04 Julho 2025
Cidades na Bacia do Uruguai cercadas pelo cultivo da soja registram taxas de mortalidade por câncer superiores à média nacional. Uso de agrotóxicos poderia estar relacionado às doenças.
A reportagem é de Mariana Rosetti e Adriana Amâncio, publicada por DW, 03-07-2025.
Foi às margens da Bacia do Rio Uruguai, no campo, que Mauro Abreu tirou o sustento da família por quase quatro décadas. O agricultor nasceu em Jóia (RS) e começou a trabalhar ainda jovem em lavouras de soja em Tupanciretã, município vizinho. Aos 54 anos, foi diagnosticado com um câncer agressivo no estômago. Morreu um ano e meio depois.
Nas granjas, a função de Mauro era pulverizar agrotóxicos. Usava uma bomba costal – equipamento carregado nas costas que armazena veneno – e também pilotava o trator de pulverização. Um dos herbicidas utilizados era o 2,4-D, para controle de ervas espontâneas.
A professora Loiva Abreu, que acompanhou de perto a rotina do marido, afirma que ele "nunca usou equipamento de segurança". "Ele trabalhava com o trator aberto, aquilo [o agrotóxico] voltava [quando o vento batia]. Quando a bomba entupia, ele chupava para desentupir", lembra.
Os primeiros sintomas apareceram em 2016, com refluxo e inchaço nas pernas, mas, só buscou atendimento quando não conseguia mais trabalhar. O diagnóstico veio tarde: câncer de estômago em estágio avançado. O agricultor morreu em 2018.
Com 2.200 quilômetros de extensão, o Rio Uruguai percorre a fronteira entre Brasil e Argentina e abrange, em território nacional, 223 municípios no Rio Grande do Sul e 148 em Santa Catarina. A região, marcada pelo uso intensivo de agrotóxicos e pela agropecuária em larga escala, somou em 2021 mais de 5,4 milhões de hectares de áreas de cultivo de soja e milho, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Para o estudo A Bacia do Rio Uruguai sob pressão no Brasil: esgotos domésticos, dejetos animais e agrotóxicos, a química Sônia Hess, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), analisou 24 microrregiões da bacia – sete em SC e 17 no RS – e encontrou resíduos de agrotóxicos em águas de abastecimento de 15 municípios catarinenses, inclusive em mananciais subterrâneos.
Já as taxas de câncer, suicídio e anomalias congênitas superaram as médias nacionais nos dois estados. O trabalho aponta a combinação entre baixa cobertura de saneamento, excesso de dejetos da pecuária e o uso expressivo de agrotóxicos como fatores que agravam os riscos à saúde humana e à qualidade ambiental na Bacia do Rio Uruguai.
Dos 70 anos de vida, João, que preferiu não ter o nome verdadeiro divulgado, passou 30 em um assentamento no município de Jóia, onde cultiva 22 hectares agroecológicos. Na última década, viu o câncer ser parte da rotina das famílias vizinhas. "Aqui morre muita gente de câncer por conta das contaminações", desabafa.
Aviões agrícolas sobrevoam a área e lançam agrotóxicos sobre lavouras de milho, soja e aveia – e também sobre o Rio Ijuí, que abastece parte da comunidade, conta. Essa exposição não é recente. Em 1980, enquanto trabalhava em uma cooperativa agropecuária, João foi encarregado de enterrar um lote de agrotóxicos proibidos à beira do rio. Pouco tempo depois, adoeceu. Desde então, acredita que o lençol freático da região carrega uma herança tóxica.
O estado de João tinha, em 2023, dois herbicidas líderes de venda, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama): glifosato e 2,4-D, com 27.974 e 6.512 toneladas comercializadas, respectivamente. Ambos utilizados em cultivos de larga escala no Brasil.
Estudos indicam que o glifosato pode causar câncer, infertilidade, problemas renais crônicos e desregulação hormonal. O 2,4-D, por sua vez, está também relacionado a câncer de estômago, linfoma não-Hodgkin, doença de Alzheimer e de Parkinson, além de infertilidade.
Em 2020, a taxa de mortalidade por câncer registrada na região Sul foi superior à média nacional, com o Rio Grande do Sul na liderança, segundo o estudo Ambiente, Saúde e Agrotóxicos: desafios e perspectivas na defesa da saúde humana, ambiental e do trabalhador.
Enquanto a média brasileira para homens era de 115,2 por 100 mil habitantes, no Rio Grande do Sul, ela ficou em 185 e Santa Catarina 143,3. Já entre as mulheres, a média nacional era de 101,7, no Rio Grande do Sul foi de 152 e Santa Catarina, 114,6.
Entre 2018 e 2022, o Rio Grande do Sul registrou 98.693 óbitos por câncer. Destes, 30% dos casos (29.520) ocorreram nas 13 microrregiões de saúde que integram a Bacia do Rio Uruguai – Santa Rosa, Palmeira/Frederico, Erechim, Sananduva, Santo Ângelo, Ijuí, Passo Fundo, Cruz Alta, Campos de Cima da Serra, Santiago, Santa Maria, Alegrete e Bagé.
