14 Agosto 2025
Parlamentares e lideranças pedem retirada de proposta enviada em regime de urgência por Eduardo Leite e que doa área onde vivem indígenas para construção de centro tecnológico
A reportagem é de César Fraga, publicada por ExtraClasse, 13-08-2025.
Cerca de 50 indígenas Mbya Guarani participaram, na noite de terça-feira, 12, de uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (ALRS). O encontro, promovido pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) e conduzido pelo deputado Adão Pretto Filho (PT), reuniu também as deputadas Stela Farias (PT) e Luciana Genro (PSOL), que defenderam maior mobilização e pressão popular para barrar o Projeto de Lei (PL) 280/2025.
O texto, enviado em regime de urgência pelo governador Eduardo Leite (PSD), autoriza a doação de 88 hectares da área da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro) à Prefeitura de Viamão. O município pretende repassar o terreno à iniciativa privada para a construção de galpões logísticos.
A proposta ameaça de remoção 57 famílias Mbya Guarani que vivem no local, onde mantêm moradias, escola, abastecimento de água e atendimento de saúde pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). O projeto também ignora um acordo firmado entre os governos estadual e federal que garante a permanência da comunidade, com abatimento do valor do terreno na dívida do Estado com a União.
O Cacique da comunidade Mbya Guarani Nhe engatu, Eloir de Oliveira, relatou o histórico de ocupação da área pela comunidade, explicando o significado de retomada de território ancestral para os povos originários. Disse que estranha a urgência da tramitação do projeto uma vez que depois de juiz federal indeferir o pedido de reintegração de posso pelo governo estadual, o processo estava indo para conciliação, para o diálogo com o governo estadual. Observou que a defesa das comunidades indígenas se manifestou e o governo do estado pediu prazos e não cumpriu, sendo que o PL 280/2025 foi protocolado com pedido de urgência nesse mesmo período. Ele pediu a retirada do projeto da pauta da Assembleia, e avisou que haverá resistência.
O Cacique apontou a incoerência do governador Eduardo Leite em agredir os direitos dos povos originários, recusando-lhes a área, quando designou comissão que atua para a organização das comemorações dos 400 anos das Reduções Jesuíticas Guarani. O próprio Cacique Eloir é membro dessa comissão, através do Conselho de Articulação do Povo Guarani. Ele acompanha o desenrolar das comemorações pelas Reduções Jesuíticas Guaranis “e nesse meio tempo a minha aldeia está sendo atacada em Viamão”.
O titular do 14º Ofício da Procuradoria da República no RS (MPF), Ricardo Gralha, manifestou preocupação com os desdobramentos dessa situação uma vez que a postura do governo do estado repete o padrão de eliminação dos indígenas de seus territórios para a “colonização”. Referindo o processo histórico de ocupação de terras no país, afirmou que “segue o propósito de desterritorialização dos indígenas”, uma vez que a comunidade buscou uma área sem conflito e imediatamente procurou o estado para iniciar a negociação.
Informou que existe Termo de Cooperação Técnica entre o estado do RS e a União com a entrega pelo estado das terras onde estão os indígenas em troca do abatimento da divida com a União, ou a entrega de imóveis da União para o estado. Além disso há tratativas judiciais, como a Ação de Reintegração de Posse ajuizada pelo estado em que a Justiça Federal no RS indeferiu a liminar.
Afirmou que a proteção processória deveria ser destinada aos indígenas, e dessa decisão houve recurso e o TRF da 4ª Região disse que a proteção processória seria conferida aos indígenas. Classificou de “situação desconfortável, vermos que enquanto essas tratativas estavam sendo estabelecidas a área foi objeto de projeto de lei com pedido de projeto de lei para doação ao município de Viamão, com o propósito de criação de galpões logísticos para distribuição de mercadorias”.
O procurador observou que a área prevista no PL 280, de 88,8 hectares que serão doados ao município de Viamão, abrange o espaço ocupado pela comunidade. “O MPF recomendou ao estado que se abstivesse de atos destinados à alienação da área em Viamão e levamos a informação ao processo judicial, uma vez que havia negociação, e houve esse comportamento contraditório do governo do estado”, observou. “Preocupa também o fato de que o estado do, quando provocado pelo juiz a prestar informações, pediu prazo de 60 dias mas pediu à ALRS um regime de urgência que expira em 27 de agosto”, e questionou: “Se não informou o judiciário como pode pedir à ALRS que participe desse ato de retirada dos indígenas de sua área”.
