Umbandistas resistem à pressão pela conversão em quatro comunidades tradicionais de Betânia (PE), onde há nove igrejas.
A reportagem é de Géssica Amorim, publicada por Agência Pública, 03-07-2023.
Entre as imagens de Santa Luzia, Cosme e Damião, São Jorge, Nossa Senhora da Conceição, Preto Velho, Iemanjá e da Cabocla Jurema, Abel José, 43 anos, sacerdote da Umbanda, acende algumas velas, apanha suas guias de proteção e acomoda o seu chapeu de palha na cabeça. Ele se prepara para atender quatro pessoas de povoados vizinhos, que vieram à sua casa em busca de ajuda espiritual e para tratar de problemas de saúde.
Abel José, sacerdote da Umbanda. (Foto: Géssica Amorim | Agência Pública)
O encontro acontece discretamente num quartinho construído nos fundos da garagem da sua casa. Abel é morador do quilombo Sítio Bredos, comunidade onde vivem 135 famílias e que é uma das quatro certificadas pela Fundação Cultural Palmares como remanescentes de quilombos no município de Betânia, no Sertão do Moxotó, em Pernambuco. As outras três são os sítios Baixas, São Caetano e Teixeira.
Altar com a imagem de Santa Luzia, que no sincretismo religioso é representada por Ewá. (Foto: Géssica Amorim | Agência Pública)
Altar com imagens de Cosme e Damião, São Jorge, Nossa Senhora da Conceição, Preto Velho, entre outros. (Foto: Géssica Amorim | Agência Pública)
Nesses povoados, quase não há mais praticantes de religiões de matriz africana. Solitários, Abel, Seu Joaquim Firmo (também do quilombo Bredos) e Dona Maura Maria da Silva (do quilombo São Caetano), são os últimos umbandistas das comunidades onde vivem. No Sítio Teixeira, já não há mais praticantes da Umbanda.
Os quilombos de Betânia têm sido tomados pela atividade missionária evangélica desde a construção da primeira igreja da Assembleia de Deus no quilombo Bredos, há aproximadamente 20 anos. De lá para cá, outras igrejas e congregações evangélicas, pentecostais e neopentecostais, de diferentes ramificações, se instalaram nos seus territórios. Hoje já são nove templos espalhados pelas quatro comunidades, onde vivem aproximadamente 900 famílias.
Os templos pertencem à Assembleia de Deus, à Adventista do Sétimo Dia e à Mundial do Poder de Deus – do apóstolo e televangelista Valdemiro Santiago, que tem mais de seis mil templos no Brasil e ficou conhecido por tentar vender feijões abençoados para curar a Covid-19, durante a pandemia. Só a Assembleia de Deus, maior denominação pentecostal do mundo, tem cinco igrejas construídas nos quilombos de Betânia. Enquanto as igrejas evangélicas se multiplicavam dentro dos territórios dos quilombos, as religiões de matriz africana foram perdendo espaço. Os últimos praticantes da umbanda estão isolados e sofrem pressão para abandonar seus rituais. Abel, Joaquim e Maura resistem.
Igreja da Assembleia de Deus no quilombo Bredos. (Foto: Géssica Amorim | Agência Pública)
Diferentemente do que acontece num terreiro de umbanda, onde os seus adeptos se reúnem para realizar as suas cerimônias coletivas, nos quilombos de Betânia os rituais são feitos de forma individual, em cômodos escondidos nas casas. Os praticantes da umbanda por lá temem o preconceito que sofrem por sua religião, muitas vezes demonizada nas tradições cristãs. Dizem que são constantemente abordados por pastores locais, que tentam evangelizá-los e pressionados até dentro de suas famílias, onde muitos se converteram à religião evangélica.
Nenhum deles frequenta um terreiro. Também não foram disciplinados com direcionamentos a respeito da prática da umbanda e a sua ritualística. Tudo o que sabem sobre suas crenças, aprenderam com os seus guias e seus ancestrais. Dona Maura Maria, 73 anos, é moradora da maior comunidade quilombola de Betânia, São Caetano, com quase 400 famílias. Seus familiares e vizinhos evangélicos já tentaram convertê-la algumas vezes e ela diz que considerou mudar de religião por causa dos julgamentos que recebe. “Muita gente não entende o que a gente faz. Não sabe do bem que a gente leva pra muitas pessoas. Acham que é coisa ruim”, diz. “Em todo canto, tem quem use a sua fé pra fazer o bem e fazer o mal. Isso é do ser humano. Uma vez, eu pensei em me converter, mas a voz que eu escuto falou ‘não vá, não passe. A sua lei [religião] também é lei de Deus’. E eu não fui. Já está com mais de 50 anos que eu trabalho.”
