27 Março 2024
Cerca de 400.000 pessoas se reuniram na Praça de Maio para reivindicar os direitos humanos, 48 anos após o golpe de Estado. Foi uma rejeição ao presidente, um protesto contra a destruição do Estado e, também, uma promessa de luta.
A reportagem é de Emiliano Gullo, publicada por Ctxt, 26-03-2024.
Na noite de domingo, 24 de março, fomos dormir um pouco mais acompanhados. Um pouco mais organizados. Um pouco mais fortes. Essa foi a sensação ao sair da Praça de Maio, onde nos encontramos — desde a manhã até o anoitecer — cerca de 400.000 pessoas para comemorar a vigência dos direitos humanos, 48 anos após o golpe de Estado cívico-militar. Para lembrar a resistência ao terrorismo de Estado. Dias atrás, uma militante da organização HIJOS denunciou o abuso e a tortura por parte de dois sujeitos que a esperaram dentro de casa. A mobilização também foi parte central da rejeição ao projeto representado por Javier Milei, que acaba de completar cem dias no governo nacional. Um protesto contra a atomização da sociedade, contra a destruição do Estado, de suas empresas e de seus trabalhadores, contra a financeirização da vida.
Foi também uma promessa de luta espalhada por toda a praça. Lá estavam os trabalhadores da agência nacional Télam, que ainda não conseguem entrar no prédio. Os trabalhadores do Canal 7, a emissora estatal que sofreu o corte de dois programas de notícias, com dezenas de trabalhadores já nas ruas e que, segundo rumores, teria o mesmo destino que a Télam: prédio cercado e sem acesso para os funcionários. As organizações sociais e políticas se multiplicavam ao longo da Avenida de Maio, a principal artéria que alimenta o fluxo de pessoas na praça. Estatais e privadas, organismos e empresas, em todos os setores da produção e dos serviços, houve — há — demissões, ameaças ou cortes. E pessoas não organizadas, famílias com recém-nascidos, pessoas sozinhas. Todos formaram um coro de gritos e cantos antifascistas, antimileístas, entre a Avenida de Maio e a Praça de Maio, onde se destaca a Casa Rosada.
Em seu plano para desmantelar o Estado, que já dura exatamente 115 dias, o governo de Javier Milei colocou os meios de comunicação públicos como prioridade exclusiva. "Será um massacre", me disse estes dias um jornalista amigo ao ver as primeiras notícias do avanço do governo contra seu próprio canal de televisão. O único público. O mais antigo de toda a programação. O primeiro a transmitir em cores. O que tem mais funcionários, com os melhores salários. Com um terreno próprio avaliado em 45 milhões de dólares. E uma ficha para ser vendida como uma pizzaria.
O Estado para matar o Estado. Um corpo se autoamputando. Seu prazer. A celebração da destruição. O gozo do sofrimento. No universo Milei, a política é uma arma de devastação dupla; o Estado já não garante nada, pelo contrário. Só existe, em última instância, como função punitiva. E, ao mesmo tempo, incentiva o canibalismo social como único método de sobrevivência. Quem não tem dinheiro, morre. Quem não tem como se defender, morre. O Estado observará como o imperador das arquibancadas do circo.
Em pouco mais de três meses de gestão, talvez o maior feito de Milei tenha sido transferir sua pulsão de vida do mundo cotidiano. O antigo axioma individualista "salve-se quem puder" agora é "salve-se quem puder acabar com o outro". A violência do presidente contra os governadores do sul em relação à distribuição dos impostos coparticipáveis. As ameaças aos deputados e legisladores em caso de não aprovarem suas leis. "Se procuram conflito, conflito terão", avisou em seu discurso de abertura das sessões do Congresso. Ou contra sua própria vice-presidente, a quem enviou seu exército de trolls para ameaçá-la nas redes por permitir o tratamento do DNU no Senado.
A rua é sensível ao clima político. Isso também foi entendido pelo responsável pelo supermercado chinês Los Hermanos, no bairro de Almagro, no centro de Buenos Aires. Eu o vi numa noite de semana, com pouco movimento na Rua Lavalle.
