100 dias de governo Lula: a reconstrução foi fundamental, mas o que será novo? Entrevista especial com Philip Fearnside, Lucas Pelissari e Gonzalo Vecina Neto

Nas entrevistas a seguir, especialistas analisam os primeiros cem dias do novo governo à luz das áreas ambiental, educacional e da saúde

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom | Agência Brasil

14 Abril 2023

No início desta semana, o governo Lula completou cem dias. Se, por um lado, a oposição ironizou as políticas implementadas nestes primeiros meses, por outro lado, o presidente apressou-se em dizer que o país “voltou a olhar para o futuro”. Na prática, o consenso mínimo é de que há avanços em relação à gestão bolsonarista, mas ainda se aguarda a comunicação do que será efetivamente novo neste mandato.

Para avaliar os cem dias do terceiro governo do presidente Lula e seus desafios daqui para frente, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU entrevista especialistas das áreas de meio ambiente, educação e saúde.

Na área ambiental, Philip Fearnside assinala que o novo governo realizou ações marcantes, como a “criação do novo Ministério dos Povos Indígenas e a indicação de pessoas com compromisso ambiental para este ministério e para o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima”. O fortalecimento dos órgãos ambientais, acrescenta, é um aspecto positivo e “fundamental para ter comando e controle sobre o desmatamento e outros processos destrutivos”. Os principais limites e desafios, no entanto, centram-se na posição em relação à política fundiária, aos projetos de reconstrução das rodovias BR-319 (Manaus-Porto Velho) e AM-366, à continuidade da construção de barragens hidrelétricas na Amazônia e à transição energética. “O primeiro grande desafio do governo Lula é a política fundiária, tanto como relação aos grandes grileiros quanto à invasão de terras públicas por pequenos ocupantes. (...) No caso do atual governo federal, há pressão, tanto da base tradicional do PT, por pequenos ocupantes, como do grande agronegócio, para que a ‘regularização’ continue e que seja facilitada”, observa na entrevista a seguir, concedida por e-mail.

Na área educacional, Lucas Pelissari destaca o diálogo do governo com as universidades, os reajustes nas bolsas, a ampliação de recursos públicos para a merenda escolar e a recriação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - SECADI. Os desafios, assinala, giram particularmente em torno da reforma do ensino médio. “O limite é justamente não ter revogado o Novo Ensino Médio e, além de não o ter revogado, ter adotado uma condução completamente atabalhoada e confusa dessa política. O MEC atual não consegue administrar o conflito. Ele diagnostica que existe uma mobilização social bastante grande em torno da revogação, mas, ao mesmo tempo, segue priorizando os interesses da ala do empresariado dentro do MEC. Não preciso dizer que o Novo Ensino Médio amplia as desigualdades, é uma afronta ao direito de aprender dos mais pobres, como tem mostrado sua implementação”, afirma na entrevista concedida por WhatsApp.

Na área da saúde, Gonzalo Vecina Neto pontua que os cem primeiros dias do governo foram marcados por ações de reconstrução, já que “a destruição do Ministério da Saúde foi terrível” no governo Bolsonaro. Apesar de a reconstrução ser fundamental, adverte na entrevista concedida por WhatsApp, “ainda não estamos enxergando o novo”. “Qual será a pauta transformadora do Ministério da Saúde, por exemplo? Mais Médicos? Ok, é preciso. Atenção Básica à Saúde? Ok, é preciso. Políticas voltadas para o combate à fome? Sem dúvida, são absolutamente necessárias, entre elas a continuação do programa Bolsa Família. Essas ações são partes do fundamental que precisa ser refeito, mas é a velha pauta que nós já vimos. O que será novo? Essa é uma questão em aberto. Sobre a questão das faculdades de medicina: vamos liberar a abertura de faculdades de medicina? Mas com qual qualidade e com qual padrão mínimo? Pode ter faculdade de medicina sem estrutura? Onde os alunos fariam os estágios de campo? Essas perguntas estão sem respostas adequadas”, sublinha.

Confira as entrevistas.

Philip Fearnside
Foto: Global Landscapes Forum

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan, e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, em Manaus, onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas – IPCC, em 2007.

IHU – Que avaliação faz dos cem dias de governo Lula?

