"Não se trata de voltar aos tempos do Evangelho, mas de retomar o seu Espírito"
O artigo é de Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e escritor. Assessora movimentos sociais e comunidades eclesiais de base e é membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo.
Marcelo Barros (Foto: Arquivo pessoal)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Muitas pessoas perguntam como se explica que, em nossos dias, a maioria das paróquias católicas no Brasil parece ter voltado ao Catolicismo devocional da época das nossas avós. Não compreendem porque padres, em sua maioria, jovens dão tanta importância a vestes litúrgicas aparatosas. Para celebrar missa, precisam da corte de doze ou catorze coroinhas, todos paramentados com túnicas vermelhas. Em paróquias e dioceses, nas quais, há algumas décadas, se realizavam encontros de Comunidades Eclesiais de Base e Círculos Bíblicos, atualmente, só se fazem novenas de santos e santas, que se sucedem a terços dos homens e adorações ao Santíssimo Sacramento.
Há poucos dias (de 8 a 11 de julho), se realizou na PUC, em Belo Horizonte, o 40º. Congresso da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (Soter). Na manhã do penúltimo dia, Dom Joaquim Mol, bispo coadjutor da diocese de Santos e a querida amiga, a professora Maria Clara Bingemer falaram brilhantemente sobre os 60 anos do Concílio Vaticano II e sua herança para a teologia de nossos dias. Dom Mol e Maria Clara mostraram as imensas transformações que os documentos do Vaticano II e suas intuições teológicas e pastorais trouxeram para a Igreja Católica e para outras Igrejas.
Logo no início de sua fala, Dom Mol citou o papa Francisco, ao afirmar: “A Cristandade morreu!”.
Certamente, todas as pessoas presentes compreenderam que ele se referia à Igreja como religião civil, ligada ao Estado e como instância controladora da sociedade, sistema que funcionou desde o século IV, quando o imperador Constantino se serviu da Igreja cristã para unificar o império romano dividido e decadente. Esse modelo eclesial vigorou até quase nossos dias, quando, nos mais diversos recantos do mundo, se tornou cada vez mais claro que o Estado deve ser laico.
De fato, por todo o Brasil, algumas figuras políticas continuam a insistir que a nossa cidade ou que esse estado é de Cristo. Vereadoras propõem que municípios distribuam Bíblias para escolas públicas. Em nome da fé cristã, grupos fundamentalistas atacam e agridem comunidades de culto afrodescendente e indígena. No Congresso Nacional, católicos e evangélicos tradicionalistas, assim como pentecostais fundamentalistas “terrivelmente evangélicos” usam o pretexto de defesa dos valores da família para impor regras morais de suas Igrejas, como se fossem do próprio Deus. A maioria deles e delas forma a bancada da Bíblia, ao mesmo tempo em que também participa das bancadas do boi e, por que não, da bala.
Em 2017, baseado nessa realidade, o cineasta Cláudio Assis fez o filme Divino Amor, parábola, conforme a qual, em 2027, o Brasil será pentecostal e a festa do Carnaval, substituída pela festa do Divino Amor.
A maioria das pessoas católicas e evangélicas, com as quais convivo concorda que a Cristandade morreu. Provavelmente, muitos desses irmãos e irmãs percebem que o fim da Cristandade é positivo para a vivência cristã e eclesial da fé. No entanto, parece que muitos desses irmãos e irmãs ainda não se dão conta de que a Cristandade não significa somente o estatuto político da Igreja como religião civil.
A Cristandade é também a própria forma de compreender a Igreja e dela se organizar. Isso significa que há um modelo eclesial de Cristandade que vigora, mesmo sem ser religião civil. Atualmente, é o modelo dominante em nossas dioceses e paróquias. Além disso, ele implica em um estilo de espiritualidade que continua a não se defrontar corajosamente com o evangelho de Jesus. Ao contrário, está longe do espírito do Evangelho.
Isso me recorda que, em 1966, portanto, imediatamente depois do Concílio Vaticano II, Dom Helder Camara, então arcebispo de Olinda e Recife, propôs ao papa Paulo VI que ele renunciasse a ser chefe de Estado, entregasse o Vaticano para ser museu da ONU e voltasse a morar na Igreja de São João de Latrão, sede da diocese de Roma e, portanto casa do bispo de Roma. O Dom nunca recebeu uma resposta do papa, mas uma confirmação de que este recebeu a carta. Isso se deu através de uma carta oficial do Cardeal Villot, secretário de Estado, que afirmava: “Excelência, o Santo Padre recebeu e agradece a sua carta, mas recorda à sua Excelência que não vivemos mais nos tempos do Evangelho” [1].