Uma caixa está me cobrando por uma garrafa de vinho e algo acontece que a deixa nervosa. Uma sombra passa por trás de mim. Ela olha para cima e avisa ao responsável da loja que entrou um rapaz que tentou roubá-lo alguns dias atrás. O rapaz está usando um casaco azul-celeste e um boné branco. Eu pago pelo vinho e, quando viro a cabeça, me deparo com a saída bloqueada pelo responsável e um funcionário. O responsável está segurando um facão. São dois rapazes de pouco mais de 20 anos, como o rapaz. Eu passo entre os dois. Eles avançam enquanto eu saio; ocupam o lugar que acabo de deixar. Só ouço uma voz. "Que facão grande, o que você vai fazer com ele", diz o rapaz de casaco azul-celeste antes de receber um, dois, três, quatro golpes de facão. Ele se cobre com o braço e sai correndo. Não tem cortes visíveis. O responsável bateu com o lado plano do facão. E agora ele grita. "É a última vez que você vem roubar aqui, entendeu?"
Milei incorporou as estratégias dos movimentos políticos que considera inimigos. Ele as normaliza, as inverte e as executa com a firmeza de quem as sente como suas desde sempre. Exerce força e liderança reconhecidas por muitos líderes peronistas e macristas, mas seu carisma não é amigável. É um carisma do rancor.
Seu gesto estético sempre foi um chamariz para as audiências. E um trunfo para os produtores de televisão, que o chamavam quando precisavam aumentar a audiência com alguém que não tivesse limites para fazer um show. Seu show.
Milei é um ilusionista de certezas. Em seu discurso, tudo terá uma explicação simples, uma base de aparência racional. Uma causa e uma solução. A certeza que acalma. Uma fé disfarçada de lógica. "Sigam-me, não os decepcionarei", era o slogan de campanha presidencial de seu político favorito — Carlos Menem — em 1989. Em 2024, Milei poderia dizer: "Acreditem em mim, vou explicar".
Ao contrário de Mauricio Macri, Milei constrói seu próprio relato de grandeza nacional e se apropria de um passado que caminhava para essa grandeza. A Argentina deve retomar um rumo que se perdeu no meio do século XX. Ele romantiza o país do início do século, aquele celeiro do mundo onde os ricos jogavam, literalmente, manteiga no teto (ou no chão, na verdade) e o resto da população morria de fome e de febre amarela. Ou seja, ele dá um começo ao seu projeto, um mito fundador. Ele se apropria de elementos do liberalismo argentino como um veículo de afirmação identitária.
A ex-presidente Cristina Fernández disse em 2016, seu primeiro ano fora do governo, que "o Estado também pode desorganizar sua vida quando não oferece políticas de certeza e previsão". Na tempestade do caos argentino, Milei, com a inexperiência de um mágico de feira, consegue vender equações hilárias como verdades científicas. Ele move as xícaras de um lado para o outro, as mistura, sem que a oposição entenda onde está a bolinha. E ao redor, os crentes. Um capitalismo evangélico para um país desesperado e pronto para acreditar. Até quando? Ele teve a astúcia, por sorte ou consciência, de encontrar o encaixe histórico que lhe permitiu cortar onde precisava. Fácil e lucrativo como uma banca de doces dentro de uma escola. Talvez haja uma pista no consumo cultural dos jovens — principal nicho libertário — onde, salvo exceções pontuais, os novos ídolos musicais fazem culto à genialidade individual, cantam para o dólar e os carros milionários.
Enquanto isso, o presidente adota uma estratégia pouco convencional para se firmar no poder: criar incêndios em todos os setores, abrir frentes de conflitos simultâneos, inventá-los onde não existem, aprofundá-los onde acabaram de surgir. Como se quisesse transferir sua própria instabilidade para o país que governa. Che Guevara acreditava que, se pequenos focos de insurreição fossem gerados, o incêndio revolucionário seria imparável. Milei, novamente espelhando, pratica um foquismo patronal com a obsessão de queimar tudo.
Avenida de Maio, domingo, 24 de março. Um homem de cabelos grisalhos e sua esposa se emocionam ao ver uma coluna de militantes jovens passando. São meninos e meninas de organizações peronistas de base. O homem chora. A mulher o segura pela cintura e apoia o rosto em seu corpo. Eles não estão filiados a nenhuma organização, nenhum sindicato. Eles só estão ali, na calçada, observando as pessoas passarem. Os jovens os filmam. Um deles vai postar o vídeo em uma rede social e escrever "há futuro".
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Oxigênio popular nos cem dias de Milei - Instituto Humanitas Unisinos - IHU