02 Junho 2025
"A morte recente de David Tracy e a comemoração do centenário de Michel de Certeau são um convite à leitura de seus textos, na aventura de deixar-se interpelar, provocando as novas gerações a pensar de novo a diferença e a alteridade como dom", escreve Geraldo Luiz De Mori, SJ, professor e pesquisador da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte.
“Vamos fazer o elogio dos homens ilustres [...] o nome deles viverá através de gerações” (Ecl 44,1. 14)
O dia 29-04-2025 a teologia católica perdeu um de seus maiores expoentes: o teólogo norte-americano David Tracy. No dia 17 de maio, por sua vez, muitos estudiosos de Michel de Certeau, um dos maiores pensadores católicos franceses da segunda metade do século XX, fizeram memória do centenário de seu nascimento. Pouco conhecidos, talvez, dos círculos não acadêmicos brasileiros, os dois pensadores não só tiveram contato com o Brasil e algumas de suas obras traduzidas para o português, mas ofereceram contribuições significativas para o que aqui se produziu no campo da teologia, do pensamento social e da mística. É o caso, por exemplo, do conceito de “teologia pública”, de Tracy, adotado na reflexão teológica nacional nas últimas décadas, ou dos conceitos de “história do cotidiano”, “ausente da história”, de Certeau, que desde a década de 1980 marcaram a historiografia feita no país, sem contar o impacto de seus estudos sobre a mística, que têm fecundado pesquisas atuais.
A Unisinos e a FAJE foram as principais instituições a partir das quais David Tracy tornou-se conhecido no Brasil. O teólogo norte-americano, que durante décadas ensinou na Universidade de Chicago, esteve no Brasil através dos eventos acadêmicos organizados pelo Instituto Humanitas Unisinos (IHU), que publicou também várias entrevistas com ele e sobre ele, além de ter traduzido alguns de seus artigos publicados para o grande público. Sua principal obra, Imaginação analógica: teologia cristã e cultura do pluralismo, foi traduzida para o português pela editora da Unisinos. A FAJE, por sua vez, através da revista Perspectiva Teológica, também publicou textos de Tracy ou em diálogo com ele, além de seus docentes terem orientado dissertações e teses que abordavam o pensamento tracyano.
O tema da “teologia pública”, importante no pensamento do teólogo de Chicago e introduzido no Brasil pelo IHU, foi muito valorizado ao longo dos últimos vinte anos, com desdobramentos diversificados, como o próprio IHU, o adotado por Rudolf von Sinner, que trabalhou durante anos nas Faculdades EST, ou o que foi se solidificando na própria compreensão da teologia feita no Brasil, que, em parte, adotou a tipologia proposta pelo teólogo norte-americano, para o qual toda teologia dialoga com três públicos: o da academia, através da teologia fundamental, o da Igreja, através da teologia sistemática, o da sociedade, através da teologia prática.
Menos conhecida, mas não menos importante, é a reflexão se Tracy sobre os “clássicos” (textos, símbolos, pessoas), a partir da qual ele propõe uma teologia da “conversação”, que coloca em diálogo os “clássicos religiosos” entre si, no quadro do diálogo inter-religioso, ou os “clássicos religiosos” do passado e os diversos contextos em que a fé, no caso a cristã, é chamada a expressar-se. Sua reflexão sobre o pluralismo e, nesse contexto, sobre diferença e alteridade, ganhou grande densidade a partir daí. Suas últimas obras publicadas em 2020, denominadas respectivamente Fragments e Filaments, a primeira com uma apresentação da “situação existencial de nosso tempo” e a segunda com um estudo de alguns “perfis teológicos”, apontam bem os novos desafios para se pensar a fé cristã em tempos de pluralismo e fragmentação, num contínuo aprendizado com mestres e estilos de pensamento que tornam viva a teologia.
A presença de Michel de Certeau no Brasil deu-se ainda na década de 1960, no quadro da recepção do Concílio Vaticano II na América Latina, num encontro da Conferência Latino-Americana de Religiosos/as (CLAR). Essa presença se intensificou nos anos seguintes, com incursões também na Argentina, Chile e México. No Brasil, estabeleceu contatos com vários grupos, como o “Grupo de Religiosidade Popular”, que reunia agentes de pastoral e alguns docentes do Instituto Teológico do Recife (ITER) ao redor da questão da religiosidade popular. Já conhecido por suas pesquisas no campo da espiritualidade inaciana, com estudos importantes sobre Pedro Fabro, um dos primeiros companheiros de Inácio de Loyola, e Jean-Joseph Surin, místico jesuíta do século XVII, o pesquisador francês ganhou visibilidade a partir dos textos que escreveu na revista Études sobre o “Maio de 68” francês, tornando-se um de seus principais intérpretes. Esta incursão na interpretação de um evento político e cultural o levou a interessar-se cada vez mais por temas relacionados à epistemologia da história, o que se traduziu em obras como A invenção do cotidiano, O estrangeiro ou a união na diferença, A escritura da história, O ausente da história, dentre outras.
A obra A invenção do cotidiano, tematiza a questão das “estratégias” e “táticas” de muitos “anônimos”, que, no cotidiano, vão construindo outro tipo de história, a de muitas alteridades invisibilizadas ou negadas. Seus contatos com a América Latina e o Brasil são visíveis nesta obra, que cita termos e expressões da cultura brasileira. Seu enorme conhecimento da história da mística foi fundamental para a elaboração de sua compreensão da história dos diferentes, muitas vezes esquecida, mas também negada. Nesse sentido, A fábula mística, publicada em 1982, mostra o entrecruzamento de saberes a partir dos quais o tema da mística dos séculos XVI e XVII é abordado, com pistas importantes para se compreender o lugar da mística e da religião na época atual.
Sua morte prematura, em 1986, interrompeu um processo de elaboração de um pensamento que estava em plena sistematização. Isso não impediu que sua contribuição fecundasse muitos campos do saber, não só o da espiritualidade, da historiografia, mas também o da cultura, o da psicanálise e o da filosofia da diferença e da alteridade, a teologia. Luce Giard, uma de suas principais colaboradoras e interlocutoras, foi responsável, após sua morte, por organizar coletâneas de textos sobre temas parecidos elaborados pelo autor, além de ter contribuído para que grande parte de suas obras fosse reeditada e traduzida, entre outras, em inglês, italiano, espanhol e português. No Brasil, a primeira recepção de Certeau se deu na historiografia. Embora menos citado por estudiosos da teologia e da espiritualidade, não se pode negar esses campos do saber tenham sido fecundados pelas ideias de Certeau. O Papa Francisco o citou em alguns de seus textos e se referiu ao jesuíta francês como um de seus mestres a pensar.
O tema da ausência e da alteridade, muito presentes em várias obras de Certeau, é por visto por alguns de seus intérpretes como sinal do que os estudiosos da mística denominam de teologia ou mística negativa ou apofática, ou seja, por mais que se conheça Deus e seu mistério, ele permanece indisponível, e quando toca o coração de alguém, introduz nele uma espécie de dinâmica de busca infinita, que nunca termina. Esta indisponibilidade da Alteridade absoluta é sinal da indisponibilidade de toda alteridade, que, por isso mesmo, não pode ser possuída nem manipulada por ninguém.
Em tempos de intransigência e desrespeito das diferenças, numa sociedade cada vez mais fragmentada e plural, mas também amedrontada e tentada a fechar-se ao outro, a morte recente de David Tracy e a comemoração do centenário de Michel de Certeau são um convite à leitura de seus textos, na aventura de deixar-se interpelar, provocando as novas gerações a pensar de novo a diferença e a alteridade como dom.