Com base na expertise católica romana e ecumênica, este artigo faz uma análise honesta das experiências e esperanças das vítimas de abuso. Muitas pessoas nas igrejas presumem que as vítimas buscam uma compensação financeira ou uma reparação legal. No entanto, pesquisas indicam que muitas vítimas buscam principalmente a verdade e a justiça como forma de encerrar a questão, e que suas lutas junto à cúpula da Igreja surgem quando a verdade e a justiça são repetidamente sonegadas. Isso torna o perdão quase impossível e, muitas vezes, resulta na retraumatização da vítima pelo reabuso sistêmico que vivencia. Em última análise, não há substituto para um encontro pleno e genuíno com as vítimas, o que exige que a Igreja deixe de lado seu poder e autoridade, e se envolva com humildade e a devida deferência com as vítimas por ela abusadas. Sem essa abertura, as vítimas não conseguem seguir em frente, e as igrejas também não.
A opinião é de Mark J. Williams, conselheiro especial da Arquidiocese Católica Romana de Newark, Nova Jersey, EUA, e de Hans Zollner, diretor do Instituto de Antropologia, Estudos Interdisciplinares sobre Dignidade Humana e Cuidado, da Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, Itália.
Este ensaio foi coescrito por uma vítima e sobrevivente de abuso sexual do clero, Mark Joseph Williams, que serve à Arquidiocese Católica Romana de Newark, Nova Jersey, EUA, como conselheiro especial, e pelo Padre Hans Zollner, um padre jesuíta da tradição católica romana que dirige o Instituto de Antropologia – Estudos Interdisciplinares sobre Dignidade Humana e Cuidado (IADC), com sede em Roma, Itália, na Pontifícia Universidade Gregoriana – uma organização comprometida com a “Salvaguarda” em todo o mundo, dentro e fora da Igreja. Temos a honra de contribuir com esta edição especial do Journal of Anglican Studies, em memória do Bispo Alan Wilson, que era conhecido em toda a comunidade anglicana e além dela como “um incansável ativista e defensor das pessoas que sofreram abusos e daquelas que estão às margens” [1] – e que, em sua vida e ministério, foi, sem sombra de dúvida, uma testemunha extraordinária de esperança, mesmo diante de muita resistência e escuridão.
O artigo foi publicado no Journal of Anglican Studies, n. 22, pp. 352–360, 2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Hans Zollner ministrará a conferência on-line Salvaguarda: parte integrante e integral da missão da Igreja, no dia 02 de setembro, às 10h. A atividade integra o Ciclo de Estudos Os abusos na sociedade e na Igreja. Da cultura do silenciamento à cultura do cuidado, que segue com atividades até 18 de novembro. Saiba mais aqui.
Em 27 de abril de 2019, eu (HZ) recebi este e-mail: “Meu nome é Alan Wilson e sou bispo de Buckingham, na Diocese Anglicana de Oxford, Reino Unido. (...) Tenho um interesse especial pela forma como a Igreja trata os sobreviventes de abuso, questão que eu tenho acompanhado em estreita colaboração com minha colega e capelã, Cônega Rosie Harper. (...) Reconhecemos muitos temas, interesses e experiências comuns entre o nosso contexto e o da Igreja Católica”. Foi assim que nos conhecemos. Posteriormente, Alan participou de um congresso europeu em Zagreb sobre “Formação e prevenção: poder como serviço”, em setembro de 2019, e, juntamente com Rosie, foi a Roma algumas vezes para lecionar aos nossos alunos no programa residencial de Salvaguarda do IADC em Roma.
Na reunião da Comissão Internacional Anglicano-Católica Romana para a Unidade e Missão, em Canterbury, no fim de janeiro de 2024, eu (HZ) fui convidado a fazer uma apresentação sobre “Salvaguarda: perspectivas teológicas e pastorais” para quase 60 bispos anglicanos e católicos. Assim como em todas as minhas apresentações, as vozes das vítimas e sobreviventes de abuso sexual do clero não são apenas citadas, mas também incorporadas pela forma como influenciaram meus sentimentos, reflexões e atividades, que são meu foco em conferências, workshops e artigos. Neste artigo, no entanto, vou me concentrar no encontro e na jornada com aquelas pessoas que foram afetadas pelo abuso sexual do clero e que compartilharam isso comigo. Suas experiências e expectativas, e minhas próprias reflexões sobre elas, vêm mudando ao longo dos anos e certamente continuarão a mudar. E ter o testemunho do meu amigo sobrevivente de abuso clerical (MJW), com quem tive a bênção de caminhar junto, contribuirá para a mensagem de esperança inerente a estas páginas. Como MJW escreveu em um artigo [2],
meu testemunho é simplesmente este: escutem as vozes das vítimas e sobreviventes. Escutando, todos caminhamos juntos; ao longo da jornada da vida, devemos encorajar o perdão, mas não a exoneração. Como escreveu o recentemente falecido Arcebispo Desmond Tutu, da África do Sul, em “The Book of Forgiving”, “o perdão é como se um peso tivesse sido tirado de você, e você se sentisse livre para deixar o passado para trás e seguir em frente com sua vida. Ele pode não ser encontrado em um único ato de graça ou em uma simples sequência de palavras, mas sim em um processo de verdade e reconciliação.
Por um lado, esta reflexão pretende fornecer alguns pontos de referência para quem vive e trabalha com pessoas afetadas pelo abuso na Igreja e na sociedade. Por outro lado, queremos sinalizar às vítimas-sobreviventes a experiência interior de pessoas não afetadas quando se encontram com as vítimas. É importante enfatizarmos três pontos que se aplicam a todo o relato.
Em primeiro lugar, assim como cada pessoa é única, cada pessoa afetada pelo abuso tem sua própria história de abuso e suas próprias experiências com o impacto pessoal, social e religioso do abuso. Igualmente única é a experiência de como as pessoas ao redor da vítima, os representantes da Igreja e o ambiente eclesiástico e social reagem ao abuso ou ao ato de falar sobre ele, comunicá-lo ou de denunciá-lo. Portanto, o uso de frases como “as vítimas querem...”, “exigem” ou “vivenciaram” deve ser tratado com cautela. Por outro lado, generalizações não podem ser completamente evitadas.
Em segundo lugar, o que as pessoas afetadas por abuso esperam em termos de atenção, cuidado, encontros, apoio e compensação financeira também é muito diferente. A palavra alemã “Aufarbeitung”, usada para se referir ao tratamento adequado de crimes passados e presentes, tem seis nuances diferentes de significado [3]. Uma razão importante para as decepções, mal-entendidos e tensões entre as vítimas, vítimas secundárias, o público em geral ou a mídia, de um lado, e as lideranças da Igreja ou alguns fiéis, do outro, é que os vários aspectos de se “chegar a um acordo” – incluindo o reconhecimento de que um crime foi cometido; o cuidado e o apoio financeiro e/ou psicológico e/ou espiritual; processos de aprendizagem e mudanças estruturais – não são reconhecidos, ou presume-se que a outra parte tenha os mesmos termos e as mesmas ideias sobre o que “chegar a um acordo” implica. Recentemente, uma vítima da Alemanha me escreveu (HZ) para dizer que, após uma longa luta, recebeu uma indenização excepcionalmente alta da diocese responsável. Ela ficou feliz com isso, porque agora pode envelhecer com mais paz de espírito. Mas não era o dinheiro que ela mais esperava e precisava; para ela, o apoio honesto, empático e contínuo dos responsáveis da diocese teria sido muito mais importante.
Para mim (MJW), a jornada nunca teve a ver com a busca de um acordo financeiro, mas sim com a descoberta da paz interior na mesma Igreja que me causou tanta dor. Em outras palavras, a Igreja que me feriu é a mesma Igreja que me curou, na graça sacramental da Eucaristia. A verdade liberta. A esperança é real. A esperança é Cristo. Todos nós vivemos a jornada pascal, especialmente as pessoas abusadas na Igreja. As vítimas podem verdadeiramente se tornar sobreviventes de uma fé renovada quando se sentem aceitas e amadas em suas respectivas congregações.