A comparação entre os anos de 2021 e 2022 revela uma curva ainda ascendente. Oito microrregiões apresentaram crescimento no número de mortes por câncer. Entre elas, Cruz Alta (+11,2%), Sananduva (+11,1%), Ijuí (+10,5%) e Santiago (+10,4%). Nas regiões com queda, nenhuma ultrapassou 6,2%.
A reportagem também estimou a taxa de mortalidade por neoplasias (câncer) por 100 mil habitantes em cada microrregião, com base nos dados de 2022. O resultado mostra que, em dez das 13 analisadas, as taxas ultrapassaram a média estadual de 175,7 por 100 mil.
Em Santa Catarina a situação se repete. Entre 2018 e 2022, o estado registrou 47.928 óbitos por câncer. Desse total, 11.945 (25%) ocorreram nas microrregiões que integram a Bacia do Rio Uruguai – Extremo Oeste, Oeste, Alto Uruguai Catarinense, Meio Oeste, Xanxerê, Alto Vale do Rio do Peixe e Serra Catarinense.
A comparação entre os anos de 2021 e 2022 revela uma tendência de crescimento. Das sete microrregiões analisadas, cinco apresentaram aumento no número de óbitos. Destaque para o Alto Uruguai Catarinense (+18,5%), Alto Vale do Rio do Peixe (+12%) e Serra Catarinense (+11%). Já as microrregiões Oeste (−5,5%) e Extremo Oeste (−1,2%) foram as únicas com redução.
Além dos impactos no ar e no solo, a contaminação da água também preocupa. O estudo de Hess analisou a presença de resíduos de agrotóxicos em 15 municípios catarinenses que integram a Bacia do Rio Uruguai.
Em nove – Formosa do Sul, Jardinópolis, Quilombo, Água Doce, Catanduvas, Treze Tílias, Vargem Bonita, Lindóia do Sul e Santa Cecília –, embora os resultados estivessem dentro dos limites estabelecidos pelo Ministério da Saúde, a água de abastecimento não atenderia aos padrões de potabilidade da União Europeia (UE).
Em Santa Cecília, por exemplo, a concentração de glifosato encontrada na água foi de 20,86 microgramas por litro (μg/L) – 208 vezes superior ao padrão adotado na União Europeia, de 0,1 μg/L.
O estudo também identificou a presença de 13 ingredientes ativos nas amostras, dos quais sete são banidos na União Europeia: atrazina, carbendazim, ciproconazol, clorpirifós etílico, diurom, imidacloprido e simazina. Todos associados a efeitos como desregulação hormonal, mutações genéticas, câncer e distúrbios neurológicos.
Justina Sima, agricultora de 69 anos, mora, ao lado do marido, também agricultor, na comunidade Linha Pinhal, no município de Quilombo, em Santa Catarina. Ela mantém uma área de agrofloresta com 3,9 hectares, cercados por grandes cultivos de soja e milho, além de extensas criações de gado, porcos e frangos, que atendem aos frigoríficos da região.
Segundo Justina, a pulverização de agrotóxicos no local é intensa. "São usados tratores e aviões, e, hoje, estão sendo usados drones", detalha. Para reduzir o risco de consumir água contaminada, os moradores fizeram "a agrofloresta para resgatar uma nascente e usar uma água que possa estar mais livre desses agrotóxicos. Para limpar as coisas, nós usamos água captada da chuva".
Para a toxicologista Virgínia Dapper, o Estado falha em adotar uma abordagem preventiva com relação ao uso de agrotóxicos. "Se há um surto de dengue, o sistema investiga e orienta a população. Com os agrotóxicos, deveria ser a mesma lógica. Se a pessoa tem depressão e vive numa área exposta a substâncias neurotóxicas, é necessário considerar essa exposição como fator de risco", defende.
Para Maria Theresa Accioly e Leandro de Souza Thiago, doutores e tecnologistas do Laboratório de Toxicologia Ocupacional, Ambiental e Vigilância do Câncer do Instituto Nacional de Câncer (INCA), o enfrentamento desse problema de saúde pública requerer " o fortalecimento da vigilância em saúde ambiental e do trabalhador rural; criar bancos de dados públicos e integrados sobre o uso de agrotóxicos e incidência de câncer; fomentar pesquisas interinstitucionais e independentes; promover oficinas educativas nas comunidades rurais sobre riscos e formas de proteção e promover políticas públicas de transição agroecológica".
Na mesma linha, Cleber Cremonese, professor e pesquisador do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ressalta que o Brasil apresenta excelentes sistemas de notificação, como o Sinan, mas o problema está na execução: "falta estrutura básica: bons computadores, tempo e ambiente adequado para acolher, investigar e notificar com precisão".
A Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul não respondeu até a publicação dessa reportagem o questionamento sobre ações voltadas à identificação dos fatores de risco que podem estar relacionados ao alto número de mortes por câncer nas regiões Norte e Oeste do estado –especialmente em áreas com uso intensivo de agrotóxicos.
A reportagem questionou ainda a Secretaria de Meio Ambiente de Santa Catarina sobre a presença de resíduos de agrotóxicos em amostras de água da Bacia do Rio Uruguai e se há alguma medida em curso para eliminar esse risco. Também não houve retorno até o fechamento do texto.