02 Agosto 2025
A obra enfrenta – e resolve com rara sensibilidade – os desafios do gênero, oferecendo não apenas uma biografia, mas uma tradução poética de uma existência marcada pela ousadia e pela liberdade.
O comentário é de Marcos Rolim, publicado por Extra Classe, 30-07-2025.
Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal ExtraClasse.
“Os ventos do norte não movem moinhos”
- João Ricardo/Paulo Mendonça
O filme biográfico, o chamado biopic, é um gênero que precisa lidar com desafios éticos e artísticos muito peculiares. Muitas questões são suscitadas, logo de início, pelo contraste entre verdade histórica e criação. Contar a história de alguém será sempre uma forma de inventar essa pessoa, uma vez que o enredo escolhido é apenas uma das formas possíveis de atribuição de sentido. Uma narrativa pode ser mais envolvente e dramática se alguns fatos forem omitidos ou mesmo se coisas que nunca ocorreram ganharem vida na tela. Bohemian Rhapsody, por exemplo, uma das mais bem-sucedidas cinebiografias musicais, que conta a história do Queen e do seu vocalista Freddie Mercury, foi criticado por ter alterado a ordem real de alguns eventos, particularmente a do momento da revelação da sorologia de Mercury.
Lidar com essas opções, entretanto, faz parte do ofício de uma boa direção, e o resultado, se tratamos de arte, deve ser avaliado por critérios propriamente artísticos, vez que a História diz respeito a outro departamento. Como o afirmou o historiador canadense Robert Rosenstone, o cinema trabalha com “verdades emocionais” e não, necessariamente, com verdades factuais. Há outros temas que merecem atenção nas biopics como, por exemplo, os riscos de se projetar imagens idealizadas ou que reduzem a complexidade psicológica dos personagens reais ou, mais grave, o risco de uma obra cinematográfica se prestar à manipulação ideológica e à legitimação de mitos ou de estratégias de revisionismo histórico, o que nos leva para uma agenda de outros debates ainda mais complexos.
Digo tudo isso para realçar a proeza de Homem com H, o belíssimo retrato cinematográfico de Ney Matogrosso, disponível na Netflix. A obra enfrenta – e resolve com rara sensibilidade – os desafios do gênero, oferecendo não apenas uma biografia, mas uma tradução poética de uma existência marcada pela ousadia e pela liberdade. O roteiro costura a infância difícil, sob o olhar homofóbico de um pai militar, até a consagração como ícone absoluto da arte brasileira, tudo embalado pelas canções que todos conhecemos – e que, no filme, renascem com sentidos inéditos, revelando camadas ocultas da alma de Ney.
Homem com H é também uma narrativa sobre gênero – não como categoria identitária, mas como performance, como invenção diária. Em 1988, quando Judith Butler, então uma jovem filósofa, publicava seu célebre ensaio Os atos performativos e a constituição do gênero, propondo que o gênero não é a expressão de uma essência, mas o resultado de práticas repetidas, Ney já era, há pelo menos quinze anos, a encarnação viva dessa ideia. Um corpo em movimento, um gesto contra a norma, uma presença radical no palco e fora dele.
Os diferentes olhares do conservadorismo e da estupidez nacional olharam para Ney e viram apenas dissidência corporal, ideológica ou moral. O filme, no entanto, que conta com a impressionante atuação de Jesuíta Barbosa, evidencia a universalidade do personagem que encarna, serenamente, os desafios do seu tempo.
A par das qualidades da obra, penso que devemos destacar sua importância no cenário distópico de O Conto da Aia que se insinua no mundo com o avanço da extrema direita. O inesgotável talento de Ney Matogrosso, sua irreverência e sua altivez, afinal, oferecem a milhares de jovens gays, bissexuais ou não binários – e para qualquer um que se sinta fora da norma – um modelo de virtude, o que costuma fazer muita diferença na vida de pessoas vitimadas pela intolerância e pela violência, fenômeno renovado pelo fundamentalismo religioso, pela caretice e pela miséria intelectual que assolam o Brasil.