Philip Fearnside – O governo Lula tem realizado grandes avanços, e esses têm ainda mais destaque devido ao contraste com o governo Bolsonaro. Uma das ações mais marcantes foi a criação do novo Ministério dos Povos Indígenas e a indicação de pessoas com compromisso ambiental para este ministério e para o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima – MMA. Outros destaques são a defesa das instituições democráticas que foram atacadas em 8 de janeiro e a revogação de muitos atos da “boiada” antiambiental da época de Bolsonaro.

IHU – Quais os três aspectos positivos do governo e os três limites até o momento?

Philip Fearnside – O primeiro aspecto positivo é o início da recuperação e do fortalecimento do Ministério do Meio Ambiente (e, agora também, da Mudança do Clima), inclusive do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio, que é fundamental para ter comando e controle sobre o desmatamento e outros processos destrutivos. A recuperação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal – PPCDAm e do Fundo Amazônia são partes importantes disso.

O segundo aspecto positivo é o início da transformação da atuação do governo em questões dos povos indígenas; aí temos grandes benefícios potenciais, tanto ambientais como humanos. As ações para a retirada dos garimpeiros da Terra Indígena Yanomami têm destaque.

O terceiro aspecto positivo é a transferência da responsabilidade pelo Cadastro Ambiental Rural – CAR para o MMA; isso é muito importante, embora tenhamos de esperar para saber quanto isso vai retificar os abusos deste dispositivo, que, na prática, tem se tornado uma grande ferramenta para facilitar a grilagem de terras.

Limites das pautas ambientais

O primeiro limite é de extrema preocupação: a posição do presidente Lula sobre o projeto de reconstrução da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho). Esta obra, que não tem uma justificativa econômica e carece até de estudo de viabilidade econômica (EVTEA), tem um enorme potencial de danos ambientais – muitíssimo maiores do que os que são tratados no seu estudo de impacto ambiental e relatório de impacto ambiental (EIA-RIMA). A obra conectaria o “arco do desmatamento” com todas as áreas de floresta já ligadas a Manaus por estradas, inclusive em Roraima, e, através de estradas laterais projetadas como a AM-366, às vastas áreas de floresta ao oeste do rio Purus (a região Trans-Purus). Em Manaus, durante a campanha em 2022, Lula disse que não via por que não fazer o projeto, desde que os governos estaduais e municipais tivessem compromisso com a “preservação”. Mas, infelizmente, mesmo se existisse esse compromisso atualmente (o que não é o caso), mesmo se estivessem disponíveis as verbas astronômicas que seriam necessárias para controlar a vasta área aberta ao desmatamento (o que não é o caso), mesmo se tudo isso fosse capaz de conter os danos (o que não é o caso), o fato é que os governantes mudam com cada eleição e não há como garantir um compromisso contínuo ao longo de décadas.

Lula escolheu um ministro dos transportes que apoia o projeto de reconstrução. O projeto, que não foi incluído no plano dos cem dias de governo quando lançado em 16 de janeiro, foi posteriormente acrescentado ao plano por pressão de políticos de Manaus. De fato, ganhar votos em Manaus é a razão de ser da obra. Os políticos de São Paulo poderiam ter uma forte opinião do outro lado se entendessem que o abastecimento de água, que mantém uma cidade de 20 milhões de habitantes naquele lugar, depende da água reciclada pela floresta na região Trans-Purus, agora ameaçada pelos planos de construção da BR-319 e estradas associadas.

O segundo limite é a questão preocupante da legalização de reivindicações ilegais de posse de terra. O programa do governo Lula promete priorizar a “regularizaçãofundiária, que é o eufemismo comum para isto. O termo “regularização” tem a conotação de que os pretendentes possuem o direito às terras reivindicadas, apenas faltando a documentação devido à ineficiência do governo. A imagem seria de ribeirinhos ou outros ocupantes tradicionais amazônicos que vivem em terras públicas há gerações, mas estes casos são bem cobertos pela legislação atual e as áreas deles são insignificantes quando comparadas com as áreas legalizadas nos últimos anos, tanto com relação aos grandes grileiros quanto com relação à invasão de terras públicas por pequenos ocupantes. A continuação da legalização dessas reivindicações dá o motivo para grilagem e invasões futuras.

O terceiro limite é na área energética. O apoio de Lula para grandes barragens na Amazônia no passado resultou em enormes impactos humanos e ambientais. Durante a campanha, Lula afirmou que faria Belo Monte de novo e que a população local foi beneficiada pela obra devido aos milhões de reais gastos em programas sociais. Ele também afirmou que os milhares de pescadores no rio Madeira, que perderam seu sustento com as barragens de Santo Antônio e Jirau, poderiam criar peixes em piscicultura. Foi um paralelo infeliz com a famosa frase de Marie Antoinette, quando os pobres da França pré-Revolução pediram pão: “Que eles comam bolo!” Ou seja, os impactos das barragens não são reconhecidos por Lula, e os planos para mais barragens provavelmente terão continuidade.

A questão das barragens na Amazônia está ligada aos planos do governo para tornar o Brasil um grande exportador de hidrogênio verde. O plano é usar o potencial eólico do litoral brasileiro para gerar energia elétrica a ser convertida em hidrogênio, para exportar à Europa. O problema é que a energia eólica do litoral é chave para que não sejam construídas mais barragens na Amazônia. Se a energia eólica for exportada em forma de hidrogênio, enquanto as cidades brasileiras são sustentadas por novas hidrelétricas, esse hidrogênio não é verde. É essencial que o governo Lula abandone os planos para novas barragens amazônicas, incluindo as três do atual Plano Decenal da Eletrobras, antes de exportar energia em forma de hidrogênio. Outra preocupação na área energética são os planos de exploração de gás e petróleo presentes no projeto “Área Técnica da Bacia do Solimões”, da floresta amazônica, e no projeto do “novo pré-sal”, do estuário da foz do rio Amazonas.

IHU – Depois dos cem primeiros dias de governo, quais serão os maiores desafios deste mandato?

Philip Fearnside – O primeiro grande desafio do governo Lula é a política fundiária, seja em relação aos grandes grileiros, seja em relação à invasão de terras públicas por pequenos ocupantes. O Brasil provavelmente é o único país no mundo onde as pessoas podem invadir terras do governo e acabar saindo com um título da terra. No restante do mundo, inclusive nos outros países de floresta tropical, este padrão acabou há centenas ou milhares de anos e nem passa pela cabeça das pessoas. Aqui também esse processo vai ter que acabar antes que o último hectare seja reivindicado e a última árvore cortada. No entanto, a tendência política é sempre na direção de legalização das reivindicações de posse de terra ao invés de retirar os ocupantes ilegais. No caso do atual governo federal, há pressão, tanto da base tradicional do PT, por pequenos ocupantes, como do grande agronegócio, para que a “regularização” continue e que seja facilitada.

O segundo desafio é a tomada de decisão sobre obras como as rodovias BR-319 e AM-366 e as barragens amazônicas. Atualmente, isto ocorre com base em pressões políticas, e todo o processo de levantar informações sobre os impactos vem depois da decisão real de realizar o empreendimento. O licenciamento das obras apenas legaliza as decisões já tomadas, na prática, à revelia dos impactos. A história da aprovação de grandes obras, como as barragens do rio Madeira e de Belo Monte, é uma sequência de pressões sobre o órgão licenciador para aprovar os projetos, apesar de enormes impactos e de não cumprir as exigências legais.

Outro desafio é a presunção de impunidade dos que violam as leis ambientais. A continuação da altíssima taxa de desmatamento no primeiro trimestre do governo Lula é um reflexo disso. A situação só vai mudar depois de um tempo, com rigorosa punição de infratores, o que exigiria uma série de mudanças, para além do grande avanço de ter o MMA e o IBAMA liderados por pessoas comprometidas com a sustentabilidade ambiental.

Um grande desafio para o governo Lula é o efetivo controle do Congresso Nacional pela bancada ruralista. Isto inclui o perigo de aprovarem uma legislação antiambiental, introduzida nos anos de Bolsonaro, que ainda está avançando na casa. Conter a continuação de revezes ambientais e aprovar leis que favoreçam o meio ambiente exigirão tanto a atuação habilidosa do governo Lula quanto a ação da sociedade civil.

***

Lucas Pelissari
(Foto: Arquivo pessoal)

Lucas Pelissari é graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, mestre em Educação pela UFPR e doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Leciona na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

IHU – Que avaliação faz dos cem dias de governo Lula?

Lucas Pelissari – É sempre difícil fazer um balanço como esse no sentido mais geral e macro. Acabamos olhando para este cenário a partir do nosso campo de estudos que, no meu caso, é a educação. A partir do que venho acompanhando e debatendo com outros colegas, a avaliação, em geral, é positiva. Vale lembrar que se trata de um governo de frente ampla, que assumiu a defesa da democracia como o centro das políticas governamentais e, portanto, esta frente ampla é carregada de complexidade e visões distintas. Mas, dentro dessa complexidade, a linha política assumida pelo governo tem sido implementada e traduzida em termos de políticas públicas, com a retomada da democracia, sobretudo e fundamentalmente a partir da construção de possibilidades de diminuição das desigualdades sociais. Mas não somente. A posição do governo em relação ao ataque neofascista à democracia em 8 de janeiro foi de enfrentamento e defesa da democracia. Isso faz com que avaliemos que esta linha do governo está sendo cumprida e levada a cabo, apesar das divergências internas.

No entanto, como era de se esperar de uma frente ampla, que tem tendências e contratendências que vão mudando semana a semana, o governo assume medidas, força a queda da taxa de juros, mas, por outro lado, apresenta um arcabouço fiscal que tem limites. Aprimora políticas públicas, mas tem dificuldades de revogar grandes reformas que foram levadas a cabo no período anterior, como a trabalhista e a da previdência. Apesar de haver um aprimoramento de políticas públicas, no sentido da diminuição das desigualdades, grandes reformas permanecem intactas, como o Novo Ensino Médio; não há nenhum tipo de sinalização da revogação dessa reforma.

É importante registrar também a posição mais progressista do presidente Lula em relação ao primeiro mandato. Não sabemos exatamente a que se deve essa postura. Talvez ao fato de ter ficado detido, como resultado de um processo injusto e autoritário, que foi um desdobramento dessa linha neofascista que tomou setores do judiciário naquela farsa que se consubstanciou na Operação Lava Jato. Talvez essa situação o tenha feito ampliar os horizontes em uma perspectiva mais progressista e democrática. Percebemos que, às vezes, os ministérios não acompanham o posicionamento do presidente no sentido de proposições mais avançadas.

IHU – Quais os três aspectos positivos do governo e os três limites até o momento?

Lucas Pelissari – É difícil selecionar três aspectos positivos e três negativos. Vou responder a partir de três grandes grupos. Entre os aspectos positivos, destaco a defesa da democracia, a retomada das políticas públicas de diminuição das desigualdades, que envolve a distribuição de renda, e a educação.

Sobre o primeiro eixo, foi positivo o posicionamento contundente e propositivo do governo ao defender as instituições envolvidas no ataque neofascista de 8 de janeiro, mas também a ampliação dos direitos sociais, com a criação dos conselhos, incluindo o conselho de participação popular, o conselho da população LGBTQIA+, e o próprio enfrentamento do garimpo no caso do povo Yanomami.

O segundo eixo indica a retomada do programa Bolsa Família, do programa Minha Casa, Minha Vida, da política de reajuste do salário-mínimo. Este é um campo que ainda tem muito para avançar e só avançará se tiver um posicionamento mais contundente da efetiva distribuição de renda, de pensar melhor a distribuição tributária do país, com uma reforma tributária que taxe grandes fortunas. Se o governo seguir orientado pelo tripé macroeconômico neoliberal e, fundamentalmente, por elevadas taxas de juros, será difícil ampliar esse campo de avanço com a implementação de políticas púbicas.

Sobre o terceiro eixo, há aspectos positivos, mas pouco a comemorar porque as políticas educacionais do período anterior têm um núcleo bastante visível e rígido, que acaba irradiando para outras políticas educacionais, como é o caso da reforma do ensino médio. Mas há avanços no campo da educação. Destaco o diálogo com as universidades, reconhecendo e valorizando a importância da pesquisa científica no convite a colegas para assumirem cargos dentro dos ministérios; a ampliação de recursos públicos para a merenda escolar; a correção no valor das bolsas de pesquisa, de iniciação científica, mestrado e doutorado, que é uma pauta histórica dos movimentos estudantil e docente; a recriação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - SECADI. Essas primeiras medidas do governo Lula foram bastante aplaudidas.

