“Culturas ancestrais não são peça de museu. Os povos indígenas estão vivos e se transformam”. Entrevista especial com Viviane Gouvêa

“Valorizar a cultura indígena significa antes de tudo respeitar o ser humano”, afirma a pesquisadora

Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 19 Abril 2023

Desde 1943, na data de hoje, 19 de abril, o Brasil celebra o Dia dos Povos Indígenas, instituído originalmente como "o Dia do Índio", pelo então presidente Getúlio Vargas, através do decreto-lei 5.540. Na prática, "a violência e as ações ilegais perpetradas pelo Estado brasileiro ao longo da sua história vitimaram" estes povos a ponto de "terem sofrido a quase extinção, ou seja, um genocídio no sentido literal e original da palavra", acentua Viviane Gouvêa, autora de Extermínio: duzentos anos de um Estado genocida (Planeta, 2022).

Segundo ela, com o protagonismo do Estado e a ação de grupos privados, ao longo do século XX, e ainda hoje, foi possível observar o extermínio indígena no país. "Por trás dessa ação oficial, encontramos dois sentidos: um, o da expansão da ocupação territorial e de fortalecimento do Estado brasileiro; outro, do estabelecimento de atividades produtivas e investimentos de grande porte em áreas vastas do território. Mesmo assim, devemos atentar para o fato de que grandes extensões de terra foram ocupadas por grandes investidores (latifundiários ou grandes empresas), mas permaneceram improdutivas, obedecendo puramente à lógica de concentração (de terras, de renda) dominante neste país", resume.

O extermínio dos povos, esclarece, ocorre pela adesão de políticas que os deixam morrer, como observado nacionalmente no caso dos Yanomami: "sem vacinas, com limitações impostas às atividades voltadas para a sobrevivência, isolamento, afastamento de terras e laços ancestrais".

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a pesquisadora destaca o protagonismo dos indígenas desde que saíram da tutela do Estado, com a promulgação da Constituição de 1988, e os limites enfrentados em torno de decisões políticas que os afetam diretamente. "O fato de estarem ocupando espaços indica que há um envolvimento e uma estruturação do movimento que são bastante palpáveis. Contudo, há diversos pontos que afetam profundamente a vida dos povos originários, mas que não contam com a participação destes. Por exemplo, nossa matriz energética é basicamente hidrelétrica, mas a política energética é discutida de forma muito incipiente fora das esferas ‘técnicas’. Contudo, os efeitos dessa escolha – que não é apenas técnica, mas basicamente política – se fazem sentir de forma dramática pelos povos que vivem nas áreas afetadas pela construção de usinas. Indígenas entre eles".

Na avaliação da entrevistada, a criação do Ministério dos Povos Indígenas, a recriação do Conselho Nacional de Política Indigenista e a reestruturação da nova Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai, iniciativas do novo governo Lula, carregam "um significado simbólico patente, indicando um amadurecimento da visão antiga segundo a qual os povos indígenas não conseguem participar do processo decisório político formal que busca saídas para seus problemas. Depois de quatro anos de um governo que desrespeitou sistematicamente os povos originários, este movimento dá um enorme alento".

Viviane Gouvêa (Foto: Divulgação) 

Viviane Gouvêa é cientista social e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Pesquisadora do Arquivo Nacional, responsável pela gestão, preservação e difusão de documentos da administração pública federal, ela desenvolve projetos de difusão de acervo e de história, como exposições, sites e publicações. É editora da página Que República é essa?, onde trata de movimentos sociais, ditadura militar e cultura de massas.

Confira a entrevista.

IHU – Em “Extermínio: duzentos anos de um Estado genocida”, você destaca o protagonismo do Estado na violência cometida contra os povos indígenas. O que os documentos históricos evidenciam sobre a ação do Estado brasileiro em relação às comunidades ao longo dos dois últimos séculos? Pode dar alguns exemplos?

Viviane Gouvêa – A violência e as ações ilegais perpetradas pelo Estado ao longo da sua história vitimaram amplas parcelas da população brasileira, inclusive povos indígenas, que sofreram essa violência a ponto de, em muitos casos, terem sofrido a quase extinção, ou seja, um genocídio no sentido literal e original da palavra.

