O Projeto de Lei (PL) 2159/2021, intitulado “PL da Devastação”, não é uma ameaça apenas ao meio ambiente; é um ataque à vida, à cultura e à dignidade dos povos que já têm tantos direitos ameaçados.
O artigo é de Mônica Lima, graduanda em Jornalismo pela Unisinos e membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Há um mês, no dia 21-05-2025, o Senado Federal aprovou o PL que cria uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental e desestrutura a legislação ambiental brasileira.
O licenciamento ambiental é essencial para garantir o equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a preservação ambiental. Contudo, o PL da Devastação surge com a justificativa de “desburocratização”. Esse PL favorece grandes empreendimentos em detrimento de direitos coletivos, ambientais e constitucionais, configurando-se como uma regressão em nome do avanço do capital.
Sua finalidade de “modernizar” o processo de licenciamento ambiental, argumentando que a legislação atual é muito burocrática, avança sobre pilares fundamentais da proteção ambiental, ao criar exceções para diversos tipos de empreendimentos – como obras de infraestrutura e atividades agrícolas – mesmo que estes possam causar danos irreversíveis ao meio ambiente e às comunidades tradicionais.
Como esperado, mais uma vez a extrema-direita mostra suas garras e, sob o discurso de desenvolvimento do país, desestabiliza novamente a Constituição Federal, colocando em risco a sociedade brasileira e, principalmente, os povos originários.
A “mãe de todas as boiadas” é um risco ambiental e social. A flexibilização do licenciamento ambiental é um retrocesso aos direitos dos povos originários e das comunidades tradicionais que, constantemente, estão sob ameaça de invisibilização e descredibilização.
O autolicenciamento que será implantado compromete a proteção de territórios indígenas e quilombolas e restringe a participação de órgãos que lutam a favor desses povos, como a Funai, em terras indígenas homologadas. O processo invisibiliza comunidades que aguardam a demarcação de suas terras. A exclusão de suas vozes nos processos decisórios viola não apenas compromissos internacionais, mas também direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988.
Ao permitir que interesses econômicos se sobreponham aos direitos indígenas e ambientais, o projeto legitima práticas historicamente predatórias. A entrada de empreiteiras, mineradoras e latifundiários nas terras indígenas ameaça não apenas o modo de vida tradicional dos povos, mas também a integridade de biomas inteiros.
Segundo nota técnica do Instituto Socioambiental (ISA) [1], o PL da Devastação acentua ameaças de construções para 32,6% das terras indígenas e 80,1% dos territórios quilombolas. Esses números revelam o potencial destrutivo do projeto, tanto do ponto de vista ambiental quanto social.
As terras desses grupos sociais são historicamente reconhecidas por sua importância na preservação ambiental e na manutenção da biodiversidade. Essas comunidades mantêm formas sustentáveis de uso da terra, que contrastam com o modelo extrativista predatório que o PL parece favorecer. Ao flexibilizar regras para a instalação de obras de infraestrutura, o projeto ignora o direito constitucional à consulta prévia, livre e informada dessas populações, conforme determina a Convenção 169 da OIT.
Novamente, vemos a violação dos direitos desses povos que dependem do equilíbrio ambiental para sua subsistência, cultura e espiritualidade.
O PL 2159/2021 não abre, mas arromba portas para os maiores inimigos dos povos originários: a expansão do agronegócio e da mineração sobre áreas de floresta nativa, muitas das quais estão sobrepostas a territórios indígenas e quilombolas ainda não demarcados ou em processo de regularização fundiária. Isso agrava conflitos fundiários, aumenta o desmatamento e impulsiona a violência contra comunidades tradicionais, frequentemente alvos de ameaças, invasões e assassinatos.
A aprovação e promoção do PL 2159/2021 têm como protagonistas a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conhecida como bancada ruralista, e parlamentares da extrema-direita. Esses grupos defendem uma agenda que privilegia interesses econômicos de grandes proprietários rurais e corporações do agronegócio. Sob o discurso de “desburocratização” e “segurança jurídica”, essas forças têm promovido um verdadeiro desmonte da legislação ambiental e dos órgãos de fiscalização, como o Ibama e a Funai.