Limites

Quanto aos limites, vou destacar três eixos. O primeiro é o da dificuldade de ruptura com a ordem anterior, com o golpismo bolsonarista, que se dará, fundamentalmente, por dois movimentos: a revogação de “reformas mães” do período anterior, a trabalhista e a da previdência, principalmente. Aqui é preciso destacar o enfrentamento do Teto de Gastos com o novo arcabouço fiscal, mas as duas reformas ficaram intactas. Há também uma necessidade de desfasticização do Estado, que pode ser traduzida em uma desmilitarização e desbolsonarização. O bolsonarismo e o neofascismo continuam existindo, haja vista os ataques às escolas recentemente. Não podemos dizer se isso é uma ação coordenada por algum núcleo com envolvimento direto com a família Bolsonaro, mas não há como negar que há uma influência direta de linhas de ascensão da extrema-direita. Esta semana, nos deparamos, no Colégio Aplicação de Limeira/SP, com pichações no banheiro, enaltecendo a figura de Hitler. Isso se deve ao período anterior do bolsonarismo e do neofascismo. Temos que construir alternativas e políticas mais contundentes para enfrentar este cenário. Vemos que este ainda é um limite colocado no governo.

No segundo eixo, sobre a educação de modo geral, eu diria que a situação é muito negativa – e este é um limite que não é dado simplesmente pela frente ampla que está estabelecida, mas também por falta de vontade política de manter, dentro da frente ampla, setores populares, a classe trabalhadora organizada e os setores da sociedade civil que discutem educação subordinados a amplos setores do empresariado. Esses eram setores muito bem definidos, que tinham um protagonismo também dentro do período golpista bolsonarista. Há uma manutenção do protagonismo desses setores dentro do Ministério da Educação – MEC. Eles continuam ditando as regras e tendo como centro as avaliações em larga escala, o que, para nós, é algo bem negativo porque faz repercutir, na educação, uma visão empresarial, administrativa, eficienticista, que impede a criatividade do aprendizado, a relação professor/aluno e uma visão de mundo mais alargada.

O que se alterou em relação ao período anterior foi a saída de cena da área mais ideológica do bolsonarismo e, fundamentalmente, das igrejas neopentecostais que atuavam no MEC. Esses setores saíram, mas eles também eram secundários e estavam subordinados à aliança educacional do MEC anterior, por sua vez, subordinados aos setores do empresariado. Estou me referindo aos movimentos Todos pela Educação, Instituto Ayrton Senna, Instituto Unibanco, Instituto Natura, etc.

O terceiro eixo de limite é justamente não ter revogado o Novo Ensino Médio e, além de não ter revogado, ter adotado uma condução completamente atabalhoada e confusa dessa política. O MEC atual não consegue administrar o conflito. Ele diagnostica que existe uma mobilização social bastante grande em torno da revogação, mas, ao mesmo tempo, segue priorizando os interesses da ala do empresariado dentro do MEC. Não preciso dizer que o Novo Ensino Médio amplia as desigualdades, é uma afronta ao direito de aprender dos mais pobres, como tem mostrado sua implementação. O modelo de itinerários formativos é uma farsa e as pesquisas têm mostrado que não há possibilidade de escolha do estudante, a partir de um cardápio amplo e definido, a partir de diversos itinerários e componentes curriculares. Boa parte dos municípios brasileiros possui uma escola de ensino médio. Obviamente há problemas de infraestrutura, de condução e implementação, mas, fundamentalmente, problemas de concepção do Novo Ensino Médio. Ele traz consigo um modelo curricular atrasado, que de novo não tem nada; ele parte o ensino médio no meio, o dicotomiza. Sem contar que esse modelo faz tender à privatização.

IHU – Depois dos cem primeiros dias de governo, quais serão os maiores desafios deste mandato?