Apesar do protagonismo do Estado, ao longo do século XX o extermínio indígena seguiu uma lógica em grande parte privada. Por trás dessa ação oficial, encontramos dois sentidos: um, o da expansão da ocupação territorial e fortalecimento do Estado brasileiro; outro, do estabelecimento de atividades produtivas e investimentos de grande porte em áreas vastas do território. Mesmo assim, devemos atentar para o fato de que grandes extensões de terra foram ocupadas por grandes investidores (latifundiários ou grandes empresas), mas permaneceram improdutivas, obedecendo puramente à lógica de concentração (de terras, de renda) dominante neste país.

No livro Extermínio, o capítulo 5 expõe essa lógica de extermínio, em que muitas vezes agentes públicos agiram com crueldade indizível para dizimar milhares de brasileiros indígenas, resultando em benefício próprio e, mais amplamente, do grande capital, já que alienava as tribos das suas terras, que acabavam ocupadas por grandes latifúndios, exploradas por garimpeiros e madeireiros. As denúncias expostas neste capítulo do livro encontram-se principalmente no Relatório Figueiredo, disponibilizado pelo Museu do Índio-Funai aqui

Esse relatório foi produzido pelo procurador Jader de Figueiredo Correia em 1967, após denúncias chocantes contra o extinto Serviço de Proteção ao Índio – SPI, e que esteve convenientemente desaparecido por 45 anos. Reapareceu milagrosamente em 2013, no Museu do Índio do Rio de Janeiro, em sua quase totalidade. São mais de sete mil páginas denunciando caçadas humanas promovidas com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, disseminação deliberada de varíola em povoados isolados e doações de açúcar misturado a veneno (um requinte extra de desmedida perversidade), estupro de crianças, privações.

Também apresenta alguns documentos da Comissão Nacional da Verdade, que investigou crimes praticados pelo Estado em um período posterior, até 1988.

Foto: Reprodução.

IHU – No Brasil atual, como a violência estatal contra os povos indígenas é atualizada? Quais as principais ações e projetos estatais que prejudicam as comunidades indígenas hoje?

Viviane Gouvêa – Há uma vulnerabilidade das populações indígenas diante do Estado e dos interesses de grandes grupos econômicos que perpassa todos os nossos governos, toda a nossa história. Até mesmo porque até o fim do século XX estes povos pouco integravam o sistema político institucionalizado. Vale lembrar que estes povos estavam sob a tutela direta do Estado até 1988, quando a nova Constituição, ainda em vigor, encerrou esta tutela. Esta tutela expressa uma noção segundo a qual as nações indígenas não têm capacidade para tomar suas próprias decisões, não conseguem responder por si. Claro, a violência contra eles, perpetrada através dos séculos, devastou seu meio ambiente, buscou destroçar seus laços ancestrais e comunitários, assim limitando ou impedindo as atividades que tradicionalmente sustentavam, o que pode acarretar uma forma diferenciada de tratamento por parte do Estado quando se trata dos recursos alocados para sua sobrevivência.

Acabamos de sair de um período de quatro anos, na verdade seis, em que a democracia esteve por um fio. Em tempos de parca democracia, os grupos sociais mais vulneráveis sempre sofrem mais, não apenas por serem menos ouvidos, mas também porque, em geral, um Estado que dá as costas à democracia tem objetivos muito claros: garantir privilégios privados bem específicos. Durante estes anos, não apenas as desgraças dos povos nativos tiveram pouca ou nenhuma visibilidade, mas também os interesses privados que sempre os vitimaram conseguiram agir quase livremente. Não foi à toa que assim que o novo governo, comprometido com a democracia, assumiu, alguns escândalos relacionados aos direitos humanos logo vieram à tona, entre eles (mais um) o massacre do povo Yanomami.

É importante lembrar que uma necropolítica, como a empreendida pelo Estado brasileiro, não se faz apenas através de assassinatos e incursões letais; não estamos falando exatamente de matar, mas principalmente, e nos dias de hoje, de deixar morrer: sem vacinas, com limitações impostas às atividades voltadas para a sobrevivência, para o isolamento, afastamento de terras e laços ancestrais...

Se pensarmos apenas sobre o século XXI, embora os ataques e violências contra estes povos se apresentem em menor número durante os governos comprometidos com a democracia, é bom que não nos enganemos: a demarcação de terras indígenas sofreu um retrocesso, o que deixa estes povos vulneráveis em seu âmago.

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Para quem se interessar, recomendo visitar a página do projeto Povos Indígenas no Brasil, herdeiro do Centro Ecumênico de Documentação e Informação – CEDI e do Instituto Socioambiental – ISA.

