09 Março 2024
"O desenvolvimento da IA atingiu um momento crucial. O enorme potencial da tecnologia, para trazer enormes ganhos humanos e econômicos, mas também para causar danos muito reais, está a tornar-se cada vez mais evidente. [...] sem uma orientação eficaz, as inovações da IA poderiam ser desenvolvidas e implementadas de formas que simplesmente ampliassem as atuais disparidades econômicas, em vez de trazerem uma economia global fortalecida para as gerações vindouras", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
Eis o artigo.
James Manyika, vice-presidente senior do “Research, Technology, and Society”, do Google, e Michael Spence, prêmio Nobel de Economia de 2001, escreveram juntos um artigo na importante revista Foreign Affairs (nov-dez/2023) tentando responder à pergunta: pode a inteligência artificial (IA) reverter a desaceleração da produtividade?
Sem entrar em discussão em questões econômicas mais técnicas, sabemos que o aumento da produtividade é fundamental para o processo de acumulação do capital e, portanto, do lucro dos capitalistas/acionistas e também no processo de legitimação ideológica do sistema por meio da difusão da utopia capitalista no interior da chamada “classe média” e dos aspirantes à classe média. Por isso, novas tecnologias e a IA devem ser também objetos de reflexão da Teologia da Libertação (TL). A questão é: a partir de qual ou quais perspectivas a TL e o cristianismo de libertação podem e devem contribuir às lutas sociais.
Na medida em que o aumento da automação e robotização nas fábricas diminuiu profundamente o número de operários (a partir da década de 1970) e alterou as relações sociais de classe, o capitalismo reelaborou os seus mitos utópicos. Por exemplo, assumiu o neoliberalismo, que abandona o mito de que no futuro todos participarão no “banquete”, e apresenta publicamente o seu caráter cínico de que só os que têm “mérito/riqueza” têm direitos e que os pobres e excluídos do “mercado livre” são criminosos ou pecadores a serem punidos agora e para sempre. Atualmente, com o aumento do uso da IA nos escritórios e em outros espaços de trabalho, os estudiosos estão prevendo o aumento da desigualdade social.
Criação de novas importantes tecnologias afetam relações de trabalho, a distribuição da riqueza produzida e também as suas interpretações culturais (incluindo a visão religiosa). Sempre foi assim na história humana. Por exemplo, não se pode entender os fatos e transformações importantes que ocorreram na Bíblia sem compreendermos as transformações tecnológicas subjacentes. A grande diferença é a velocidade e o impacto dessas transformações no mundo atual, especialmente com a IA. E, como não poderia não acontecer, em torno do IA há muitos mitos, a favor ou contra. Mitos são sempre narrativas que impactam na compreensão da sociedade do que é “ser humano”, ou que “poderia e deveria ser humano”, e, com isso, o que é ou deveria ser a história.
Diante das duas grandes crises atuais, a profunda desigualdade social e a crise ambiental, o mito de a IA ser capaz de realizar o sonho do “trans-humanismo” – isto é, o mito de que seres humanos (a elite, os que têm mérito/riqueza e poder) podem superar a sua condição humana e se tornar “pós-humano” (ou em linguagem medieval, um ser sobrenatural) – tem também o papel de nos escapar da realidade ou de nos fazer esquecer da realidade da crise. Mais do que isso, nos esquecer dos sofrimentos dos pobres e das vítimas.
Os autores do artigo que comentei acima afirmam: “O desenvolvimento da IA atingiu um momento crucial. O enorme potencial da tecnologia, para trazer enormes ganhos humanos e econômicos, mas também para causar danos muito reais, está a tornar-se cada vez mais evidente. [...] sem uma orientação eficaz, as inovações da IA poderiam ser desenvolvidas e implementadas de formas que simplesmente ampliassem as atuais disparidades econômicas, em vez de trazerem uma economia global fortalecida para as gerações vindouras.” A expressão fundamental dessa citação é “orientação eficaz”. A chamada “inteligência” artificial é uma máquina ou um padrão de aglutinar muitos, muitos dados, mas não é capaz de criar explanações. Mais do que isso, como afirmam Chomsky e seus companheiros do artigo “The False Promise of ChatGPT” (CHOMSKY, Noam; ROBERTS, Ian; WATUMULL, Jeffrey. The New York Times, 08/março/2023): “A inteligência consiste não apenas em conjecturas criativas, mas também em crítica criativa. O pensamento de estilo humano baseia-se em explicações possíveis e na correção de erros, um processo que limita gradualmente as possibilidades que podem ser consideradas racionalmente. […] Mas o ChatGPT e programas similares são, por definição, ilimitados no que podem “aprender” (ou seja, memorizar); eles são incapazes de distinguir o possível do impossível.”
Um dos motivos de cairmos nas tentações dos mitos idolátricos é exatamente a promessa de realizar no interior da história o que é impossível. Isto é, a negação da distinção entre o que é possível e o impossível. E é em nome da promessa da realização de um desejo infinito, impossível, é que se justifica e exige sacrifícios de vidas humanas.
A aprendizagem da distinção entre o possível e o impossível só ocorre em pensamentos críticos capazes de reconhecer os limites da realidade humana e natural, e entre seres humanos abertos ao ouvir e ver os sofrimentos de outros seres humanos.
Esta relação entre a) a razão científica, social e natural, b) o pensamento crítico ético e c) a sensibilidade frente aos que sofrem que nos leva a sair do nosso mundo egoístico (a espiritualidade) pode ser uma das contribuições da TL hoje.
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Inteligência Artificial, o não esquecer do sofrimento humano e a Teologia da Libertação. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU