13 Agosto 2025
Nos últimos 20 anos, os programas da USAID salvaram quase 100 milhões de vidas em todo o mundo. Agora, toneladas de alimentos e remédios estão estocados em armazéns, e muitos programas de educação e saúde foram fechados abruptamente.
A reportagem é de Alberto Mesas, publicada por El Salto, 13-08-2025.
Foi uma das primeiras medidas que Trump tomou ao iniciar seu segundo mandato na Casa Branca. O fechamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) era alvo de Elon Musk — então o principal conselheiro do magnata — e de seu plano de cortar os gastos do governo ao extremo.
Embora a ordem do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) para encerrar permanentemente a USAID tenha entrado em vigor em 1º de julho, o governo Trump já havia congelado o financiamento do programa por 90 dias em janeiro. Durante esse período, mais de 80% dos programas da USAID (entre 5.000 e 6.000) foram cancelados, e 94% dos funcionários (cerca de 10.000 trabalhadores) foram demitidos ou transferidos para outros setores da administração.
“Já estávamos testemunhando as consequências mortais dos cortes em algumas das comunidades mais pobres do mundo em fevereiro”, admite Daryl Grisgraber, chefe de política humanitária da Oxfam EUA. “Com o fechamento oficial da USAID em julho, estamos testemunhando um colapso ainda maior das estruturas e sistemas que tornaram a ajuda possível”.
Donald Trump se entusiasmou com a proposta de Musk de cancelar o financiamento e fechar a USAID. Depois que o dono da Tesla afirmou no X que a agência era "uma organização criminosa", o presidente acrescentou que o programa de ajuda era um "desperdício". No entanto, a onda de cortes na ajuda externa se espalhou para outros países, como o Reino Unido e a França.
O governo Starmer anunciou cortes no orçamento de ajuda de até 0,5% do orçamento do Reino Unido até 2027, o que implica uma redução estimada em mais de 6 bilhões de libras (6,8 bilhões de euros). Na França, o orçamento também foi reduzido em 700 milhões de euros para 2026, reduzindo os gastos ao seu nível mais baixo desde 2016.
Apesar dos protestos, a verdade é que a presença e o trabalho humanitário da USAID em países como Uganda, Sudão e Iêmen foram vitais. De acordo com um estudo publicado há algumas semanas pela prestigiosa revista médica The Lancet, a agência salvou 92 milhões de vidas entre 2001 e 2021 (incluindo 30 milhões de crianças menores de cinco anos).
O relatório também alerta que, se a paralisação não for revertida, poderá haver mais 14 milhões de mortes até 2030. O inspetor-geral da USAID alertou que mais de US$ 8 bilhões em ajuda humanitária não utilizada não seriam controlados e foi demitido no dia seguinte em resposta.
“Programas de distribuição de alimentos, sistemas de água potável, medicamentos vitais e muitos outros programas e serviços essenciais desapareceram”, explica Grisgraber. Sem esses programas, ela continua, “as famílias são forçadas a beber água contaminada, o que está levando a um aumento de doenças como a cólera”.
A USAID, criada em 1961, foi o principal instrumento de ajuda e assistência externa dos Estados Unidos, e seu financiamento abrangeu diversos programas, principalmente no Sul Global, abrangendo desde saúde pública (tratamento de doenças como AIDS e malária e vacinação infantil) até distribuição de ajuda alimentar, resposta a desastres naturais e fortalecimento institucional em mais de 120 países. Só em 2023, a USAID administrou mais de € 40 bilhões em fundos.
Com seu fechamento, quase 50.000 empregos no setor da saúde desapareceram, subsídios para pequenos agricultores foram perdidos e os sistemas de alerta alimentar que estavam em vigor foram suspensos. A USAID administrou mais da metade da ajuda externa não militar dos EUA, abrangendo diversos setores. Um dos programas mais populares foi o PEPFAR contra a AIDS, que, desde 2003, investiu € 120 bilhões em políticas de prevenção e tratamento da doença, salvando mais de 25 milhões de vidas.
Sem financiamento, o PEPFAR deixou de fornecer serviços essenciais em vários países. De acordo com uma pesquisa realizada pela Fundação para Pesquisa da AIDS logo após a ordem de suspensão da USAID, 86% das organizações humanitárias no local declararam que seus pacientes perderiam o acesso ao tratamento antirretroviral dentro de um mês se a proibição de financiamento não fosse suspensa.
Clínicas de HIV financiadas pela USAID fecharam em países particularmente vulneráveis, como o Malawi, deixando milhares de pessoas sem medicamentos diários essenciais para combater a doença.
Mas o impacto vai além da AIDS. Os fundos da USAID também foram essenciais para a prevenção de outras doenças, como a malária, por meio da distribuição de mosquiteiros, testes, diagnóstico e tratamento. Um modelo epidemiológico desenvolvido pela Universidade de Boston prevê até 10 milhões de casos adicionais de malária no próximo ano como consequência direta do fechamento da agência.
Em relação à poliomielite e a diversas doenças tropicais, como dengue e febre amarela, os programas de vacinação do UNICEF — que também recebiam verbas da USAID — foram cancelados durante o congelamento do financiamento. No Iêmen e no Níger, vários programas de triagem de desnutrição infantil foram interrompidos justamente quando a crise alimentar nesses países agravava a desnutrição grave.
Médicos Sem Fronteiras relatou que, na República Democrática do Congo, mais de 2 mil pacientes com coinfecção por HIV e tuberculose pararam de receber medicamentos antirretrovirais, o que os expõe a doenças graves ou à morte devido à falta de tratamento.