IHU – De outro lado, quais são os projetos que unem e dividem os próprios indígenas a partir de suas realidades locais e interesses?

Viviane Gouvêa – Há tempos desenvolveu-se a percepção de que os povos nativos eram muitos, sempre foram muitos, com identidades distintas, sua própria história e costumes. Há centenas de anos os europeus chegaram aqui e os denominaram “índios”, o que para eles foi, durante muito tempo, incompreensível e ofensivo. Politicamente, ao longo do século XX, muitos passaram a utilizar esse rótulo alienígena como forma de união para luta contra as mesmas opressões.

Hoje, vemos muitos ativistas pertencentes às etnias nativas batalhando na política institucionalizada, por exemplo. E cada vez mais os vemos contando sua própria história. É fundamental que existam historiadores, sociólogos, jornalistas indígenas – óbvio, não por alguma característica individual inerente a pessoas nascidas destes grupos, mas porque oferecem necessariamente uma outra perspectiva ao contar e compreender sua própria história. Mais uma trilha na floresta do conhecimento... Hoje, temos escritores indígenas escrevendo suas próprias histórias, assim como professores, ensinando-as.

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arte sendo produzida e disseminada também; jovens em suas aldeias estão se filmando com seus celulares – sim, os “índios” também possuem celulares, e isto não os torna “menos índios”. Falo isso porque o preconceito enraizado faz com que muitas pessoas “não índias” (como eles mesmos dizem) tenham uma concepção equivocada destes povos, como se fossem uma peça de museu.

IHU – Uma das teses de seu livro é que somos uma sociedade que não consegue equacionar conflitos locais e nacionais sem fazer uso da força, do tiro e da tortura. A que atribui esse modo de enfrentar as disputas internas?

Viviane Gouvêa – Gosto de falar que o Estado moderno é um processo em constante construção. Ele ocorre de forma diferenciada ao longo do tempo e do espaço. Historicamente, no Brasil (não apenas no Brasil, mas é de nós que estamos falando, certo?), este processo começou de forma muito excludente, e do centro para fora. Ou seja, ele alijou de toda a discussão e implementação do projeto político a grande maioria da população. Mesmo assim, houve disputas intensas nas primeiras décadas após a Independência, em que tanto as diferentes elites espalhadas pelo país disputavam espaço e defendiam suas ideias de como deveria ser o novo Estado-nação, como em alguns casos as classes populares se levantaram tentando integrar o processo decisório e participar das disputas.

As elites, por fim, se entenderam, até porque precisaram – não devemos esquecer que de Norte a Sul da antiga colônia portuguesa, a mão de obra escravizada representava a base do sistema produtivo, e este sistema escravista tinha que ser defendido internacionalmente diante de poderosos interesses que passaram a atacá-lo, em especial a Inglaterra. A união destas elites para defender a utilização de mão de obra escravizada foi um dos fatores fundamentais para que elas se entendessem para consolidar o novo (e extenso) Estado.

As classes populares que se levantaram em busca de maior participação foram todas massacradas; vide a Cabanagem paraense, história que conto no primeiro capítulo de Extermínio.

Daí para a frente, percebemos que a manutenção de uma ordem que limita a real participação das classes populares nos negócios populares sempre esteve na ordem do dia, mesmo à custa de sangue, tiro e tortura. E é essa ordem desigual e excludente que se encontra na raiz dos limites eternos da nossa democracia que, mesmo conquistada com muito esforço, sempre esbarra em um grande “até que”. Somos uma democracia “até que” um líder operário se torne um presidente. Até que um governo implemente políticas de distribuição de renda eficazes. Até que a política institucionalizada comece a punir quem invade terras indígenas para extrair ouro ilegal. São exemplos aleatórios que encontram eco na nossa situação atual, mas poderiam se referir a vários momentos da nossa história.

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IHU – Nas últimas décadas, os próprios indígenas passaram a reivindicar seus interesses frente ao Estado e diversos atores sociais engajaram-se na defesa dos povos. Como avalia este movimento? Ele tem gerado mudanças substanciais em relação à atuação do Estado?

Viviane Gouvêa – Gerar visibilidade é fundamental – e cada vez mais. Aparecer pode não resolver, mas abre uma janela, expõe tanto os problemas como as discussões em torno da sua solução, envolve outros atores sociais na questão em pauta.

Em segundo lugar, a reivindicação resulta da organização, em maior ou menor medida, e isso é transformador. O fato de estar ocupando espaços indica que há um envolvimento e uma estruturação do movimento que são bastante palpáveis.