No quilombo Bredos, comunidade que tem quatro igrejas evangélicas, Abel mora com a sua esposa e os seus dois filhos. Ele é sobrinho de dona Francisca, ex-umbandista do quilombo Teixeira, que se converteu há pouco mais de um ano.
Abel conta que desenvolveu a sua mediunidade ainda aos 14 anos e lamenta a conversão da tia, mas diz que já pensou em se converter também. É que sua esposa e seus dois filhos são evangélicos, frequentadores da Assembleia de Deus. “O pessoal tem raiva de quem mexe com essas coisas [religiões de matriz africana]. Muito do que as pessoas direcionaram pra mim, de julgamentos, de coisas ruins, acabava respingando na minha esposa, na minha família. Ela passou pra lei de crente por causa disso. E eu pensei em passar também, mas nunca fui adiante. O povo e os meus guias não deixam”. Acreditar que tem uma missão a cumprir na umbanda faz com que Abel resista às pressões para que ele abandone sua religião. “Muitas pessoas vêm aqui direto, pra eu rezar. De olhado, de ventre caído, de dor de dente, pra parar de beber, com algum problema de saúde. Isso também é um motivo pra eu não me converter, o que me faz ficar na religião”, conta. Os familiares dele já se renderam aos apelos missionários evangélicos. “Minha esposa e meus filhos são evangélicos, mas acredito que tenho uma missão aqui na terra”.
Além das pessoas que Abel costumava receber em sua casa, há aquelas que são encaminhadas por dona Francisca, que sucumbiu ao assédio de familiares e vizinhos e se converteu há cerca de um ano. Ela mora no quilombo Teixeira e ainda é procurada como umbandista, mas já não realiza mais trabalhos. “Graças a Deus, eu recebo todo mundo, como já recebia o pessoal que costumava vir aqui”, conta Abel.
Dona Maura é uma das últimas praticantes da umbanda em sua comunidade. (Foto: Géssica Amorim | Agência Pública)
Abel também é um dos últimos umbandistas onde vive. (Foto: Géssica Amorim | Agência Pública)
A chegada dos templos evangélicos mudou a dinâmica de convivência entre religiões nos quilombos de Betânia. Assim como em muitas comunidades rurais sertanejas, por muito tempo, os praticantes da umbanda de lá conviviam com os praticantes do dito catolicismo popular. Há três capelas da igreja católica presentes nos territórios, onde se realizam novenas, encontros para rezar terços e rosários e, esporadicamente, a celebração de missas. Agora, as comunidades passam a limitar ainda mais o espaço para o culto e a prática de outras religiões, principalmente as de matriz africana.
Maria Helena dos Santos, 54 anos, quilombola líder da comunidade Bredos desde 2006 e evangélica frequentadora da igreja Adventista do Sétimo Dia, afirma que nas comunidades quilombolas de Betânia há lugar para a prática de qualquer religião. “A igreja tem que entender que cada pessoa é livre para viver a sua escolha. Nós sabemos que só existe um criador e que ele é pai de todos. Independente de qualquer coisa, a gente tem que respeitar a vontade do outro, independente da religião que ele queira seguir”.
Maria Helena dos Santos, quilombola líder da comunidade Bredos. (Foto: Géssica Amorim | Agência Pública)
Contudo, seu Joaquim Firmo, 73 anos, diz que é comum os pastores das igrejas locais passarem em sua porta para evangelizar. Ele deixou de fazer trabalhos de umbanda depois que Dona Francisca, ex-umbandista do quilombo Teixeira, se converteu. Ele conta que ela contribuiu com sua iniciação e que costumava andar por cerca de duas horas, do quilombo Bredos até o Teixeira, para encontrá-la. “Perdi o gosto das coisas. Já não faço mais trabalho nenhum. Se vier alguém em minha porta, eu passo um ramo de folha, ainda rezo de olhado, mas, trabalho, não faço mais”.
Os familiares evangélicos dele tentaram convertê-lo. Em algumas ocasiões, ele cedeu e aceitou ir à Assembleia de Deus acompanhando uma das suas filhas. Mas seu Joaquim diz que foi contra a sua vontade. “Meu coração não aceita. Uma vez, pra não mentir, eu fui pra Serra Talhada, pra casa de uma filha minha que é crente, e ela pediu pra eu me ajeitar pra ir pra igreja com ela. Eu fui, mas não tem jeito, qual é o carneiro que não pode com sua lã? Do mesmo jeito, é com o destino da gente. O cabra já nasce com esse negócio [mediunidade], não pode parar de trabalhar”.
Joaquim Firmo sofreu pressão para abandonar seus rituais da umbanda. (Foto: Géssica Amorim | Agência Pública)
A liberdade de culto é um direito constitucional. Preconceito e desqualificação de religiões afrobrasileiras é racismo religioso, segundo a Lei 14.532/23, sancionada em janeiro deste ano, que equiparou a injúria racial ao crime de racismo, com pena de dois a cinco anos de prisão.
No ano passado, um levantamento da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) sobre racismo religioso no Brasil entrevistou 255 lideranças religiosas de terreiros em todo o país. Ao todo, 80% dos entrevistados confirmaram que indivíduos das suas comunidades já tinham sofrido algum tipo de violência, física ou verbal, por racismo religioso. Do número total, 24,4% representam lideranças de estados do Nordeste.
Nos quilombos de Betânia, embora não haja registros de agressões físicas a praticantes de religiões afrobrasileiras, nem de ataques a terreiros, são comuns os relatos de insultos e de violências veladas envolvendo as conversões de quilombolas. Os umbandistas ouvidos nesta reportagem contaram que pastores e integrantes das igrejas evangélicas locais fazem visitas de evangelização às casas dos quilombolas ainda não convertidos para apresentar o evangelho. Depois da conversão, eles são aconselhados a se afastar de tradições da sua ancestralidade que envolvem práticas religiosas que a igreja desaprova, como por exemplo manter imagens de orixás em casa.
No quilombo Bredos quase não há mais praticantes de religiões de matriz africana. (Foto: Géssica Amorim | Agência Pública)
Doutora em sociologia, historiadora, escritora e pesquisadora da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) Carolina Rocha, que estuda conflitos religiosos, explica que o apagamento, a perseguição e a criminalização das tradições de matriz africana é histórica no Brasil. “Hoje, as igrejas evangélicas são os grupos que levam o racismo religioso até às últimas consequências com discurso de ódio, demonização e criminalização da existência das tradições dos povos negros, mas a igreja católica também sempre fez isso. Ela também é hostil, racista e violenta com a população negra”.
De acordo com a pesquisadora, o racismo e a intolerância religiosa não se manifesta apenas no campo da crença, mas também é reproduzido por outras estruturas de poder. “Não são só as igrejas que estão despotencializando essas comunidades quilombolas. O Estado também é hostil e racista. O próprio sistema judiciário, que tira filhos de suas mães ou pais porque são levados a terreiros, é racista. A escola, espaço institucional que reforça estereótipos, sem abertura para o conhecimento e discussão de outros saberes religiosos além dos cristãos, é racista.”
Os pastores das igrejas evangélicas presentes nos territórios quilombolas de Betânia não quiseram conversar com a reportagem. Homem negro de ancestralidade indígena que cresceu em uma família evangélica, o pastor da Igreja Batista em Pernambuco, que integra o movimento interdenominacional “Nós na Criação”, Josias Vieira, realiza encontros para diálogos inter-religiosos com povos tradicionais. “O meu caminho tem sido o de fazer uma leitura do evangelho e saber de que forma isso ajuda no diálogo inter-religioso, no diálogo com a cultura desses povos”, diz. Para ele, “a religião apaga, intencionalmente, as características culturais e os saberes desses povos negros e indígenas”. “Há um epistemicídio [inferiorização e destruição de práticas e saberes da cultura de comunidades como as quilombolas e indígenas]. Fui criado em uma família evangélica. Isso me colocou, nos primeiros anos da minha vida, muito longe da minha ancestralidade. Hoje, são muito caras, para mim, as manifestações culturais dos povos tradicionais.