23 Agosto 2025
"De fato, a elevada taxa de votos nulos sugere que os cidadãos estão insatisfeitos com as opções democráticas disponíveis. Aqueles encarregados de proteger a democracia boliviana fariam bem em levar esse sinal a sério".
O artigo é de Mollie J. Cohen, publicado por The Conversation, 18-08-2025.
Mollie J. Cohen é professor de Ciência Política, Universidade Purdue.
Pela primeira vez desde o retorno da democracia em 1982, a eleição presidencial na Bolívia irá para o segundo turno, depois que nenhum candidato conseguiu a maioria absoluta exigida no primeiro turno, realizado em 17 de agosto de 2025.
A escolha que os bolivianos enfrentam agora significa que o país deverá eleger um candidato não alinhado à esquerda pela primeira vez em uma geração. Em outubro, a disputa será entre o senador de centro-direita Rodrigo Paz Pereira, que liderou o primeiro turno com aproximadamente 32% dos votos válidos, e o ex-presidente interino de direita Jorge Quiroga, que obteve cerca de 27%.
Como muitos previram, a esquerda sofreu uma derrota contundente: o candidato mais bem colocado desse campo, Andrónico Rodríguez, alcançou apenas cerca de 8% dos votos válidos.
De fato, o desempenho da esquerda foi tão fraco que sua votação ficou abaixo do número de votos inválidos. Mais de 19% de todas as cédulas foram anuladas, e outras 2,5% foram deixadas em branco. O número de votos inválidos quadruplicou em relação às eleições presidenciais entre 2006 e 2020, quando apenas cerca de 5% das cédulas eram anuladas.
Os votos inválidos são aqueles deixados em branco ou preenchidos de forma incorreta — “nulos” ou “anulados” — de modo que a intenção do eleitor não fica clara. Embora sejam contabilizados, não entram no cálculo oficial da apuração. Mas, como documento em meu livro de 2024, None of the Above, votos brancos e nulos também constituem uma das ferramentas de protesto mais utilizadas nas democracias latino-americanas. Todos os anos, milhões de eleitores recorrem a essa prática para expressar sua frustração com os candidatos disponíveis, ao mesmo tempo em que reafirmam seu compromisso com a democracia e com o processo eleitoral.
No caso da Bolívia, acredito que o aumento dos votos inválidos seja, ao mesmo tempo, sintoma de uma insatisfação generalizada com o status quo político e econômico e sinal de um apoio persistente — embora não majoritário — ao divisivo ex-presidente Evo Morales.
A eleição presidencial boliviana ocorreu em meio a uma dupla crise — econômica e política. Assim como muitos de seus vizinhos, a Bolívia viveu um boom econômico no início do século XXI, impulsionado, nesse caso, pela exportação de lítio e gás natural. No entanto, esse ciclo de crescimento deu lugar à recessão na década de 2010, quando os preços globais das commodities despencaram. Com sua moeda atrelada ao dólar norte-americano e grande dependência das exportações de gás, a economia boliviana sofreu duros impactos.
A situação econômica do país segue delicada. A dívida pública disparou e atingiu 95% do PIB em 2024. Além disso, há uma escassez generalizada de combustíveis; queda nas reservas internacionais, o que torna provável uma desvalorização ainda maior da moeda nacional; e uma taxa de inflação anual crescente, que em julho alcançou 24%.
Candidatos presidenciais de diferentes espectros políticos prometeram adotar medidas de austeridade econômica, como o fim dos populares subsídios aos combustíveis.
Esse movimento à direita também reflete divisões cada vez maiores dentro da esquerda boliviana, centradas em torno de Evo Morales — ex-líder sindical e primeiro presidente indígena em um país em que cerca de metade da população é de origem nativa, não europeia.
A vitória de Morales em 2006 foi celebrada, à época, como um triunfo da democracia boliviana. Seu governo reduziu significativamente a taxa de pobreza e ampliou a classe média do país. Porém, críticos argumentam que Morales também degradou a democracia, por exemplo, ao influenciar o Judiciário e ignorar limites de reeleição. Seu período no poder terminou em meio a denúncias de fraude nas eleições de 2019, que ele sempre negou. Pouco depois, Morales deixou o país, retornando em 2020, quando seu aliado político e ex-protegido, Luis Arce, assumiu a presidência.