Lucas Pelissari – Os maiores desafios serão enfrentar esses limites que comentei. É necessário avançar na desfasticização, lembrando que o fascismo continua organizado e sendo uma alternativa política para diversos jovens e amplos setores da população, inclusive na figura de Jair Bolsonaro. É necessário enfrentar a revogação das reformas trabalhista, tributária e do ensino médio, que é o grande núcleo das políticas educacionais. Não é possível avançar em outros setores da política educacional sem revogar a reforma do ensino médio. Ela irradia impactos no campo da formação de professores, da política de ensino fundamental, no formato do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, no campo da política de ensino superior, etc.

***

Gonzalo Vecina Neto
(Foto: Reprodução YouTube)

Gonzalo Vecina Neto é graduado pela Faculdade de Medicina de Jundiaí e mestre em Administração, Concentração de Saúde, pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas – FGV/EAESP. Atuou como secretário municipal de saúde de São Paulo, secretário nacional de vigilância sanitária do Ministério da Saúde e diretor presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. É professor assistente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP desde 1988 e superintendente do Hospital Sírio-Libanês desde 2007.

IHU – Que avaliação faz dos cem dias de governo Lula?

Gonzalo Vecina Neto – A avaliação geral desses cem dias do governo Lula é que estamos em um momento de reconstrução. No governo anterior, a destruição do Ministério da Saúde foi terrível: cargos entregues para corruptos, presença de militares em cargos técnicos para os quais eles não estavam minimamente preparados, cometendo bobagens, dizendo-se especialistas em logísticas e comprando medicamentos de altíssimo custo que acabaram sendo queimados. No MEC, conseguiram fazer uma destruição pior do que no da Ministério da Saúde. No Ministério do Meio Ambiente, passou-se a boiada. Ou seja, os exemplos são praticamente infinitos. O governo Bolsonaro destruiu o governo federal. Então, os primeiros cem dias do novo governo foram de reconstrução.

Sob certos aspectos, pode-se dizer que os primeiros cem dias consistiram em fazer mais do já que existia, mas tinha que recuperar a base do governo federal, e é basicamente isso que vi sendo reconstruído no Ministério da Saúde, em particular, que tenho acompanhado. Em sua maioria, as pessoas que foram chamadas são extremamente competentes. Nos demais ministérios, também está havendo uma reconstrução, sem sombra de dúvida. Essa é uma coisa bastante positiva e importante para o futuro do Brasil.

IHU – Quais os três aspectos positivos do governo e os três limites até o momento?

Gonzalo Vecina Neto – Aqui trata-se da construção de uma agenda, a construção de algum tipo de governabilidade, que não sabemos ainda se vai passar pela porta, que é a tentativa de criar uma negociação com o Congresso. Essa negociação, em grande parte, foi feita, mas não sabemos ainda qual seu resultado. Vamos ver quais serão as pautas a serem votadas, lembrando que uma parte dessas pautas não são pautas de governo.

Não dá para falar que a reforma tributária é um objetivo do governo Lula. A reforma tributária é um objetivo da sociedade brasileira; é uma pauta que está engasgada há 15, talvez 20 anos. A reforma tributária que aí está não é a reforma do Lula, mas uma que foi cozinhada lentamente ao longo de 15 anos no Congresso Federal. Criar um Imposto de Valor Agregado – IVA não é uma proposta deste governo; é uma proposta do Congresso. Então vamos ver como este debate seguirá. Para qualquer governo, uma reforma tributária seria importante neste momento, exceto para um desgoverno. Vamos ver o que o Congresso vai fazer.

A primeira coisa importante que Lula fez foi tentar construir uma certa governabilidade dentro do projeto político que nós construímos. Isso é responsabilidade de todos os brasileiros, do tal presidencialismo de coalizão. Vamos ver até onde isso vai funcionar. Minha expectativa é que o Congresso responda, de maneira mínima, às necessidades de um Estado funcional.

Outro aspecto positivo foi a proposta de uma nova forma de pensar o relacionamento com o Banco Central, com taxa de juros, política cambial, a substituição da Emenda Constitucional n. 95, que paralisa os gastos públicos; então, tem um projeto nesse sentido. O projeto feito pelo [Fernando] Haddad tem tudo para parar em pé. Isso é extremamente positivo.