Em terceiro lugar, não afirmamos a integralidade ou a inclusão abrangente de todos os aspectos e pontos de vista que seriam possíveis sobre o nosso tema. Não queremos ofender ninguém, mas gostaríamos de descrever honestamente o que descobrimos individualmente, em diálogo um com o outro e com muitas vítimas de abuso, e o que consideramos importante quando se trata de encontrar as vítimas-sobreviventes. Quando se trata de abuso e de seu encobrimento, ninguém é neutro. Não se pode deixar de comunicar (cf. Paul Watzlawick): silêncio, repressão ou negação também são formas de reagir e de comunicar a reação pessoal ou institucional.
Cada pessoa é, sente e vivencia as coisas de forma diferente. As pessoas afetadas pelo abuso frequentemente vivenciam a singularidade de cada vida humana como um isolamento irreversível, como se vivessem sozinhas em uma ilha, e ninguém fosse capaz de ir a essa ilha ou de compreender as condições de vida em sua ilha e de se fazer conhecer aos habitantes de outras ilhas. A maneira como as vítimas-sobreviventes falam sobre isso é fortemente influenciada pela quantidade de vergonha, reticência ou insegurança que sentem. Isso pode incluir medo ou desconfiança de si mesmas, dos relacionamentos, do próprio mundo e de Deus. É por isso que é tão importante, ao se encontrar com pessoas afetadas pela violência sexual, visitá-las na “ilha” delas e ouvir a história do abuso – se elas quiserem falar sobre isso – e de suas consequências muitas vezes longas e complexas.
É importante a escuta genuína e autêntica, com o coração e a cabeça, com a disposição de ouvir histórias incoerentes ou redundantes e de permanecer “com elas”, mesmo que a raiva, a tristeza ou outras emoções sejam expressadas com força. A gama de sentimentos e de expressões emocionais das pessoas afetadas pelo abuso é muito ampla: da depressão profunda à agressão violenta, da confiança infantil à desconfiança hostil, tudo pode ser representado. A agressão muitas vezes só é possível depois de muito tempo, porque só então pode ser permitida.
Quanto mais a Igreja e o clero são glorificados, ou quanto mais a vítima se identifica com a Igreja ou o contexto eclesiástico, mais violenta e expressiva ela pode se tornar. O isolamento e o sentimento da inevitabilidade do próprio sofrimento são elementos que frequentemente levam a comportamentos que lembram uma situação competitiva fatal. “Meu sofrimento é mais severo do que o seu” e “posso falar pelas vítimas melhor do que os outros”. Isso se expressa de muitas maneiras diferentes: adultos versus crianças, mulheres versus homens, as vítimas publicamente conhecidas e as ocultas, as pessoas afetadas na esfera eclesiástica ou espiritual versus as vítimas na esfera não espiritual e não religiosa. De fora, às vezes é difícil entender e suportar como os sobreviventes podem até mesmo infligir mais feridas uns aos outros ou que haja rupturas e hostilidades entre as iniciativas de muitas vítimas. Esse perigo parece ser ainda maior se não houver (mais) um interesse suficientemente amplo e unificador, como a luta contra um perpetrador, um acobertamento, uma instituição (diocese, ordem religiosa, escola etc.) ou a luta por reconhecimento financeiro ou outro apoio. Até que ponto isso está conectado com o fato de ser afetado pelo abuso e até que ponto isso tem a ver com as respectivas circunstâncias sociais e sociais permanece uma questão em aberto. Uma lição da recuperação do vício, adotada e vivida por MJW nos últimos vinte anos nos Alcoólicos Anônimos, tem peso nesta discussão: “Identifique-se, não compare”; assim como as pessoas em recuperação têm histórias diferentes, o mesmo ocorre com as vítimas/sobreviventes de abuso sexual do clero. O mais importante é a semelhança entre as pessoas que foram violadas sexualmente na Igreja, não a sua gravidade. Essa base comum oferece conexão, encontro e a oportunidade de uma cura compartilhada.
