29 Abril 2025
"Francisco de Roma é mais um Francisco de Assis".
O artigo é de Vitor Hugo Mendes, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos — IHU, 08-03-2025.
Vitor Hugo Mendes é presbítero da Diocese de Lages/SC. Doutor em Educação (UFRGS), doutor em Teologia (Salamanca/Espanha), pós-doutor em Pensamento Ibérico e Latino-americano, pós-doutor em Educação. Pároco emérito da Par. N. S. das Graças (Lages). Liberado para temas de Formação, atua como orientador de retiros, conferencista, assessor e consultor em temas de Teologia, Pastoral, Espiritualidade, Educação e Psicopedagogia. Especialista em Pastoral Urbana. Autor da obra, em dois volumes, Liberación, um balance histórico bajo el influjo de Aparecida y Laudato si’: el aporte latinoamericano de Francisco (Editora Appris/Amerindia, 2021), entre outras publicações.
“Cada santo é uma mensagem que o Espírito Santo extrai da riqueza de Jesus Cristo e dá ao seu povo”. (Papa Francisco, Gaudete et exsultate, n. 21)
No dia 13-03-2013, Jorge Mario, cardeal Bergoglio, de 76 anos, foi eleito Bispo de Roma, Papa da Igreja Católica. Uma grande novidade. Por primeira vez um latino-americano, do ‘fim do mundo’, ocupava a cadeira de Pedro. Foi o primeiro a chamar-se Francisco, uma opção de vida e missão profundamente identificada com il poverello di assisi (o pobrezinho de Assis), Francesco, ícone da fraternidade universal e da reforma da Igreja a partir dos pobres.
Além disso, Francisco de Roma foi o primeiro em muitos outros quesitos: o primeiro papa argentino, o primeiro a torcer pelo San Lorenzo, o primeiro jesuíta, o primeiro de língua espanhola, o primeiro que não participou do Concilio Vaticano II, o primeiro a morar na casa Santa Marta, o primeiro a conviver com um papa emérito, o primeiro a combater fortemente o clericalismo, o primeiro decisivamente ecológico, o primeiro a nomear mulheres e leigos para cargos importantes na Cúria romana... o primeiro a ser tão diferente, ‘normal’ e cristão no Vaticano.
Do início ao fim, o magistério não escrito do Bispo de Roma foi gigantesco e potente em suas metáforas e simbolismos. Ex corde ecclesiae (do coração da Igreja), um pastor autêntico com ‘cheiro de ovelhas’. (“Aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar feridas e aquecer os corações dos fiéis; precisa de proximidade, vizinhança”, dizia o santo padre.)
A primeira viagem apostólica de Francisco fora do Vaticano foi a Lampedusa. Ali lembrou que o Mediterrâneo é “o maior cemitério da Europa”, rezou pelas vítimas e assim chamou atenção para a situação dos imigrantes (paroikos) no mundo. Porta-voz do ‘sul global’, também deixou evidente sua opção por uma Igreja em saída missionária rumo às periferias geográficas e existenciais.
Sua primeira viagem internacional foi ao Brasil, por ocasião da JMJ no Rio de Janeiro (julho/2013). Fez questão de ir rezar aos pés da Senhora Aparecida (SP), santuário mariano onde participou da V Conferência do Episcopado Latino-americano (2007), ali germinaram as notas prévias do seu programa de governo para a Igreja de Cristo (Evangelii gaudium). Depois disso foram outras 45 viagens apostólicas dirigindo-se a todos os cantos do mundo. Visitou 65 países em todos os continentes.
Foi um pontificado realmente intenso, com uma obra magisterial volumosa, inovadora, ousada e profética. Exercitou e promoveu uma criativa ‘hermenêutica pastoral’ da Igreja (tradição, magistério, teologia e espiritualidade): A alegria do Evangelho; O Rosto da Misericórdia; O cuidado da casa comum; O amor em família; A santidade no mundo atual; Querida Amazônia; Todos irmãos; Vos sois a luz do mundo (sobre os abusos na Igreja); Promover a teologia do futuro; Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão; A esperança não engana (Jubileu da Esperança 2025), para citar alguns.
Com discernimento, realismo e sabedoria, sem pronunciar ‘anátemas’, dialogou sobre os riscos, desafios e oportunidades da ‘mudança de época’. Fez ver o problema de uma economia sem rosto humano e que mata, denunciou a cultura do descarte e a indiferença. Sempre propositivo, incentivou a cultura do encontro e da solidariedade, deu lugar a uma ecologia integral no cuidado da casa comum.
A enorme tarefa que lhe foi confiada tratou de ser sinodal e alcançou notabilizar – lembrando a tradição apostólica – doze anos no último13 de março. Francisco iniciou processos suficientes para finalmente colocar a Igreja no Terceiro Milênio e inaugurar uma nova etapa evangelizadora.