Após ver sua popularidade despencar durante o mandato, Arce optou por não concorrer desta vez. Já o Tribunal Constitucional, citando os limites de reeleição, barrou Morales de disputar um quarto mandato presidencial. Apesar disso, ele continua sendo uma força política relevante no país. Recentemente, as disputas internas entre Morales, Arce e outros candidatos de esquerda dificultaram a aprovação de leis necessárias para enfrentar a crise econômica atual.
Essas brigas internas fragmentaram a esquerda boliviana, deixando os apoiadores de Morales sem um candidato viável.
No fim de julho, o ex-presidente começou a fazer campanha ativa em favor do voto inválido.
Campanhas que incentivam o voto em branco ou nulo em eleições presidenciais não são incomuns: movimentos semelhantes ocorreram em mais de 30% das eleições presidenciais latino-americanas durante a década de 2010. Na verdade, quase todos os países da região vivenciaram pelo menos uma campanha pelo voto inválido em disputas presidenciais desde 1980.
E, como constatei em minhas pesquisas, a maioria dessas campanhas pelo voto nulo se apresenta de forma consciente como defensora de valores democráticos. Os militantes protestam contra a recorrente ineficiência da política democrática, contra a corrupção de altos dirigentes ou contra tentativas explícitas de manipular eleições.
A campanha boliviana pelo voto inválido em 2025 ecoa, em certa medida, esses esforços anteriores. Na visão de Morales, os limites de reeleição feriram seu direito fundamental de concorrer e o direito de seus apoiadores de escolher o candidato de sua preferência. A anulação em massa das cédulas seria, portanto, uma forma de enviar um recado contundente às autoridades atuais, exigindo que Morales tivesse novamente o direito de disputar a presidência.
Mas a campanha de Morales também enfrentou obstáculos
A iniciativa de Morales encontrou dificuldades semelhantes às que costumam enfraquecer campanhas pelo voto inválido. Esse tipo de campanha, em geral, é impopular entre o eleitorado — e torna-se ainda menos popular quando liderada por políticos que se beneficiariam diretamente do aumento de votos nulos. Morales era justamente esse caso. Um índice maior de votos inválidos demonstraria sua capacidade de mobilizar a população e ampliar sua influência política. Ele mesmo pareceu admitir isso ao declarar, em um comício recente, que teria “vencido as eleições” se o voto nulo chegasse a 25%.
Nesse sentido, Morales difere da maioria dos defensores do voto nulo. Ele foi a figura central da política boliviana por quase 20 anos, com um histórico que combina períodos de forte desempenho econômico e episódios de enfraquecimento da democracia e do Estado de direito. O fato de quase 1 em cada 5 bolivianos ter anulado seu voto atesta sua popularidade e influência ainda persistentes.
Ainda assim, seria um erro concluir que o aumento dos votos nulos representa um apoio maciço a Morales, como ele alega. Pesquisas realizadas antes da eleição já indicavam que os bolivianos pretendiam anular ou deixar em branco seus votos em proporções mais altas, muito antes de Morales iniciar sua campanha. Mais provável é que a campanha tenha canalizado um sentimento de rejeição pré-existente aos candidatos, ao mesmo tempo em que drenou parte do apoio a alternativas de esquerda.
Além disso, embora a taxa de votos nulos tenha sido alta, Morales não alcançou seus objetivos: o voto inválido não superou os candidatos que foram ao segundo turno, nem chegou aos 25%. Apesar de Morales sustentar que a população boliviana “votou, mas não escolheu”, os resultados mostram o contrário: a maioria dos eleitores fez uma escolha — e a maior parte votou em candidatos de direita. Por esse critério, Morales já não detém apoio majoritário na Bolívia.
Isso, no entanto, não significa que o número relativamente alto de votos inválidos deva ser ignorado. Mais de 1 milhão de bolivianos usaram suas cédulas para enviar um recado à classe política. Agora, cabe às lideranças responder, buscando reconstruir a confiança desses eleitores.
Independentemente de quem vencer o segundo turno em outubro de 2025, a sociedade boliviana provavelmente continuará marcada pelas divisões sociais, políticas e econômicas que vêm se arrastando há anos.
De fato, a elevada taxa de votos nulos sugere que os cidadãos estão insatisfeitos com as opções democráticas disponíveis. Aqueles encarregados de proteger a democracia boliviana fariam bem em levar esse sinal a sério.
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