13 Agosto 2025
"Se a relação passar a envolver os dois Estados, como agora parece possível, ela poderá assumir outro caráter. Num texto publicado em 2024, Outras Palavras indicava algumas das possíveis dimensões de uma nova parceria: na indústria; na Saúde; na transição energética; num novo projeto para a Amazônia, que preserve a floresta em pé; na IA e tecnologias de informação e comunicação, onde reinam hoje as big techs norte-americanas; e até mesmo da Defesa, para fazer contraste à enorme influência dos Estados Unidos."
O artigo é de Antonio Martins, editor do Outras Palavras, publicado por Outras Palavras, 12-08-2025.
Em notável sinal dos novos tempos, partiu do Sul Global a primeira reação à arrogância imperial de Trump. Por que a iniciativa dos presidentes é promissora. Como ela poderia repercutir também nas relações bilaterais China-Brasil, hoje marcadas por desigualdade.
Publicada nas primeiras horas desta terça-feira (12/8), a nota da agência chinesa Xinhua sobre a conversa telefônica mantida pouco antes pelos presidentes do Brasil e da China sequer menciona os Estados Unidos. Tampouco recorre a termos como “império” ou “colonialismo”. A força do conteúdo tornou os adjetivos dispensáveis. Num contexto em que Brasília é acossada por um “tarifaço” decretado por Donald Trump, e em que Washington ameaça impor sanções suplementares, Xi Jinping anunciou que “apoia o Brasil na salvaguarda de seus legítimos direitos e interesses”. E propõe um passo adiante. “A China – afirmou – está pronta a trabalhar com o Brasil, para estabelecer um exemplo de autossuficiência entre grandes países do Sul Global, e a construir em conjunto um mundo mais justo e um planeta mais sustentável.”
Xi Jinping diz a Lula estar pronto para, juntos, 'dar exemplo de autossuficiência do Sul Global'. Na conversa, líder afirmou que 'a China apoia o povo brasileiro na defesa de sua soberania nacional', contra o unilateralismo (Folha) pic.twitter.com/nO8KhDtNt1
— Blog do Noblat (@BlogdoNoblat) August 12, 2025
Lula e Xi conversaram por cerca de uma hora, informa a Agência Brasil. O diálogo segue-se a uma série de contatos bilaterais anteriores mantidos, nos últimos dias, por quatro chefes de Estado dos BRICS (Vladimir Putin, da Rússia, e Narendra Modi, da Índia, também participaram). O que a nota da Xinhua revela é geopoliticamente muito relevante por dois motivos.
Primeiro: o bloco surgido no Sul Global parece disposto a encarar as ameaças de Trump, num cenário em que nações muito poderosas curvaram-se. O que se viu na sequência ao 2 de abril, quando o líder global da ultradireita anunciou sua guerra comercial, foi o avassalamento daqueles que melhor poderiam resistir. A União Europeia em bloco, o Japão, a Coreia do Sul, a Suíça – todos estes se dobraram, apressando concessões e, em alguns casos, humilhando-se (a presidente suíça abalou-se para Washington, onde passou pelo vexame de sequer ser recebida por Trump). O fato de uma atitude digna caber aos BRICS ressalta, por contraste, o declínio político e moral da ordem eurocêntrica; e o papel central que o bloco do Sul pode assumir, a despeito de suas contradições. Vale ler, a este respeito, artigo de Walden Bello que Outras Palavras traduziu e publicou há dias.
Segundo: salta aos olhos, no questionamento a Trump, a participação de um país latino-americano. Na condição de presidente pro-tempore dos BRICS, partiu de Lula a iniciativa dos diálogos com Xi e Modi. Esta disposição envolve uma região que a Casa Branca vê como quintal ao menos há 202 anos, quando o presidente James Monroe enunciou a Doutrina que levou seu nome. E no caso particular do Brasil, há uma relação especial, desenvolvida há mais de 80 anos. A partir de meados da II Guerra Mundial, os EUA tiveram enorme peso na vida política, econômica e cultural do país. A grande tentativa de superar esta dependência, em meio às Reformas de Base do governo João Goulart, resultou no golpe de 1964.
Embora em declínio rápido, a ordem eurocêntrica ampara-se em bases multisseculares. O enfrentamento a Trump, que agora começa a se esboçar, será um processo árduo, contraditório e possivelmente prolongado. No Brasil, enfrenta resistência no Congresso, no empresariado, nos meios militares e mesmo no interior do governo Lula e das forças que compõem sua base de apoio. Os laços com os EUA estão, tudo indica, na origem da timidez com que o Palácio do Planalto respondeu, durante dois anos e meio, a tentativas explícitas de aproximação da China. Também bloqueiam, até agora, a aceitação do convite de Pequim para que o Brasil some-se às Novas Rotas da Seda – onde o país poderia desempenhar papel proeminente. É um alívio perceber no gesto de Lula, correspondido de pronto por Xi, um sinal de que a resistência pode estar enfraquecendo.
E este acercamento político poderia estimular, também, uma revisão das próprias relações entre Brasil e China. Há anos, Pequim é nosso principal parceiro comercial. O fluxo de importações e exportações é duas vezes maior que o registrado vis-à-vis Washington. Mas o sentido do comércio ainda é desigual. O Brasil exporta essencialmente produtos primários – soja, petróleo e minério de ferro, sobretudo – e compra da China produtos e serviços industrializados e de alta tecnologia. Dois motores produzem esta desigualdade. No lado brasileiro, a relação dominada por elites de mentalidade colonial, interessadas em oferecer as riquezas naturais do país e incapazes de se solidarizar com as maiorias. Já a presença chinesa é ditada até o momento por empresas privadas, cujo objetivo essencial é o lucro.
Se a relação passar a envolver os dois Estados, como agora parece possível, ela poderá assumir outro caráter. Num texto publicado em 2024, Outras Palavras indicava algumas das possíveis dimensões de uma nova parceria: na indústria; na Saúde; na transição energética; num novo projeto para a Amazônia, que preserve a floresta em pé; na IA e tecnologias de informação e comunicação, onde reinam hoje as big techs norte-americanas; e até mesmo da Defesa, para fazer contraste à enorme influência dos Estados Unidos.