Não se trata de voltar aos tempos do Evangelho, mas de retomar o seu Espírito. Isso era o que movia Helder Camara e deveria ser o que nos move no caminho da fé.
Há poucos meses, mesmo entre irmãos ligados à teologia e à pastoral popular, muitos pareciam achar absolutamente natural e normal o ritual do Conclave, no qual os cardeais revitalizaram as pompas do consulado romano do velho império, refizeram o ritual da fumaça preta e fumaça branca da corte imperial do Vaticano do século XI, ao mesmo tempo, que invocavam o Espírito Santo para inspirá-los na escolha do novo papa. Ficou claro que, para muitos católicos, o Papa continua sendo um super-bispo que nomeia todos os outros e se mantém como governante do único Estado que, no Ocidente, é Monarquia Absoluta.
Embora não tenha mais o poder que tinha na época em que chefiava exércitos e colocava a coroa na cabeça de reis, dá ao mundo a impressão de que a Cristandade está viva e de que é isso que queremos como modelo eclesial. O Papa reúne governantes e ditadores para os festejos de sua posse, depois que o Vaticano os reuniu para as cerimônias do sepultamento do Papa Francisco, mesmo se este tinha desejado um enterro simples, em cova na terra e só com seu nome na lápide. Obedeceram ao seu pedido quanto ao túmulo, mas com um sepultamento de rei da Cristandade que continua nas mentes e nos corações de muita gente.
Parece que a compreensão da Cristandade como religião civil foi superada, mas como modelo eclesial e de fé, ainda não. Mesmo irmãos e irmãs, do clero, da vida religiosa e das pastorais que se colocam como discípulos e discípulas do querido Papa Francisco se movem e pensam a fé dentro do modelo de Cristandade.
No Brasil, os padres e agentes de Pastoral que sustentam e mantêm o modelo de Cristandade não são os ligados a centros de extrema-direita ou os que celebram a missa em Latim conforme o missal do Pio V. Esses são minoria e sabemos claramente quem são. Atualmente, a cultura religiosa de Cristandade sobrevive e se fortalece nos responsáveis pela terceira edição do Missal Romano, em português, mais tradicionalista, mais cuidadoso em distanciar liturgia e vida e mais romano (nada inculturado) do que as edições anteriores. A cultura religiosa de Cristandade é alimentada pelos padres e agentes de pastoral que se dizem progressistas, mas parecem mais preocupados em cumprir o Direito Canônico e manter o estilo de uma Igreja imperial do que o Evangelho de Jesus.
Vamos dar um único exemplo: há poucos dias, aconteceu na sede da CNBB um encontro dos postuladores das diversos processos de canonização que, hoje, existem na Igreja Católica do Brasil. Ora, por falar em cultura religiosa de Cristandade, como se podem levar a sério os critérios exigidos pelo Vaticano: milagres e requisitos como se o servo ou serva de Deus viveu heroicamente virtudes como a castidade heroica... Será que precisamos de outros sinais de que a Cristandade morreu e, ao mesmo tempo, não morreu?
Propostas de Francisco, como desclericalizar a Igreja, colocar a “Igreja em saída” e, principalmente, promover uma verdadeira sinodalidade nunca poderão vigorar, verdadeiramente, em uma Igreja ainda organizada no modelo de Cristandade. Assim como não pode haver círculo quadrado, dioceses ou paróquias, ainda organizadas conforme o modelo de Cristandade, nunca poderão ser verdadeiramente sinodais ou “em saída”. Menos ainda livres do Clericalismo.
Atualmente, em nossas Igrejas, acontecem encontros e debates interessantes sobre o tema do Sínodo e da Sinodalidade. Esses encontros são bons e devem ser feitos. No entanto, para terem efeito real, precisam ser precedidos de uma reflexão que nos leve a descobrir a cultura religiosa de Cristandade que ainda existe em nós e na nossa forma de compreender a fé.
Precisamos reler o Concílio Vaticano II e a Conferência Episcopal de Medellín que o atualizou e o inseriu na América Latina, a partir de uma Igreja que seja comunhão de comunidades de fé, organizadas de forma sinodal e que se compreendam como minorias abraâmicas proféticas na diáspora de um mundo laical. Para isso, temos de superar os esquemas e visões eclesiais de Cristandade que ainda moram dentro de nós...
[1] Cf. MARCELO BARROS, Não deixe cair a Profecia. A herança de Dom Helder Camara para a humanidade do século XXI. Recife: CEPE, 2022, p. 149. Ver outra versão: MARCOS DE CASTRO, Dom Helder: misticismo e santidade. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002, pp. 202 – 206.