26 Junho 2025
Sistema “rouba motoristas e passageiros”, diz participante de pesquisa que analisou dados de 1,5 milhão de corridas
A reportagem é de Paulo Victor Ribeiro, publicada por Brasil de Fato, 25-06-2025.
Você já foi perguntado, por um motorista da Uber, quanto pagou pela corrida? A prática é proibida pela plataforma, mas não incomum. A ideia é que ele possa saber qual fatia do valor pago ele está recebendo, e quanto do bolo a Uber toma em “comissão”. Estes dados eram abertos aos trabalhadores até 2023, quando a tarifa dinâmica da plataforma foi implementada no Reino Unido.
A tarifa dinâmica é o sistema de cobrança e remuneração da Uber que leva em consideração informações como número de pedidos, número de motoristas e informações locais, como chuva e trânsito, para tornar mais caras ou mais baratas as corridas. Ele foi o ponto de inflexão no pagamento de motoristas e na fatia do valor pago por usuários que a Uber come, de acordo com artigo publicado pelo departamento de ciência da computação da Universidade de Oxford.
Com ajuda do Worker Info Exchange, os pesquisadores obtiveram dados do trabalho de 258 motoristas da Uber no Reino Unido, e analisaram 1,5 milhão de corridas realizadas por eles na plataforma entre 2016 e 2024. Após limpeza dos dados, o principal achado da equipe é que os valores recebidos por hora pelos motoristas caíram, independente da métrica utilizada na medição, após 2023, ao passo em que o valor da Uber em comissão subiu drasticamente – o que revela também um aumento do preço cobrado dos passageiros.
No Reino Unido, duas medidas são utilizadas para contabilizar o valor da hora de trabalho de um motorista de aplicativo. Em 2021, o Tribunal do Emprego do país definiu que motoristas de aplicativo eram trabalhadores, e não “contratados independentes”, o que a plataforma defendia, e definiu que eles deveriam ter um salário mínimo que leve em consideração o tempo em que estão à disposição da plataforma, aguardando corridas. Apesar da decisão, a Uber segue remunerando os motoristas apenas pelo tempo em que estão efetivamente em corrida. Nas duas métricas houve queda no valor por hora recebido pelos trabalhadores.
Se considerado como hora de trabalho a proposição do Tribunal do Emprego, após ajuste pela inflação, motoristas receberam em média 15% a menos após a implementação da tarifa dinâmica do que haviam recebido no ano imediatamente anterior. Pela métrica da plataforma, os ganhos caíram em média 3%.
A discrepância de valor acontece porque, ao considerar como hora de trabalho apenas as horas efetivas em que o motorista esteve com um passageiro, a Uber pode elevar o suposto ganho por hora desconsiderando o tempo em que o motorista estava esperando corrida.
Entre 2020 e 2024, o estudo aponta, o pagamento médio por hora dos motoristas, seguindo os critérios da Uber, foi de 29,46 libras esterlinas, ao passo que, se analisado o período em que os motoristas queriam trabalhar, mas não havia corrida, seu ganho real por hora foi de 15,98 libras esterlinas. O estudo notou que o pagamento médio por hora na definição da Uber é menos volátil em períodos de baixa demanda, como durante a pandemia de Covid-19, porque os custos de espera são arcados pelos motoristas, e não pela plataforma. Desde a implementação da tarifa dinâmica, os motoristas analisados passam mais tempo aguardando corridas do que efetivamente em trânsito.
Com a tarifa dinâmica, a Uber estreou uma nova modalidade de retenção de ganhos de motoristas, também dinâmica. Antes de 2023, a empresa alegava reter exatamente 25% dos ganhos dos motoristas no Reino Unido. Em uma corrida que o passageiro pagasse 100 libras esterlinas, então, 75 iriam para o motorista e 25 para a Uber. Em 2023, isso mudou. Agora, os valores são variáveis, e a empresa deixou de informar quanto efetivamente estava retendo do valor pago pelos clientes – em 2025, uma porcentagem semanal consolidada passou a ser novamente disponibilizada aos motoristas, mas sem detalhamento das corridas.
