05 Mai 2025
É o que revela um relatório da CIDH publicado um ano após a tragédia. Milhares de famílias continuam desabrigadas, enquanto dezenas vivem em lares ou abrigos temporários.
A informação é de Jorge Carrasco, publicada por El País, 05-05-2025
No estado brasileiro do Rio Grande do Sul, as enchentes extremas que afetaram centenas de cidades entre abril e maio de 2024 deixaram uma marca profunda. Quase 200 mortos, mais de 500.000 pessoas deslocadas, bairros destruídos e negócios fechados criaram um cenário de devastação, onde a esperança de reconstrução chegou lentamente para amenizar o trauma coletivo. Mas, nesta região, a crise climática não só gerou incerteza, mas também expôs um novo padrão de vulnerabilidade estrutural que, de acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), está ocorrendo com mais frequência na América Latina.
Um ano após o desastre, a Relatoria Especial de Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Redesca) da CIDH publicou um estudo sobre os impactos das enchentes no estado do sul do Brasil. Este é o primeiro relatório deste órgão dedicado a uma tragédia climática. Após uma visita a diversas comunidades afetadas, o documento aprofunda-se na relação entre as mudanças climáticas e as decisões políticas locais, que, em um contexto de degradação ambiental gradual, intensificam as desigualdades pré-existentes nas comunidades locais e deixam milhares de pessoas presas entre o abandono institucional e a urgência da reconstrução.
“A tragédia climática no Rio Grande do Sul foi de enorme magnitude”, afirma Javier Palummo, relator especial da CIDH. É muito importante destacar que os esforços do Estado brasileiro para mobilizar recursos públicos, coordenar os diversos níveis de governo e responder a esta crise climática foram enormes. Mas a degradação ambiental cumulativa, o declínio da proteção ambiental, a crescente pressão sobre o bioma Pampa e os efeitos dos modelos de expansão agrícola pavimentaram o caminho para um desastre sem precedentes.
O relatório da Redesca destaca que mais de dois terços dos municípios do estado foram afetados. Nas áreas rurais, quase 206 mil propriedades foram danificadas e, nos municípios mais afetados, entre 84% e 92% dos empregos foram perdidos. Pelo menos 16.000 membros de comunidades indígenas também foram diretamente afetados.
Este desastre, no entanto, não foi uniforme. “O racismo ambiental se manifesta na exposição desproporcional de comunidades afrodescendentes, quilombolas e indígenas a riscos socioambientais”, afirma a Redesca no relatório, produzido após diversas conversas com representantes de comunidades quilombolas, povos indígenas, pessoas que trabalham em economias informais, agricultores familiares sem redes de apoio e mulheres que lideravam comitês de emergência em abrigos precários.
Segundo Palummo, uma das maiores consequências desta crise climática tem sido o surgimento de novas formas de vulnerabilidade. "Pessoas que não foram identificadas como grupo-alvo para o Estado fornecer apoio social se encontram nesse grupo da noite para o dia. São pessoas que ficaram sem nada", diz o relator. “Os riscos climáticos estão criando novas formas de vulnerabilidade, e isso está muito presente no Brasil (...) A vulnerabilidade climática obriga os Estados a repensarem a forma como se organizam para prover proteção social.”
Em Porto Alegre, Pelotas e outras cidades afetadas, como as da região do Vale Taquari, a Redesca visitou escolas transformadas em abrigos. Lá, foram documentadas as condições precárias de pessoas com deficiência ou doenças crônicas, bem como diversos relatos de violência sexual contra mulheres e meninas ocorridos nos momentos mais tensos do desastre. Segundo o relatório, o Protocolo Nacional de Proteção Integral, em vigor no Brasil desde 2013, não foi totalmente implementado. As autoridades afirmam, no entanto, que várias investigações foram iniciadas imediatamente após as alegações, levando até à prisão de muitos suspeitos.
A situação das crianças era crítica durante as enchentes. A UNICEF estima que mais de 10.000 crianças foram alojadas em abrigos improvisados. As rotinas escolares foram interrompidas. E, depois que as chuvas extremas pararam, muitas dessas crianças tiveram que ser reintegradas às escolas de outros municípios.
“A saúde mental é uma questão central nesses tipos de tragédias”, diz Palummo. 42% da população entrevistada pela Redesca apresentou sintomas de estresse pós-traumático. “Os impactos emocionais deste evento permanecerão conosco por muito tempo.”
O relatório também aborda questões que vão além da emergência. Para Palummo, um dos objetivos mais importantes do estudo era entender o que levou à escalada da catástrofe. O sistema de controle de enchentes em Porto Alegre, por exemplo, foi um dos mais problemáticos. Até sete falhas foram identificadas em diques e estações de bombeamento da cidade. Mas o sistema de alerta, no qual as pessoas confiavam para saídas de emergência, não funcionava corretamente. "A resposta foi tardia e insuficiente nos territórios periféricos", conclui o relatório.
Pesquisas recentes realizadas pela Agência Nacional de Águas (ANA) em colaboração com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Universidade de Brasília e o Serviço Geológico do Brasil indicam que eventos como o de 2024, antes considerados raros, podem se tornar mais intensos e ocorrer a cada dez anos; uma frequência cinco vezes maior que na década anterior. Projeções apontam para um possível aumento de 20% nas enchentes dos rios do estado. E em cidades como a capital, Porto Alegre, ou outras como Eldorado do Sul ou Pelotas, o nível da água pode ultrapassar os atuais níveis de proteção em até um metro. Na maioria das comunidades, os projetos de proteção contra enchentes ainda não foram licitados. E para muitos moradores, tudo o que resta é esperar que não chova como no ano passado.
Enquanto isso, o governo estadual enfrenta o desafio de reconstruir a região buscando um modelo compatível com as novas condições climáticas, com projetos mais amplos, como o Plano Rio Grande. Até o momento, foram destinados 89 bilhões de reais (17,1 bilhões de dólares) à recuperação do Rio Grande do Sul, o equivalente a 80% dos recursos previstos. No entanto, um ano após a tragédia, milhares de famílias continuam sem receber ajuda, enquanto dezenas de outras vivem em lares temporários ou abrigos. Muitas comunidades criticaram a falta de participação em decisões complexas de realocação e projetos de desenvolvimento urbano.
“É preciso reconhecer as desigualdades históricas e estruturais que definem quem sobrevive, quem espera e quem nunca é ouvido”, conclui o relatório da Redesca. Para Palummo, que apresentará o relatório em evento organizado pelas comunidades atingidas de Porto Alegre nesta segunda-feira, o papel ativo do Estado neste momento é crucial: "Essas questões devem ser enfrentadas pelo Estado e fazer parte de uma agenda de mitigação. O impacto diferenciado desta catástrofe sobre as populações mais vulneráveis deve ser levado em conta", afirma.