Os dilemas podem persistir por toda a vida e não podem ser resolvidos de uma vez por todas. Eles podem incluir solidão e anseio por amor e companheirismo; apego e medo de ser abusado novamente; desconfiança e idealização contínua das pessoas (frequentemente também do clero); aversão ao agressor e à instituição e, ao mesmo tempo, o sentimento de apego permanente. Podem também incluir a sensação de estar constantemente à mercê dos outros, a autodefinição como vítima, sobrevivente ou pessoa afetada por abuso (aqui também existem diferentes preferências entre quem foi abusado), assim como a reivindicação do status de vítima. Ao mesmo tempo, pode haver o desejo de ser tratado não apenas como vítima, mas também de ser respeitado e incluído como uma pessoa integral, com competências pessoais, sociais e profissionais.
Os encontros humanos baseiam-se na confiança, que muitas vezes é visivelmente tênue e frágil nos encontros com as vítimas, quando se trata de lidar com representantes da instituição onde o abuso ocorreu. Além disso, há sempre o risco de retraumatização: uma palavra, um gesto, um olhar, uma sensação como um cheiro ou uma mudança perceptível de humor ou de atenção pode reabrir o evento traumatizante – e a pessoa afetada se encontra no mesmo estado em que se encontrava no momento do crime: desamparada, sobrecarregada, sozinha, confusa e assustada.
Para todas aquelas pessoas que trabalham com vítimas, a atitude mais importante é se engajar em um processo que seja aberto e imprevisível de uma maneira particular, sem expectativas preconcebidas. Em outras palavras, trata-se de praticar constantemente uma nova atenção e disposição para mudar e recalibrar proximidade e distância, conhecimento e novas aprendizagens, escutando e ouvindo sempre de uma forma nova e “renovada”. A chave aqui é estar preparado para uma revisão constante da confiabilidade e da credibilidade. Isso é mais do que compreensível para a pessoa envolvida, mas pode ser um teste difícil para a pessoa conselheira. Pode ser percebido como excessivo se for realizado ou comunicado de forma muito rigorosa, frequente ou abrupta. Mesmo que a pessoa conselheira ache que fez tudo certo ou “tudo como antes”, pode-se desencadear uma desconfiança enorme, o que pode até levar ao rompimento do relacionamento.
De uma perspectiva da psicologia profunda, deve-se prestar uma atenção especial à contratransferência: como uma pessoa conselheira (ou familiar, amigo ou colega) percebe e diferencia quais dos sentimentos expressados ou vivenciados, incluindo raiva, fúria, euforia, mudez ou desesperança, são seus próprios sentimentos e quais estão sendo projetados sobre ela pela pessoa em questão? Como a pessoa que oferece apoio lida com o fato de que experiências e expectativas anteriores sempre desempenham um papel em cada encontro humano – quanto mais “originais” (mais fortes, mais antigas) forem, mais intensas e sem filtros podem ser sentidas hoje – e como pode compreender isso, aceitá-lo adequadamente e processá-lo dentro de si, na medida do possível?
No aconselhamento e no trabalho em equipe, surge a questão de como desenvolver e encontrar um bom equilíbrio entre encontros empáticos e apropriados – nem muito distantes nem muito próximos; nem muito frios nem muito intensos – nos quais haja espaço para uma comunicação honesta e transparente [4]. Para muitas pessoas que trabalham com vítimas, é desafiador saber como ser particularmente sensível e atento à situação das vítimas e às suas experiências, como ter empatia por elas e como dar o tipo de feedback que dariam em ocasiões semelhantes a outros interlocutores ou colegas que não são vítimas de abuso. É preciso sensibilidade e coragem para evitar tratar as vítimas involuntariamente de forma paternalista, como se não fossem adultas responsáveis por si mesmas, por medo de machucá-las. Assim, esta questão torna-se primordial: “Como é possível ser sensível às vítimas e, ao mesmo tempo, não ser superprotetor e desonesto?”. Pode-se ver uma faceta disso no encontro direto com as vítimas depois de terem descrito seu sofrimento e horror, na necessidade de reagir com empatia verbal e não verbal, por um lado, mas também de suportar o indizível e, em última análise, o inexprimível em um silêncio “empático e próximo”.