O terceiro elemento positivo é a forma incômoda que o presidente assumiu: não dá para viver com o Banco Central propondo uma taxa de juros de 13,75%. Não dá para aceitar o preço dos combustíveis como está. Com isso, o que ele está dizendo para a sociedade é que há luta, que é uma boa luta, e que ele está do lado fraco da população. Ele vai ganhar? Provavelmente não, mas também não vai perder todas. Ele tem que incomodar o presidente do Banco Central, tem que incomodar a Petrobras e o mercado, que quer apenas que a Petrobras distribua dividendos. Esses incômodos são positivos.

Aspectos negativos

Lógico que os aspectos negativos estão por perto também: até que ponto o presidente está entregando mais do que anéis para conseguir ter governabilidade? Até que ponto esse atrito que ele está criando com a Faria Lima é um atrito que não está sendo exagerado? Eu acho que não, mas os grandes jornais do país estão dançando em cima dele por causa da luta para poder gastar mais. Esse é um aspecto que não há como negar.

Há também outro aspecto: ainda não estamos enxergando o novo. A reconstrução é fundamental, mas qual será a pauta transformadora do Ministério da Saúde, por exemplo? Mais Médicos? Ok, é preciso. Atenção Básica à Saúde? Ok, é preciso. Políticas voltadas para o combate à fome? Sem dúvida são absolutamente necessárias, entre elas a continuação do programa Bolsa Família. Essas ações são partes do fundamental que precisa ser refeito, mas é a velha pauta que nós já vimos. O que será novo? Essa é uma questão em aberto. Sobre a questão das faculdades de medicina: vamos liberar a abertura de faculdades de medicina? Mas com qual qualidade e com qual padrão mínimo? Pode ter faculdade de medicina sem estrutura? Onde os alunos fariam os estágios de campo? Essas perguntas estão sem respostas adequadas.

IHU – Depois dos cem primeiros dias de governo, quais serão os maiores desafios deste mandato?

Gonzalo Vecina Neto – Temos três grandes desafios. O primeiro é o teste do presidencialismo de coalizão, com um Congresso muito conservador. Esse vai ser um teste muito importante. Espero que Lula e o Congresso tenham sensibilidade suficiente para construir um país melhor a partir desse relacionamento. A segunda questão é que um país de renda média como o Brasil não tem como crescer e, sem crescer, não tem como acolher a sua gente. Portanto, não tem como oferecer renda, emprego e alimento sem gasto público. Tem que ter políticas eficientes para produzir gastos públicos que tragam respostas reais às necessidades da sociedade e da economia brasileira.

Existem possíveis erros que já começam a aparecer no horizonte, como refazer, pela quarta vez, a aposta na indústria naval. Existem certas coisas que não vejo como resolver. Essa é uma discussão que deveria ser colocada para a sociedade: será que é possível – como fizemos com o petróleo e a prospecção de águas profundas, e como fizemos com a Embraer, para produzir aviões, como fizemos com conquista do Centro-oeste para a soja, através do trabalho da Embrapa – fazer algo na indústria naval? O Brasil precisa de navios para transportar petróleo e ferro. Portanto, temos algo importante, que é a demanda. Agora, uma cidade-Estado, como Singapura, que tem 6 milhões de habitantes, tem uma indústria naval potente, mas não tem mercado. O que será que nós vamos conseguir fazer no Brasil, que tem mercado, mas nunca teve competência para ter indústria naval? Vamos esperar que o erro do uso inadequado do pouco recurso que temos, que precisa ser bem administrado para gerar riqueza e valor para o país, aconteça? Esse é um segundo desafio.

O terceiro desafio é, sem dúvida, o do equilíbrio entre os poderes, o jogo de freios e contrapesos que a sociedade brasileira precisa ter. Como vai ficar a relação entre o Judiciário, o Legislativo e o Executivo? Ficou muito claro o que aconteceu no final do governo Bolsonaro e no início do governo Lula, até o dia 8 de janeiro: o sistema de freios e contrapesos quase falhou. Esse sistema tem que ser revisitado se quisermos viver em uma democracia daqui para frente. Bolsonaro destruiu o país, mas prestou um único serviço: mostrou que o sistema de freios e contrapesos da democracia brasileira está podre. Temos que revistar isso. O tal do artigo 142, que oferece oportunidade de diversas leituras da função das Forças Armadas, precisa ser revisto. Espero que essas três questões sejam vistas e consigam se transformar em um legado para o futuro do governo Lula.

Leia mais