A Economia Donut combate o terraplanismo econômico. Debate com Kate Raworth no IHU

A conferência com Kate Raworth sobre a Economia Donut, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU na quinta-feira, 08 de maio, às 10h, buscará posicionar as ciências econômicas como um conjunto de saberes atualizados e, portanto, relevantes frente aos desafios socioambientais contemporâneos

Por: Guilherme Tenher | 07 Mai 2025

Os paradigmas ecológicos, tecnológicos e político-sociais do século XXI são incompatíveis com determinados métodos e teorizações econômicas. Assim, é necessário refletir sobre os fundamentos filosófico-antropológicos da economia e propor uma ciência aberta e sensível ao movimento da vida planetária.

A proposta de Kate Raworth reforma o pensamento ao se desviar da noção antropocêntrica, individualista e egoísta presente desde a economia neoclássica até a neoliberal, evidenciando diversos elementos que tornam a vida na Terra possível. Esta "ruptura" na episteme das ciências econômicas é necessária, pois responde a um chamado real, assim como ao bem comum em detrimento dos interesses de poucos e ao clamor da natureza, que exige regeneração e revolução na concepção de materialidade.

A grande ruptura nas ciências econômicas

As ciências econômicas possuem uma particularidade epistemológica. A história de suas teorias passou por uma ruptura no século XIX, marcada pela transição da Economia Política Clássica para a Revolução Marginalista.

Nos germes do que viria a ser a sociedade de mercado, por volta da segunda metade do século XVIII, a Europa passava por profundas mudanças na forma como produzia e consumia seus bens. Dos cercamentos à Revolução Industrial, uma transformação notável nos sistemas produtivos, jurídicos e no mundo do trabalho demandou análises multidisciplinares voltadas à compreensão dos mecanismos e conflitos do novo modo de produção que se instalava naquele território e, ulteriormente, no mundo: o capitalismo. Surge, assim, nesse contexto, a economia política clássica, responsável por apresentar e elaborar noções como classes sociais (conflito capital-trabalho), valor-trabalho, crescimento econômico, acumulação de capital, entre outras.

Essa análise predominantemente macroeconômica — ou seja, que enfatiza as características agregadas do fenômeno econômico, como a produção de riqueza das nações — foi desenvolvida por pensadores como Adam Smith, David Ricardo, Karl Marx e John Stuart Mill, entre outros. Eles buscavam entender, a partir de matrizes filosófico-históricas, a indissociabilidade entre as questões econômicas e as manifestações sociais e políticas.

Entretanto, nos últimos decênios do século XIX, essas análises passaram por uma mudança substancial. Os aspectos econômicos eram predominantemente analisados sob o prisma "neutro" da ciência econômica. Autores como Carl Menger, William Jevons, Alfred Marshall e Léon Walras criaram uma teoria econômica baseada em princípios matemáticos, com o intuito de retirar do quadro analítico os conflitos sociais e históricos inerentes aos sistemas produtivos. O caráter científico forjado nessas teorias decorre da percepção microeconômica das relações materiais, com foco no indivíduo e sua racionalidade na tomada de decisões. Essa mudança epistemológica e metodológica ficou conhecida como Revolução Marginalista, por se estruturar na teoria da utilidade marginal — ou seja, o valor de um produto seria determinado pela utilidade adicional que ele proporciona, e não mais pelo tempo de trabalho dispendido em sua produção.

Um dos principais problemas dessa mudança paradigmática nos estudos econômicos é o afastamento da dimensão econômica das relações políticas, sociais e até mesmo ecológicas. Esse distanciamento está relacionado ao contexto histórico estudado por autores como Karl Marx e Karl Polanyi, em que a sociedade europeia, por meio de inúmeras convulsões sociais, implementou a sociedade de mercado: uma configuração político-social em que tudo é passível de troca, tudo se transforma em mercadoria — especialmente a terra, o trabalho e o dinheiro.

A Revolução Marginalista, com sua clara ideologia de liberalismo econômico, suposta lógica formal, e suas escolas de pensamento — como a liberal, a neoclássica e a austríaca —, embora se propusessem como um sistema matemático fechado e autorregulável (à semelhança da sociedade que se pretendia estabelecer) transformaram a economia em uma ciência que estuda a sociedade e o indivíduo. Porém, a imagem de ambos é uma construção de retalhos de diferentes abordagens antropológicas e filosóficas, emprestadas de outras áreas do saber e costuradas para provar, de forma tortuosa, a suposta "homeostase" das relações econômicas quando deixadas sem amarras morais ou institucionais (leia-se estatais).

