em série, produzindo uma “Belo Monte disfarçada”, com impactos ambientais e sociais equivalentes, mas de menor geração de energia. Já na bacia do Rio Juruena, o povo Enawene sofre para manter rituais tradicionais pela escassez de peixes.
“Empresas chegaram a fornecer pescado como compensação, mas essa prática não substitui a perda cultural e ambiental do acesso direto ao rio”, destacou Pereira.
Além disso, levantamentos do MapBiomas indicam que quase metade das áreas de preservação permanente na parte mais alta da Bacia do Alto Paraguai já foi desmatada, o que reduz o reabastecimento de rios e aquíferos e torna a região mais frágil devido à crise climática.
Outro destaque da análise do WWF-Brasil foi mostrar que seria possível gerar a mesma energia projetada pelas usinas que foram à leilão com um mix de fontes renováveis que não dependem de água, no caso eólica, solar, biomassa e biogás.
Isso seria estratégico diante dos impactos da alteração do clima, como menos chuvas e água nos cursos d’água regionais, o que põe em xeque a viabilidade dos investimentos contratados e da própria geração de energia nos anos que vêm.
“Os contratos desse leilão são de 20 anos. E, se daqui há 15 anos, não tivermos mais água suficiente para gerar eletricidade? Como fica a contratação dessa energia?”, questionou Zanatta.
Nesse sentido, análises da Agência Nacional de Águas indicam que a vazão dos rios da BAP pode cair até 16% até 2055. “Estudos mostram que o Pantanal perdeu cerca de 61% da sua superfície de água em relação às médias anuais”, lembrou a especialista.
As críticas às pequenas usinas extrapolam o campo ambiental. Segundo Zanatta, elas sobrevivem graças a grandes subsídios. “A sociedade paga para viabilizar empreendimentos que geram prejuízos à coletividade”. Além disso, não ajudam a regular o sistema elétrico. “É falsa essa ideia de que são ‘baterias’, porque não acumulam água nem operam como grandes hidrelétricas”.
Investimentos hidrelétricos vitaminados
No último leilão, a maior parte da energia ofertada não foi contratada, indicando novos certames nos próximos meses e ampliando o debate sobre o futuro da matriz energética brasileira diante da crise climática e dos riscos ao Pantanal e outros biomas, em pleno ano da COP30.
Apesar das críticas, o governo sustenta que as pequenas usinas são indispensáveis. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, afirmou que elas causam menor impacto ambiental e complementam fontes como solar e eólica. “Elas estão espalhadas no território nacional, reduzindo a necessidade de investimentos em grandes corredores de transmissão”, avaliou.
Por sua vez, Pereira lembrou que essa agenda foi reforçada em programas como Luz para Todos e PAC, que também reforçam o agro, ferrovias e mineração. “As PCHs estão nessa ‘esteira’ de desenvolvimento”, disse. “O objetivo é extrair mais valor dos territórios, garantindo energia para produzir e exportar o excedente”.
Em sintonia com Silveira, a presidente da Associação Brasileira de PCHs e CGHs (ABRAPCH), Alessandra Torres, destacou a vocação hídrica do país. Segundo ela, há 13 GW inventariados para PCHs, que atrairiam R$ 100 bilhões em investimentos, gerariam 1 milhão de empregos e dobrariam a geração firme.
Mas, segundo ela, esses investimentos não avançam devido a um “discurso ambientalista míope” contrário às hidrelétricas. “As usinas de todos os portes devem integrar um plano de governo e de país”, avaliou. “O Brasil precisa ter a coragem de avançar nesse caminho, para assegurar seu desenvolvimento”.
Por outro lado, Pereira lembrou que o licenciamento de muitas usinas perto de terras indígenas e comunidades tradicionais é realmente mais complexo. “O processo, considerado moroso, afastou investidores e reduziu o número de projetos em operação”.
Torres ressaltou ainda que, por se tratar de um bem da União, o uso da água impõe a obrigação de se mitigar intensamente os impactos ambientais, garantindo em contrapartida “desenvolvimento, segurança energética, flexibilidade e tarifas mais baixas”.
No entanto, ambientalistas e cientistas argumentam que os custos ambientais e sociais superam os benefícios prometidos pelas pequenas hidrelétricas. Por isso, defendem sua exclusão dos planos de expansão na Bacia do Alto Paraguai e pedem incentivos a fontes realmente sustentáveis.
“Pesquisas mostram que o Brasil já atingiu seu potencial necessário de geração de energia. Mesmo assim, novos projetos avançam, muito mais ligados a interesses do agronegócio e da mineração do que a necessidades reais dos brasileiros”, destacou Pereira.
Diante desse impasse, o Brasil não deveria restringir suas escolhas energéticas à lógica de curto prazo. Afinal, a crise climática exige conciliar viabilidade econômica com a proteção ambiental e dos direitos das comunidades tradicionais e indígenas.
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