Naqueles dias, o discípulo de santo Inácio, entregue a redobrados exercícios espirituais, entre a vida e a morte, estava internado no Hospital Gemelli, em Roma, para tratar de uma grave pneumonia bilateral. Teve alta no dia 23 de março.
Mesmo ainda em recuperação, no dia 10 de abril Francisco adentrou pelas portas da Basílica de São Pedro em sua cadeira de rodas. O que parecia ser um passeio ao ar livre tornou-se algo inusitado. Para a surpresa de todos, o Santo Padre apresentou-se em ‘trajes civis’. Vestia roupas comuns (calça preta, camiseta branca e se fazia cobrir por algo semelhante a um ‘poncho’), trazia cânulas de respiração e as sequelas de um sacrificado período de internação hospitalar.
Embora visivelmente fragilizado, Francisco parecia habitual e muito à vontade com tudo e com todos. Tinha a intenção de rezar diante do túmulo de São Pio X, mas deu atenção aos fiéis que, admirados e incrédulos, por fim reconheceram naquele idoso enfermo, com vestimenta incomum, o Santo Padre. E, na ocasião, poderia parecer mais um detalhe bem-humorado, o papa quis saudar os trabalhadores que cuidavam de finalizar a obra de restauração da Cátedra de Pedro. Coisas de Francisco!
Casual ou intencional, o fato ganhou repercussão nas redes sociais e despertou todo tipo de comentários. Contudo, o despojamento de Francisco, coincidindo com o tempo quaresmal, parecia sugerir, uma vez mais, o desejo de uma Igreja simples e acolhedora, “pobre para os pobres”. O papa, em primeiro lugar, dava o exemplo de como sentir-se em casa na Igreja e profundamente humano no serviço pontifício.
Naquele dia a enorme basílica tornou-se extensão da casa Santa Marta. Revestido unicamente de sua humanidade, Francisco era Marta, Maria e Lázaro. Arrancado da morte, tirado do túmulo, devolvido à vida, não havia tempo a perder; deixava-se guiar pelo Mestre. Acrisolado de toda mundanidade, sem necessitar de qualquer paramento religioso, insígnia pontifícia ou adereço eclesiástico, o bispo de Roma mostrava onde reside a verdadeira autoridade. “Tirou o manto e começou a lavar-lhes os pés”.
Por ocasião do domingo de Páscoa, 20 de abril, sem esconder sua máxima fragilidade, o Santo Padre de novo fez-se presente na Praça São Pedro. Foi encontrar-se com os seus diocesanos e os muitos peregrinos do Ano Jubilar da Esperança. Não sem dificuldades, ainda rezou a tradicional benção Urbi et Orbi (para a cidade e o mundo).
Francisco carregava em si as chagas de Cristo, morto-Ressuscitado. Arrancou aplausos da multidão de fiéis ao percorrer no papamóvel os corredores da praça, mal conseguindo saudar e abençoar a todos. Foi a sua memorável despedida. Missão cumprida. Bom pastor até o último momento. Concluía assim sua via-crucis, findava sua semana santa com alegria pascal (Evangelii gaudium).
No amanhecer do dia seguinte, 21 de abril, segunda-feira, o mundo acordou com a notícia de que, “o bispo de Roma, Francisco, voltou à casa do Pai”. Aos 88 anos de idade, Jorge M. Bergoglio celebrou sua páscoa definitiva.
Iniciou-se uma semana de grande movimentação na Cidade do Vaticano e intermináveis manifestações de estima e bem-querer a Francisco de Roma. Morreu como viveu, com simplicidade, rodeado de gente até o fim. O funeral, por disposição de sua autoridade, foi o primeiro sem as tradicionais pompas pontifícias: o cerimonial do Papa Francisco será "de um pastor e não de um soberano", anunciou o mestre de celebrações litúrgicas aos cardeais.
No sábado, 26 de abril, sob o olhar atento de uma grande multidão e acompanhado por uma multidão de internautas mundo a fora, Francisco quis ainda ser peregrino de esperança e deixou-se levar pelas ruas da histórica Città Eterna. Ao término da última jornada, foi calorosamente acolhido e abraçado por aqueles que tanto amou, os prediletos de Jesus, os mais pobres e marginalizados: pessoas carentes, sem-teto, presos, transgêneros, migrantes... Só então foi sepultado, como pediu, com toda a discrição, na Basílica Santa Maria Maggiore, em Roma. Repousa sob o olhar materno da Salus Populi Romani (antiguíssimo ícone da bem-aventurada virgem Maria).
Ressoa ainda entre nós a ternura e o vigor de suas palavras testamentárias: “Que o Senhor dê a merecida recompensa àqueles que me quiseram bem e que continuarão a rezar por mim. O sofrimento que esteve presente na última parte de minha vida eu o ofereço ao Senhor pela paz no mundo e pela fraternidade entre os povos”.
Francisco de Roma é mais um Francisco de Assis.