A empresa alega ainda manter sua taxa em 25% do valor. O estudo contesta a informação. Consistentemente, após a tarifa dinâmica, pesquisadores encontraram retenções de 40% e 50% dos valores pagos pelos passageiros. Em média, a empresa se manteve com 25% de retenção. Ao olhar para a mediana, porém, percebe-se que este valor sobe para 29%, o que indica uma distribuição assimétrica das retenções entre os motoristas.
Ao analisar o conjunto de corridas, pesquisadores descobriram que, com a tarifa dinâmica, a Uber retém uma fatia maior de corridas mais caras – o que faz com que os motoristas recebam menos, na ponta do lápis, do que receberiam em corridas mais baratas. A tarifa dinâmica, os pesquisadores apontam, cobra mais dos usuários do serviço enquanto paga menos ao motorista. Entre 2020 e 2022, a plataforma recebia 8,47 libras esterlinas, em média, pelo que os pesquisadores definiram como “excedente médio da hora de trabalho do motorista”, isto é, o quanto deixou de ir para o bolso do trabalhador, de acordo com valor o pago pelos usuários. Entre 2023 e 2024, o valor saltou 38%, indo para 11,70 libras esterlinas, em média.
Um dos motoristas ouvidos pelo estudo durante a fase de consolidação de resultados disse que o levantamento mostra que “eles [a Uber] estão roubando os motoristas e os passageiros”. Os pesquisadores concluem que “depois da tarifa dinâmica, muitos aspectos do trabalho de motoristas da Uber pioraram”.
Sem pesquisa que quantifique os dados de motoristas brasileiros, e com a mesma opacidade adotada pela Uber no Reino Unido, restam aos mais de um milhão de motoristas no Brasil apenas se contentar com suas análises empíricas.
Durante a CPI dos Aplicativos, realizada na Câmara Municipal de São Paulo entre 2021 e 2022, plataformas foram questionadas sobre a falta de transparência dos valores repassados aos trabalhadores e das taxas praticadas, e mentiram sobre o valor de retenção dos ganhos dos motoristas, com taxas ultrapassando 60% do valor pago pelas corridas, de acordo com dados apresentados em sessão pelo vice-presidente da comissão e então vereador autointitulado representante dos motoristas de aplicativo, Marlon Luz.
No relatório final, a comissão aponta que “o motorista de aplicativo, como prestador de serviço autônomo, não tem acesso ao valor bruto da corrida, sendo descontado um valor desconhecido, repassado já com os descontos determinados. Esses descontos não são descritos e nem fixos, o que não oferece transparência e demonstra como um ‘prestador de serviço autônomo’ está inserido na organização produtiva alheia, estando completamente dependentes desta estruturação de trabalho”.
Em 2023, o governo Lula criou um grupo de trabalho para construir uma categoria trabalhista que abarcasse trabalhadores plataformizados, incluindo motoristas de aplicativo. Um ano depois, o “PL da Uber” foi apresentado, sem reconhecer os motoristas como trabalhadores, mas com avanços em pontos como segurança previdenciária e seguridade social, além do estabelecimento de um salário mínimo para a categoria, atrelado ao salário mínimo nacional e que considera gastos inerentes ao trabalho, como combustível e manutenção.
Da mesma maneira que na Inglaterra, porém, empresas não serão obrigadas a considerar o tempo em que motoristas estão à disposição, mas sem corrida, como hora de trabalho. Segundo o economista David Deccache, a medida do governo criou “o fim do salário mínimo”. Rechaçada pela categoria, a medida não foi implementada, e ainda segue em discussão no Congresso.
Contatada pelo Brasil de Fato, a Uber do Brasil disse não se posicionar sobre o estudo, mas encaminhou o posicionamento oficial da Uber do Reino Unido. Nele, a empresa diz não reconhecer os dados da pesquisa.