O grande desafio associado a esse relacionamento para ambos os lados – vítimas, sobreviventes e seus cuidadores – pode ser descrito como resistência, suportação: suportar a quase inevitável decepção mútua que surge do fato de que diferentes mundos de experiência e expectativa precisam ser adaptados ou reconciliados em um processo constante de aprendizado. Isso se deve não apenas às idiossincrasias pessoais, como em qualquer relacionamento, mas também à falta de uma camada protetora em torno do eu, que muitas vezes foi massiva e permanentemente rompido ou ferido pelo abuso nas pessoas afetadas.
Nesse sentido, a tentativa de união pode ser comparada à tarefa de um construtor de pontes que, mesmo em mares agitados, ventos fortes e outras circunstâncias adversas, tenta cravar pilares de confiança sobre os quais possa ser construída uma ponte para as ilhas e que, mesmo que os elementos de conexão sejam arrancados por tempestades ou inundações de desconfiança ou decepção, estão tão firmemente ancorados que os elementos de conexão podem ser postos sobre eles diversas vezes, e a ponte pode ser reconstruída. Para muitas vítimas-sobreviventes, uma das experiências mais importantes é perceber que, pelo menos de vez em quando, elas têm a sensação de não estarem desoladas e sozinhas em seu sofrimento e solidão em suas ilhas da vida, mas que, pelo menos de vez em quando, visitantes compartilham suas vidas com elas e começam a compreender melhor suas necessidades, seu ritmo e a fragilidade de sua confiança.
Há uma percepção generalizada entre as Igrejas (mas também em outras instituições) de que as vítimas são vistas como problemáticas e poluidoras que provocam escândalos e destroem sua imagem. É verdade que há cada vez mais atenção e disposição para se abrir às vítimas de abuso. Isso se expressa em frases como: “Devemos ver as vítimas”, “devemos ouvir as pessoas sobreviventes” e “devemos acompanhar as vítimas de abuso”. No entanto, as consequências da violência sexualizada ainda são frequentemente individualizadas, e as vítimas são vistas em termos de patologização. O fato de que essa visão reduzida há muito deixou de corresponder aos desenvolvimentos e experiências de pelo menos algumas das vítimas-sobreviventes é dificilmente reconhecido pelo público em geral, pela Igreja ou pela pesquisa acadêmica. Os processos de participação das vítimas, portanto, ainda são com frequência insuficientemente definidos, coordenados e avaliados. Tanto as vítimas de violência sexualizada quanto as instituições têm pouca experiência sistemática com questões relacionadas à participação das vítimas, sob suas respectivas perspectivas.
A participação das vítimas será definida com mais precisão se vítimas e sobreviventes forem envolvidos como especialistas com ampla experiência, conhecimento reflexivo e profissional, e também em outros contextos, como planejamento e processos pastorais, espirituais ou litúrgicos. A expertise das pessoas afetadas pelo abuso é diversificada e inclui fatores como as lacunas no sistema de proteção e apoio, o desenvolvimento e a implementação de diretrizes e conceitos de proteção e sua avaliação, a pesquisa sobre violência e suas consequências, o conteúdo educacional e de formação das profissões pastorais, educacionais e médicas, a justiça amigável às vítimas, as necessidades de financiamento para o aconselhamento e o suporte para sua oferta.
Antes do início de projetos de cooperação seletivos ou de longo prazo, deve ficar claro que não se trata apenas de uma terapia específica ou de grupos de autoajuda específicos. As pessoas participantes devem ter conhecimento do que estão fazendo em nível pessoal, metodológico e institucional. Os objetivos e as tarefas do projeto (por exemplo, apoio à prevenção e/ou reavaliação, campanhas de conscientização, declarações públicas e incentivo a mudanças estruturais) devem ser claramente definidos. As pessoas envolvidas devem ter clareza sobre seu papel, sua carga de trabalho, seus direitos e obrigações, assim como sua remuneração e outros benefícios (como supervisão).