É importante destacar que a atuação dessa bancada não ocorre de forma isolada. Ela está articulada com interesses transnacionais econômicos e sustentada por uma narrativa ideológica que criminaliza movimentos sociais e relativiza a importância da preservação ambiental. Durante o governo Bolsonaro (2019-2022), essa aliança foi fortalecida por meio de nomeações estratégicas, medidas provisórias e discursos que incentivaram o desmonte das políticas socioambientais.
A aprovação do PL 2159/2021 não pode ser vista apenas como uma alteração técnica da legislação ambiental, mas sim como um símbolo do avanço de uma agenda política autoritária, neoliberal e negacionista. Tal projeto representa um retrocesso institucional no que tange à proteção do meio ambiente e à garantia dos direitos de povos historicamente marginalizados.
Esse retrocesso institucional se insere em um contexto do enfraquecimento da democracia brasileira, no qual a voz de populações tradicionais é sistematicamente silenciada. A desregulamentação do licenciamento ambiental é, portanto, também uma tentativa de impedir a resistência dessas comunidades frente à exploração de seus territórios.
Quando a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, sofreu um ataque misógino dos senadores, o presidente Luís Inácio Lula da Silva expressou solidariedade à ministra, mas nada declarou sobre o projeto de lei [2]. No dia 03/06, o presidente afirmou que não havia lido o PL da Devastação e disse: “Quando chegar a mim, eu digo se concordo ou não com as regras” [3].
A ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, classificou o projeto como o "maior retrocesso em 40 anos" [4]. Ao não se manifestar publicamente contra o projeto, tampouco mobilizar sua base parlamentar para barrá-lo, o governo Lula se omite diante de um dos maiores ataques à legislação ambiental do país desde a redemocratização.
Essa omissão é especialmente grave se considerada à luz das promessas de campanha e do discurso de retomada do protagonismo ambiental do Brasil no cenário internacional. Ao mesmo tempo que busca se projetar globalmente como defensor da Amazônia e dos direitos dos povos tradicionais, o governo federal mantém uma postura ambígua no plano interno, permitindo o avanço de projetos que minam justamente esses pilares.
O posicionamento incerto de Lula revela uma estratégia de governabilidade baseada na concessão de espaço à bancada ruralista, uma tentativa de agradar o mesmo Congresso que se opõe às suas pautas.
A omissão do governo Lula enfraquece a resistência ao PL 2159/2021, uma vez que legitima o avanço de pautas regressivas por meio do silêncio. Sua postura afasta os setores progressistas e sociais que confiaram na reconstrução das políticas ambientais e nos compromissos com a justiça social. Além disso, compromete a credibilidade internacional do Brasil em fóruns ambientais, onde o país tem buscado reassumir uma posição de liderança.
Para um país com uma das maiores biodiversidades do planeta e sede da futura COP30, o Brasil atravessa um momento obscuro em relação à proteção ambiental. Em vez de liderar pelo exemplo, o país corre o risco de comprometer não apenas seus ecossistemas, mas também sua credibilidade global na luta contra as mudanças climáticas.
O PL 2159/2021 é, acima de tudo, um projeto de negação – da história, da diversidade, da natureza e dos direitos fundamentais. Sua aprovação representaria um grave retrocesso civilizatório, em um momento em que o mundo inteiro clama por justiça climática e respeito aos povos originários.
É preciso entender que defender os direitos indígenas e o meio ambiente não é apenas um dever constitucional, mas um compromisso ético com a vida. O Brasil, enquanto nação plural, não pode seguir legitimando políticas de morte, destruição e apagamento cultural. Dizer não ao PL da Devastação é dizer sim à dignidade, à diversidade e à preservação do que ainda nos resta.
[1] Disponível aqui. Instituto Socioambiental.
[2] Pinto, L. F. 2025. Ministra é atacada, Lula se omite. Amazônia Real, 29 de maio de 2025.
[3] ClimaInfo. 2025. Lula diz que ainda não leu o PL da Devastação. ClimaInfo, 04 de junho de 2025.
[4] Aguiar, Leandro. 2025. PL do licenciamento ambiental é “maior retrocesso em 40 anos”, diz ex-presidente do Ibama. Agência Pública, 21 de maio de 2025.