Expressões como laissez-faire, laissez-passer, homo economicus, Lei de Say, ceteris paribus, utilidade marginal, egoísmo, mão invisível do mercado, economia de Robinson Crusoé, teoria dos jogos, economia comportamental e teoria dos contratos são alguns exemplos dessa tapeçaria de conceitos ensinados nos cursos de ciências econômicas — conceitos que expressam não apenas uma disciplina ambígua, mas também uma inércia epistêmica que, muitas vezes, beira a ideologia.

Simples perguntas como: “Qual é o tipo de indivíduo estudado nas ciências econômicas?”; “O que é um ‘sujeito economicamente racional’?”; “Racionalidade é apenas a maximização de benefícios materiais para si?”; “Quais os aspectos antropológico-filosóficos são levados em consideração?”; “Consideram-se contextos geográficos e históricos?” — já são suficientes para questionar o status científico das ciências econômicas.

“A ciência não acredita em magia. Mas o senso comum teimosamente se agarra a ela”, aponta Rubem Alves em Filosofia da Ciência. Seriam a mão invisível ou a sociedade de mercado um feitiço ideológico sobre a realidade, ou o curso natural da organização material da sociedade?

O real demanda abertura, atenção aos movimentos e apreensão dos elementos econômicos passíveis de análise e transformação. A ciência ordena o conhecimento a partir do real e não manipula o real a partir de interesses específicos.

Para Rubem Alves, a ciência utiliza modelos dedutivos, indutivos, testes. Seu conhecimento é baseado na empiria e no contato constante com a realidade. Seus objetos de pesquisa são confrontados com teorias e métodos e seguem um movimento progressivo: problema — questionamento — crescimento. O pensamento é ordenado, estruturado, mas deve permanecer vivo e experimental.

Trabalhos sobre a história do pensamento econômico, como os de Hunt e Sherman, permitem observar que a ideologia liberal clássica acompanhou e deu suporte à formação de diferentes manifestações socioeconômicas — do capitalismo mercantilista ao corporativo — cristalizando, no imaginário, a ideologia dos homens de negócios e do livre comércio. Na contemporaneidade, o neoliberalismo captura a episteme econômica e reforça relações de competitividade, a busca sequiosa por lucros e o desprezo pelos conflitos territoriais incitados por investimentos corporativos.

Inúmeros manifestos e estudos apontam os efeitos nefastos de uma economia embebida em ideologias de mercado que confrontam as realidades do mundo. Dentre eles, o chamado do Papa Francisco na Encíclica Laudato Si’ se destaca ao denunciar as mazelas da sociedade de mercado sobre os povos, especialmente os pobres, e a natureza. Ele denominou esse sistema de “economia que mata”, pois, ao estimular a busca cega por acumulação de riquezas, o planeta e as populações sofrem com ecocídio e desigualdades socioeconômicas sem precedentes.

Extração, exploração e dominação voltaram ao léxico cotidiano. Os conflitos sociais, políticos e econômicos transformaram-se qualitativa e quantitativamente. O mundo é invadido por bilionários do setor tecnológico, e novas zonas hipercolonialistas são formadas. A concentração de riqueza nas mãos de poucos evidencia o caráter necropolítico dos sistemas econômicos e a brutalidade social associada a eles.

A mudança é tão profunda que filósofos como Bruno Latour apontaram um novo eixo para a discussão político-econômica. Para Latour:

As ‘classes’ sempre foram organizadas e definidas de acordo com as relações de produção. Desde meados do século XIX, todos os debates políticos giraram em torno de duas questões fundamentais: como desenvolver as forças produtivas? Como partilhar e distribuir os frutos dessa produção? [...] Agora percebemos que tudo isso dependia do carvão e do petróleo — e que esse ‘pacto’ político se baseava, portanto, em uma circulação material que não é mais viável. [...] A questão climática faz da habitabilidade do planeta o problema fundamental. Esta torna-se a questão prioritária, à qual todas as outras questões políticas estão agora sujeitas.

Economia Donut: uma resposta atenta às movimentações do real

Os cursos de ciências econômicas têm capacidade de responder às demandas da sociedade do século XXI? Concentração de renda; desigualdade social brutal; digitalização da vida e seus processos de socialização; plataformização; mundo do trabalho precarizado; mutações climáticas; guerras; sindemias; ultraneoliberalismo; desconfiança nos sistemas democráticos. Todos estes e muitos outros fenômenos se convergem e simultaneamente nos desafiam no início da segunda década deste século. Cabe a nós analisarmos nossos livros-textos e indagar: os estudos com base em metodologias estáticas nos permitem captar movimento? A linearidade explica os ciclos das matérias e da natureza? As teorias econômicas, nascidas e desenvolvidas para a realidade de dois séculos atrás ainda nos auxiliam nas questões de nosso tempo? As relações humanas, com suas incertezas, vicissitudes e possibilidades, podem ser integralmente substituídas por modelos matemáticos e estatísticos?