Contudo, há diversos pontos que afetam profundamente a vida dos povos originários, mas que não contam com a participação destes. Por exemplo, nossa matriz energética é basicamente hidrelétrica, mas a política energética é discutida de forma muito incipiente fora das esferas “técnicas”. Contudo, os efeitos dessa escolha – que não é apenas técnica, mas basicamente política – se fazem sentir de forma dramática pelos povos que vivem nas áreas afetadas pela construção de usinas. Indígenas entre eles.

IHU – Qual é o significado da criação do Ministério dos Povos Indígenas neste ano? Como ele poderá contribuir para alterar as ações do Estado em relação às comunidades?

Viviane Gouvêa – A criação deste ministério carrega um significado simbólico patente, assim como a escolha da primeira pessoa a ocupar o cargo à frente dele, indicando um amadurecimento da visão antiga segundo a qual os povos indígenas não conseguem participar do processo decisório político formal que busca saídas para seus problemas. Depois de quatro anos de um governo que desrespeitou sistematicamente os povos originários, este movimento dá um enorme alento.

Além da criação do Ministério dos Povos Indígenas, tivemos a recriação do Conselho Nacional de Política Indigenista e da reestruturação da nova Funai, rebatizada de Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Essa verdadeira reviravolta pode ser o início de um acerto de contas histórico, o que chamamos reparação histórica mesmo. Podemos estar assistindo a uma integração real destes povos com uma estrutura burocrática que sempre lhes foi refratária. Para povos que passaram a maior parte da sua história sendo roubados e sofrendo violências indizíveis, com imensa dificuldade em se fazer ouvir e em participar de políticas públicas, estas conquistas são de fato impressionantes e podem resultar em uma integração que dificilmente terá volta: alguns terrenos, quando conquistados, podem até voltar a ser campo de batalha, mas dificilmente serão perdidos.

IHU – Como romper a discriminação e violência contra os povos indígenas, uma sociedade que se divide entre nós e eles, e valorizar as diferentes culturas, na construção de um projeto de país?

Viviane Gouvêa – A questão tem menos a ver com os povos nativos e mais com uma sociedade que tem ódio de quem não espelha aquilo que as elites esperam do “cidadão”, ou seja, ódio de si mesma.

Por muito tempo, nossos povos originários foram símbolo do incivilizado, do selvagem, do atraso brasileiro, elaborados por uma elite nacional que sempre desejou ser branca, europeia. Ao longo do tempo, estas elites defenderam seu extermínio, depois sua “aculturação,” sua “absorção” pela sociedade “moderna”, sua limitação dentro de reservas indígenas arbitrariamente (mal) demarcadas e sempre insuficientes e mal guardadas. Estiveram no caminho da grande empresa, do grande latifúndio, de mineradoras e madeireiras. E ainda hoje são os primeiros a tombar, por representarem a primeira barreira contra a destruição ambiental.

O ódio é onívoro e voraz, e romper com qualquer ciclo vicioso dá um trabalho enorme. Depende de políticas públicas, em geral, e especificamente de políticas educativas desde a primeira infância, de políticas de reparação. Mas depende do esforço do cidadão comum, que vive hoje em bolhas que pouco traduzem a realidade em que vivem – que vai da realidade das necessidades materiais e sua satisfação até a concretude dos massacres de aldeias, por exemplo. Essa distância dificulta a empatia, embora facilite a disseminação de informação sobre tudo que nos é caro. É uma ambiguidade do mundo em que vivemos, e que ainda não sabemos como equilibrar.

Culturas ancestrais não são peças de museu. Os povos indígenas estão vivos e se transformam. Valorizar a cultura indígena significa, antes de tudo, respeitar o ser humano.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Viviane Gouvêa – Além de recomendar a leitura do livro Extermínio (posso ser engraçadinha?), diria que algumas coisas me impulsionaram a escrever o livro. Uma delas foi escrever um livro de história e política que contasse nosso passado e nosso presente macabros com uma linguagem que não fosse técnica, ou chata. Espero ter conseguido. Outra foi trazer para um público inexperiente alguns documentos contemporâneos aos fatos narrados, muitos deles oficiais, para que este público, acostumado a consumir verdade em pequenas telas de celular, entrasse em contato com fontes de informação um tanto mais confiáveis. Também espero ter conseguido.

Cosmopolítica indígena, estados plurinacionais e partidos movimento – Prof. Dr. Salvador Schavelzon:

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