Não se trata apenas de um envolvimento periférico e ocasional das vítimas-sobreviventes, mas sim de seu engajamento contínuo nos processos de tomada de decisão. É necessário haver ancoragem estrutural, independência garantida e recursos humanos e financeiros adequados. Somente quando todas as pessoas envolvidas estiverem psicologicamente enraizadas no nível desejado de autonomia e de influência das pessoas afetadas pelo abuso é que a atitude participativa começa. Como as pessoas não afetadas pelo abuso têm uma compreensão diferente de muitas situações socioemocionais da vida, o trabalho necessário de persuasão sobre o que, em última análise, é o pensamento participativo nunca termina. A estruturação de mudanças individuais e coletivas de atitude e pensamento, quando levada a sério, acompanhará o processo de trabalho a longo prazo. Para garantir que isso não se sobreponha ao trabalho, o apoio ao processo, como supervisão e/ou outras formas de ativação de competências, deve ser incluído como um componente qualitativo (não apenas em caso de conflito).
Muitas afirmações como “sinto muito (pelo abuso)” e “lamentamos profundamente o que aconteceu” soam vazias se as preocupações das vítimas e das pessoas sobreviventes continuam sendo ignoradas e se as pessoas que não cumpriram suas responsabilidades morais e legais se esquivam. Provavelmente, isso também se deve ao fato de as pessoas ainda estarem reagindo a casos individuais, sem se tirar consequências sistêmicas de tudo isso. Muitas pessoas na Igreja – e não apenas os ministros – ainda não percebem que algumas correções marginais não são suficientes. Acreditamos que a expectativa de muitas pessoas dentro da Igreja, bem como de fora, deve ser uma análise profunda das raízes do abuso e do encobrimento. Até agora, não houve uma discussão suficiente, e a mudança essencial está longe de estar completa. A mentalidade, as atitudes e as estruturas que promovem ou consolidam um senso de prestígio, uma identificação excessiva com a instituição, uma relação acrítica com a autoridade e o poder, e uma sexualidade imatura ainda podem ser descobertas em cada canto e recanto [5]. É claro que também existem outras experiências, e a mensagem parece estar chegando a cada vez mais pessoas em posições de responsabilidade. Mas, em geral, permanece a percepção de que “a” Igreja está, acima de tudo, preocupada consigo mesma. Arrependimento genuíno, remorso crível e satisfação efetiva parecem e são sentidos de formas diferentes. A confiança epistêmica baseia-se na sinceridade, na transparência e na competência.
Hoje [6], a participação de vítimas e sobreviventes é vista como padrão em reavaliações e em muitos projetos de pesquisa. Ao mesmo tempo, porém, não temos padrões específicos e temos pouquíssimos recursos e opções de apoio que realmente possibilitem a participação das vítimas. A fim de não permitir que a participação se degenere em algo rotineiro ou superficial, e a fim de evitar que as vítimas que já foram exploradas em um relacionamento de dependência sejam manipuladas e exploradas de novo, é importante que as vítimas sejam empoderadas em envolvimento e apoiadas nos encargos que surgem. Isso se refere não apenas à compensação financeira e à criação de regulamentações legais que efetivamente possibilitem tais pagamentos de reconhecimento financeiro, mas também à generosa provisão de oportunidades de supervisão e de orientação para as vítimas-sobreviventes. E, no espírito do Evangelho, as portas de todas as Igrejas em todo o mundo devem permanecer sempre abertas para que as vítimas-sobreviventes se sintam acolhidas e experimentem o amor e a misericórdia de Deus como todas as pessoas peregrinas da fé que percorrem o caminho humano.
Talvez o espírito duradouro do Bispo Alan Wilson ofereça o verdadeiro norte para essa participação da qual falamos, a partir das palavras de uma pessoa sobrevivente que refletiu sobre a morte dele: “Ele sempre colocou as necessidades das pessoas que foram abusadas, marginalizadas e discriminadas acima da imagem e da reputação da Igreja” [7].
Em vez de falar do “ministério de ensino das vítimas-sobreviventes” e, assim, exagerar o papel das pessoas afetadas pelo abuso, as Igrejas devem dar um exemplo ativo de apoio com o qual a sociedade como um todo possa aprender, para que possamos realmente nos beneficiar e aprender lições com a experiência das pessoas afetadas pelo abuso, o que muda positivamente a qualidade de nossas instituições e de nossos projetos [8]. Ao mesmo tempo, esses processos de inclusão devem sempre fazer justiça à dimensão do necessário reconhecimento do sofrimento e da injustiça.