ONGs como a Ação Contra a Fome relatam que mais de 50 projetos em 20 países da América Latina, África e Ásia foram interrompidos repentinamente, afetando mais de 124.000 pessoas, a maioria mulheres e crianças. Em países como Haiti e Etiópia, a distribuição de kits de água potável e vacinas foi interrompida, o que está associado ao ressurgimento de surtos de sarampo, cólera, malária e diarreia infantil.
A magnitude da lacuna deixada pela USAID repercutiu na comunidade internacional. Os Estados Unidos foram o maior doador bilateral do planeta, canalizando quase 47% do financiamento humanitário total em 2024, ampliando ainda mais o impacto de sua retirada para milhares de organizações humanitárias, ONGs e governos em países vulneráveis.
Para tentar mitigar os efeitos do fechamento da USAID, a ONU lançou apelos de emergência sem precedentes. O Sistema das Nações Unidas, por meio do Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) e suas agências especializadas, teve que cortar até 20% de suas operações em países como a Colômbia, enquanto o UNICEF estima que pelo menos 100.000 crianças migrantes perderão o acesso à educação e aos serviços básicos devido a essa nova escassez de financiamento.
O próprio secretário-geral da organização, António Guterres, apelou publicamente aos países da UE e do G20 para que aumentem as suas contribuições e liderem uma nova arquitetura de ajuda "baseada na justiça global, não na geopolítica". A União Europeia considerou aumentar o seu Fundo Europeu de Desenvolvimento, com contribuições extraordinárias da Alemanha, Suécia e Espanha, embora estas cubram apenas parte do que foi perdido.
A Oxfam afirma que é difícil medir com precisão o impacto humano dos cortes do governo Trump na USAID, nas agências da ONU e em outros programas de ajuda humanitária, e está pessimista de que essa lacuna possa ser preenchida apenas pela cooperação de organizações privadas.
“Não há como substituir de forma rápida e eficaz o que os Estados Unidos dissolveram”, afirma a ONG. “Assim como outras organizações, estamos fazendo tudo o que podemos para nos adaptar. O trabalho essencial para salvar vidas continua, mas não há como atender às crescentes necessidades dos milhões de pessoas deixadas para trás”.
O Serviço de Ação Externa da UE, liderado por Josep Borrell, promoveu o financiamento de emergência e acelerou a aprovação de planos trienais na África e no Oriente Médio, priorizando áreas onde os cortes da USAID são mais severos. A Espanha, por meio da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID), redirecionou parte de seu orçamento para apoiar ONGs e programas locais na América Central e no Sahel, embora algumas organizações beneficiárias desses fundos reconheçam que os recursos ainda cobrem menos de 10% das necessidades identificadas.
As perspectivas também não são muito promissoras. As previsões da OCDE apontam para uma queda entre 9% e 17% no total da Ajuda Pública ao Desenvolvimento em 2025, o que pode significar uma perda entre € 50 bilhões e € 115 bilhões em comparação com o que foi investido em 2023.
A credibilidade dos principais doadores também está em questão. A constante falta de apoio político e os cortes abruptos geram desconfiança nos países beneficiários e nas organizações humanitárias. De acordo com uma análise institucional publicada pelo Real Instituto Elcano, a multiplicação de objetivos atribuídos à ajuda ao desenvolvimento ao longo das décadas acabou por corroer a sua eficácia e pôr em causa a sua legitimidade.
Concebida e criada como uma ferramenta de soft power durante a Guerra Fria, a USAID começou como o veículo por meio do qual o governo americano se opunha à influência soviética e promovia o estabelecimento de democracias capitalistas em todo o mundo. Após a queda do Muro de Berlim, a agência ganhou autonomia operacional, embora continuasse a operar sob a supervisão direta do Departamento de Estado e, portanto, permanecesse uma ferramenta de soft power, mesmo com a mudança do cenário geopolítico.
Como instrumento de influência internacional, a USAID ajudou a consolidar a presença dos EUA em regiões-chave. Seus esforços apoiaram a Revolução Verde na Índia, condicionada à adoção de reformas econômicas alinhadas aos EUA. Essa faceta oculta da USAID tem sido fonte de controvérsia há muito tempo. Muitos governos não alinhados à agenda americana criticam o uso da ajuda humanitária para fins puramente geoestratégicos.
Há estudos que refletem como, em diversas regiões do Sul Global, agências como a USAID promoveram modelos neocoloniais de dependência da ajuda americana. No Quênia, segundo um estudo da Universidade de Lancaster, ONGs financiadas pela USAID fragmentaram o sistema de saúde, gerando exclusão. Isso destaca como condicionar a prestação de ajuda à implementação de políticas neoliberais em países do Sul gerou desigualdades em vez de promover a autonomia estrutural nessas sociedades. Além disso, alguns governos locais abandonaram suas responsabilidades básicas, recorrendo ao financiamento externo como uma tábua de salvação permanente.
Daryl Grisgraber acredita que o fechamento da USAID não se deve a razões econômicas, já que no ano passado o dinheiro alocado para ajuda humanitária representou cerca de 1% do orçamento dos EUA. "O governo Trump cortou esses programas para marcar pontos políticos às custas de algumas das comunidades mais pobres do mundo. A ajuda humanitária e ao desenvolvimento dos EUA conta com o apoio de democratas e republicanos, tanto no Congresso quanto entre o público em geral, há décadas", confirma o representante da Oxfam.
Desde o anúncio do fechamento da USAID, a China rapidamente assumiu o controle, intensificando sua estratégia de empréstimos e assistência na África, Ásia e América Latina, investindo recursos financeiros significativos para influenciar politicamente essas regiões.