27 Junho 2025
"Ao integrarem espiritualidade, ação coletiva e sabedorias locais, essas comunidades oferecem contribuições inestimáveis à construção de soluções inclusivas e sustentáveis para os conflitos territoriais na América Latina".
O artigo é de Luiz Felipe Lacerda, psicólogo, doutor em ciências Sociais pela Unisinos, secretário executivo do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) e coordenador da Cátedra Laudato Si’ da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
O cenário contemporâneo global é marcado por desafios socioambientais de proporções sistêmicas, que afetam simultaneamente as populações humanas, os ecossistemas e o equilíbrio climático. Diante dessa conjuntura, emerge a necessidade de abordagens interdisciplinares e colaborativas que transcendam os limites da ciência técnica, incorporando também saberes ético-religiosos. Conforme asseverou o Papa Francisco, uma ecologia integral exige a integração de múltiplas formas de sabedoria, incluindo a religiosa. Considerando que mais de 80% da população mundial se identifica com alguma tradição religiosa, torna-se imperativo reconhecer o potencial transformador das comunidades de fé na promoção de um modelo de desenvolvimento socioambiental justo e sustentável.
Na América Latina, região caracterizada por notável diversidade sociobiocultural e por alarmantes índices de violência contra defensores ambientais, as comunidades religiosas têm desempenhado um papel estratégico (embora frequentemente negligenciado) na mediação de conflitos e na proteção de territórios ameaçados por grandes empreendimentos extrativistas. No Brasil, na Colômbia e no México, casos emblemáticos ilustram como atores religiosos articulam espiritualidade, ação política e mobilização comunitária na defesa dos direitos humanos e da integridade ambiental.
É o que comprova o estudo, conduzido pelo World Resources Institute (WRI) em parceria com o Laudato Si’ Research Institute da Universidade de Oxford, no Brasil com apoio do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA), que reúne evidências empíricas revelando o protagonismo dessas comunidades em quatro experiências concretas. O relatório aponta que tais coletivos propõem paradigmas alternativos de desenvolvimento, nos quais o bem-estar humano e a preservação dos ecossistemas são considerados dimensões interdependentes e inseparáveis. Com uma abordagem holística, essas iniciativas articulam elementos simbólicos, espirituais, sociopolíticos e comunitários, reconfigurando o debate sobre sustentabilidade a partir da realidade local.
Um emblemático caso é o de Altamira (PA), onde a resistência à Usina Hidrelétrica de Belo Monte mobilizou comunidades indígenas, ribeirinhas, organizações da sociedade civil e comunidades de fé. Desde o histórico Encontro dos Povos Indígenas do Xingu (1989) até a constituição do Movimento Xingu Vivo para Sempre (2008), lideranças como Dom Erwin Kräutle e a missionária Dorothy Stang desempenharam papel central na internacionalização da luta, que conjuga fé, justiça socioambiental e denúncia profética. Essa experiência evidencia como a espiritualidade pode ser força agregadora e propulsora de ação coletiva em contextos de ameaça e vulnerabilidade.
Percebe-se que as organizações de fé promovem espaços de articulação e reflexão para as comunidades afetadas. Especialmente entre os povos indígenas, onde a fé cristã se mistura com crenças ancestrais, tal interlocução forma uma resistência híbrida bem peculiar. Organizações da sociedade civil de caráter não religioso ou espiritual também desempenham um papel importante reconhecendo os atores de fé como sujeitos fundamentais nas dinâmicas territoriais. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), por exemplo, reúne estrategicamente fiéis de diversas denominações, mostrando que a fé pode unir diferentes grupos em defesa da vida e dos direitos humanos.
No semiárido do Rio Grande do Norte, em Apodi, a fé exerce influência indireta, atuando mais na construção de redes sociais do que na mobilização direta contra grandes projetos agrícolas e de irrigação. A economia local, baseada no monocultivo de melão, que demanda grandes volumes de água, promove um impacto ainda silencioso nos poços artesianos das comunidades rurais que se avizinham. As promessas de transposição do rio São Francisco e outros projetos de irrigação massiva, nominados pelas comunidades como “Projeto da Morte”, promovem grande especulação hídrica. Além disto, o uso descontrolado de agrotóxicos nas grandes extensões de monocultivo afeta diretamente a saúde e a qualidade de vida de centenas de famílias agricultoras.
Organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Diaconia, Sindicato dos Trabalhadores Rurais e o Centro de Mulheres 8 de Março formam uma rede articulada que atua na defesa dos direitos à terra, à água e à vida. Elas promovem práticas agroecológicas e mobilizam a população, especialmente as mulheres rurais, que têm protagonizado projetos sustentáveis e resistências importantes contra o avanço do agronegócio.
Apesar da presença significativa dessas organizações, o contexto de polarização política e as tensões entre diferentes segmentos religiosos dificultam a construção de consensos. Igrejas neopentecostais, por exemplo, têm mantido uma postura mais reticente em relação ao engajamento sociopolítico, ainda que algumas iniciativas pontuais se apoiem em argumentos bíblicos para fomentar a conscientização ambiental. Mesmo assim, a fé continua a desempenhar um papel crucial como fonte de esperança, resiliência e mobilização moral frente aos desafios impostos pelo modelo de desenvolvimento vigente.
O relatório conclui com recomendações direcionadas a governos, organismos multilaterais e organizações da sociedade civil, ressaltando a urgência de reconhecer as comunidades de fé como agentes estratégicos na promoção de justiça socioambiental. Ao integrarem espiritualidade, ação coletiva e sabedorias locais, essas comunidades oferecem contribuições inestimáveis à construção de soluções inclusivas e sustentáveis para os conflitos territoriais na América Latina.
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