Pela Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública, o Defensor Rodrigo de Medeiros defendeu o diálogo para a busca de entendimento, possibilidade que o governo afastou ao protocolar o projeto. Informou que a comunidade indígena recebe acompanhamento do Núcleo Especializado da DP, como órgão de interlocução, para a assistência social e as demandas da escola instalada na área, conforme foi recomendação recebida da Defensoria Pública da União.
As deputadas Stela Farias (PT) e Luciana Genro (PSOL) também acompanham a gravidade da situação que ameaça o grupo guarani. Farias adiantou que a Federação PT/PCdoB e o PSOL articulam contato com o PDT, uma vez que o secretário da Cultura, Eduardo Loureiro, é responsável pelas comemorações dos 400 anos das Reduções Jesuíticas Guarani. Outras ações envolvem o MPF e articulação pela retirada do projeto da Assembleia.
Genro também denunciou a violação dos direitos dos povos originários e relatou ações junto à Câmara Federal, através da deputada Fernanda Melchiona (PSOL), assim como junto ao Ministério dos Povos Indígenas.
Da Comissão Indígena do Conselho Estadual dos DH, Silvio Jardim recomendou uma mesa de negociação com o município de Viamão, para a destinação de outra área para alojamento do galpão logístico. Um dos participantes sugeriu o deslocamento do galpão para o Distrito Industrial de Viamão.
Seguiram-se manifestações do presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, Júlio Alt, e de ativistas que atuam junto à comunidade indígena em Viamão.
Nos encaminhamentos, a CCDH vai solicitar a imediata suspensão de qualquer ação de remoção das famílias; enviará ofício ao governo do estado e à secretaria de Segurança Pública para que não seja efetivada ação de despejo ou remoção forçada até a conclusão do processo de análise jurídica da situação fundiária; audiência com o Ministério da Justiça e dos Povos Indígenas para tratar da situação fundiária da área em questão; ao MPF, reforçar a necessidade de Ação Civil Púbica para garantir os direitos Constitucionais da comunidade indígena; e mobilização da sociedade civil.
O grupo de jovens indígenas que foi impedido de fazer apresentação musical no plenário, no período da tarde, promoveu a manifestação musical no encerramento da audiência pública, com as danças e sons identitários dos povos originários.
Área para galpões logísticos
O PL 280/2025, autoriza o Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul a doa imóvel ao Município de Viamão, uma área em torno de 88,80 hectares, dos 148,80 hectares localizados na Estrada Capitão Gentil machado de Godoy, s/n°, cadastrado no Sistema de Gestão Patrimonial de Imóveis do Estado – GPE, e matriculado no Registro de Imóveis da Comarca de Viamão. O interesse da área é para que o município de Viamão coloque em funcionamento um Centro Logístico, Empresarial e Tecnológico.
Na justificativa, o governo destaca que a localização estratégica do imóvel, sua adaptabilidade e inovação, constituem “fatores essenciais para o êxito nesse setor em contínua transformação”. Também aponta “a logística como fundamental no desenvolvimento da cadeia produtiva e de suprimentos, o que pressupõe crescimento da demanda por galpões logísticos e novas áreas nos próximos anos”. O projeto prevê contrapartida em infraestrutura, preservação ambiental e programas de capacitação profissional pelo município de Viamão.
Para Adão Pretto Filho, a medida é “de uma crueldade e insensibilidade inadmissíveis”.
“Estamos falando de um território sagrado para o povo indígena, onde vivem famílias e estudam quase 70 crianças. Em vez de garantir a permanência e a proteção da área, querem entregar esse espaço ao lucro, ignorando totalmente o valor histórico, cultural e humano que ele representa”, afirmou.
Lideranças indígenas relataram viver sob insegurança desde o anúncio do projeto. Eloir ainda destacou que o grupo ocupa e preserva uma área antes abandonada pelo Estado. O procurador da República Ricardo Gralha lembrou que a tentativa de reduzir territórios indígenas é prática histórica do poder público.
“O indígena sempre foi visto como empecilho para o progresso, e isso não pode continuar”, disse.
O presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, Júlio Alt, criticou a ausência de diálogo do governo, citando outros episódios de déficit democrático, como a aprovação do Código Ambiental. Já o cacique Abílio da Silva afirmou que atacar os povos indígenas é atacar a vida da humanidade, lembrando que as terras indígenas estão entre as mais preservadas do Estado e do Brasil.
Apesar de convidado, o governo estadual não enviou representantes para a audiência.