Em essência, trata-se da nossa abertura à experiência, às preocupações e às necessidades atuais das vítimas e sobreviventes. Conceitos como um fim em si mesmos ou diretrizes como um mero cumprimento de requisitos não ajudam ninguém. Conceitos e regulações precisam da participação daquelas pessoas para as quais foram feitos. Continuamos caminhando juntos como amigos e amigas: uma vítima/sobrevivente de abuso clerical e um clero ordenado no amor de nosso Senhor e Redentor. Isso faz a diferença e enche ambos de vida. Então, e somente então, é que a fé se torna real, a cura é uma possibilidade real, e vislumbres de esperança permanecem vivos.
1. Acesse aqui. (acesso em: 28 jun. 2024).
2. “I am an abuse survivor. I believe the synod will teach the church how to listen”, (acesso em: 28 jun. 2024).
3. Cf. a tradução em inglês do artigo de HZ sobre Aufarbeitung: “What does it mean to Come to Terms with Abuse? Some Suggestions”, in Concilium 59 (2023/4), n. 402, pp. 119–127. “Aufarbeitung”, nesse artigo, foi traduzido por “coming to terms” (chegar a um acordo, aceitar), enquanto nos dicionários inglês-alemão são mencionadas várias traduções propostas: “reciclagem, reavaliação, reabilitação, regeneração, revisão, recondicionamento, reprocessamento” – todas elas implícitas na expressão alemã e que podem encontrar significado apropriado em relação a “trabalhar o que aconteceu”.
4. Cf. C. Barker et al., “The truth project - paper two - using staff training and consultation to inculcate a testimonial sensibility in non-specialist staff teams working with survivors of child sexual abuse”, in Frontiers in Psychiatriy, publicado em 04 jul. 2023 (acesso em: 28 jun. 2024).
5. Cf. Hans Zollner, “Faithful and True? The History of Mentalities and the Catholic Church’s Response to the Sexual Abuse Crises”, in: Stefan M. Attard, John A. Berry (orgs.), Fidelis et Verax. Essays in honour of His Grace Mgr Charles J. Scicluna on the tenth anniversary of his episcopal ordination, Malta, 2022, pp. 601–620.
6. “Fazit” (p. 48f) de: Jörg M. Fegert, Wolfgang Stein, Hans Zollner, “Herausforderungen bei der Betroffenenbeteiligung – Chancen und Probleme beim Einbezug von Opfern sexualisierter Gewalt als Erfahrungsexpert*innen bei Aufarbeitungsprojekten, Präventionsprojekten, Forschungsprojekten und in Umgestaltungsprozessen in Institutionen”, in forum für Kinder- und Jugendpsychiatrie, Psychosomatik und Psychotherapie 33 (2023) Heft 1, 34–51.
7. Cf. disponível aqui (acesso em: 28 jun. 2024).
8. Cf. Hans Zollner, “The Catholic Church’s Responsibility in Creating a Safeguarding Culture”, in The Person and the Challenges. The Journal of Theology, Education, Canon Law and Social Studies Inspired by Pope John Paul II (Warsaw), 2021, vol. 12, n. 1, pp. 5–21.
Disponível aqui (acesso em: junho de 2024).
Disponível aqui (acesso em: junho de 2024).
Ajayi, “Angela’s Story of Childhood Sexual Abuse”; Gibb, “An Abuse of Faith”; Jay et al., The Report of the Independent Inquiry into Child Sexual Abuse; Royal Commission into Institutional Responses to Child Sexual Abuse, “Final Report: Preface and Executive Summary.”
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Barker et al., The truth project- paper two – using staff training and consultation to inculcate a testimonial sensibility in non-specialist staff teams working with survivors of child sexual abuse, in: Frontiers in Psychiatry, publicado em 04 jul. 2023, doi 10.3389/fpsyt.2023.1177622 (acesso em: junho de 2024).
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