Kate Raworth escutou o chamado do mundo contemporâneo e buscou responder algumas destas questões. Desde sua participação no evento Economia de Francisco, em novembro de 2020, a economista inglesa surpreendeu a todos com a proposição de um novo método para as ciências econômicas, chamado “Economia Donut”.

Essa sistematização vai além dos princípios da economia circular — como a regeneração da natureza e a circularidade de produtos e materiais, eliminando descartabilidade, resíduos e poluição — e introduz diversas variáveis para a análise social (como alimento, saúde, educação, emprego e renda, paz e justiça, voz política, equidade social, igualdade de gênero, habitação, redes, energia e água) e ecológica (mudança climática, acidificação dos oceanos, poluição química, sobrecarga de nitrogênio e fósforo, extração de água doce, conversão do solo, perda de biodiversidade, poluição do ar e destruição da camada de ozônio).

(Foto: Frame do evento Economia de Francisco)

Raworth se autodefine como uma “economista rebelde”. É professora sênior no Instituto de Mudança Ambiental da Universidade de Oxford, onde leciona no mestrado em Mudança e Gestão Ambiental. Também é professora de prática na Universidade de Ciências Aplicadas de Amsterdã.

Ao longo dos últimos 25 anos, sua carreira a levou de trabalhos com microempreendedores em Zanzibar até a coautoria do Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD em Nova York, além de uma década como pesquisadora sênior na Oxfam.

Segundo a professora: “O desafio da humanidade no século XXI é atender às necessidades de todos dentro dos limites do planeta. Em outras palavras, garantir que ninguém fique sem os elementos essenciais da vida (como alimentação, moradia, saúde e voz política), ao mesmo tempo em que asseguramos que, coletivamente, não ultrapassemos a pressão sobre os sistemas de sustentação da vida na Terra, dos quais dependemos fundamentalmente — como um clima estável, solos férteis e uma camada de ozônio protetora. O Donut dos limites sociais e planetários é uma abordagem seriamente lúdica para enquadrar esse desafio, funcionando como uma bússola para o progresso humano neste século.”

Apreender a realidade e criar métodos científicos para a transformação social e ecológica a partir de princípios econômicos é uma resposta adequada às demandas contemporâneas — um antídoto para o terraplanismo econômico e suas ideologias de mercado, completamente descoladas da realidade. Os paradigmas do século XXI exigem outro olhar.

A proposta de Kate Raworth reforma o pensamento ao se desviar da noção antropocêntrica, individualista e egoísta da economia tradicional (mainstream), evidenciando diversos elementos que tornam a vida na Terra possível. Esta "ruptura" na episteme das ciências econômicas é necessária, pois responde a um chamado real: ao bem comum em detrimento dos interesses de poucos e ao clamor da natureza, que exige regeneração e revolução na concepção de materialidade.

O método da Economia Donut não ficou apenas no campo teórico, mas passou para a prática por meio de ações territoriais e políticas urbanas através do Doughnut Economic Action Lab (DEAL). O DEAL trabalha com oficinas e cursos em comunidades e em diversas universidades para implementar projetos de negócios e cursos de economia baseados no método donut. Planejamento urbano, como foi no caso de Amsterdã, assim como projetos econômicos locais e diversas palestras são algumas das ações do laboratório.

“Todos os economistas deveriam repensar os indicadores do mundo em que vivemos e questionar como lidamos com os nossos recursos planetários. Nosso bem-estar depende dos sistemas que suportam a vida na Terra. Estes foram mal compreendidos no século passado e deixados à margem da teoria econômica. Obter o maior retorno e lucros possíveis deve deixar de ser a meta. E a base deve ser a proteção ambiental, não pode ser algo acessório. O desenho das empresas do século XXI precisa gerar valor social, ambiental e cultural, compartilhar e beneficiar a criação conjunta e a devolver ao planeta do qual dependemos”, aponta Kate.

colocar aqui a legenda (Foto: nome do fotógrafo)

SERVIÇO

Economia Donut: como superar paradigmas ultrapassados

📆 Palestra online e gratuita

🗓 8 de maio, das 10h às 11h30

👤 Com Kate Raworth, do Doughnut Economics Action Lab (Reino Unido)

📍 Transmissão ao vivo no YouTube e Facebook do IHU

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