5º domingo da quaresma – Ano A – Viver sem medo, segundo a divina Ruah, na promessa da vida em plenitude

Por: MpvM | 24 Março 2023

 

"A questão principal e determinante do Evangelho deste final de semana é uma afirmação para a vida de “amigos/as” de Jesus, que mesmo privados da vida biológica, não estão mortos, podem encontrar a vida plena. E diante da certeza que a fé nos dá, como em Marta e Maria, somos convidadas a viver a vida sem medo, livres e corajosas, companheiras nas dificuldades, capacita-nos para investir na vida, generosamente, contra tudo aquilo que nos oprime e que nos rouba a justiça e a vida plena."

A reflexão é da teóloga leiga Ivenise Santinon. Ela possui doutorado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2009), mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003) e Graduação em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1999). Atua como professora da Faculdade de Teologia, na PUC-Campinas, com atividade docente nas áreas da teologia, com ênfase na pastoral e na antropologia teológica. Estuda temas de teologia, ciências da religião, relações de gênero e da humanização.

 

Leituras do dia

1ª leitura: Ez 37,12-14
Salmo: Sl 129(130),1-2.3-4ab.5-6.7-8 (R. cf. 7)
2ª leitura: Rm 8,8-11 ou mais breve 11,3-7.17.20-27.33b-45
Evangelho: Jo 11,1-45


A liturgia deste 5º domingo da quaresma nos dá a garantia do real desígnio de Deus, a comunicação de uma vida que ultrapassa a biológica: a definitiva que supera a morte e mostra um futuro pleno.

Na primeira leitura (Ez 37,12-14) Deus comunica uma vida de libertação ao seu Povo exilado, escravizado, desesperado e sem futuro, condenado à morte. O texto de Ezequiel, realmente, “profetiza ao dizer que DEUS abrirá os sepulcros e trará o povo à terra de Israel. A situação de desespero em que estavam os exilados e exiladas é uma situação de morte, de escravidão e da ausência de esperança; e isso pode ser comparado como a “estar num túmulo”. Deus entra nessa profecia e vai transformar a morte em vida, promete ao Povo o regresso à sua terra, restaura a esperança dos exilados num futuro de felicidade e de paz. Derramará o seu Espírito, a ruah, o feminino de Deus, para gerar vida. Vai acontecer aí a revivificação de todo o ser humano e no contexto de Gn 2,7; vai nos criar do barro e nos infundirá um hálito de vida e de amor. A ruah é a “força vital” que dá vida e transforma os corações de pedra, duros, insensíveis, em gente amorosa, capaz de amar a Deus e aos irmãos/as, como transformando os sepulcros, conf. Ez 36,26-27. Esta nova criação é a questão significativa que se abre num contexto de injustiças, quando tudo parece sem vida, perdido e sem saída, ali Deus vem e transforma o desespero em um esperançar.

A resposta a essa palavra será cantada com o Sl 129 (130), onde a esperança é colocada na certeza da graça de Deus: “No Senhor, toda graça e redenção! — Das profundezas eu clamo a vós, Senhor, escutai a minha voz!...”

Na segunda leitura (Rm 8,8-11) se desenvolve uma das mais famosas antíteses paulinas: a da “Carne/Espírito”. “Viver segundo a carne” em Paulo significa entender uma vida conduzida à margem de Deus: o “ser humano da carne” é o do egoísmo e da auto-suficiência, cujos valores são de divisão e escravidão. (cf. Gl 5,19-21; 5, 22-23). No entanto, carne é história, é sarkis. E “viver segundo o Espírito” significa uma vida na concretude em Deus, pautada pelos valores da justiça, da caridade, da alegria e da paz. Paulo recorda no texto que o cristão a cristã, no dia do seu batismo, opta pela vida no Espírito. A partir daí torna-se “filho/a de Deus”. Identifica-se com Cristo – com uma vida “no Espírito de Deus”. Isto é, depois de uma vida de renúncia ao egoísmo e feita a opção por Deus e pelas suas propostas, ressuscitará definitivamente sob a comunicação de um Deus que nos recria ao ser Pai e Mãe de todos os seres que aderem a fé na vida eterna.

Assim, no Evangelho (Jo 11,1-45)  a família de Betânia apresenta características relevantes e diferentes para se pensar a vida de esperança de Cristo. Duas mulheres e um homem são os protagonistas e são irmãos. Em primeiro lugar, o autor não faz qualquer referência a outros membros além de Maria, Marta e Lázaro: não há aí ênfase em uma questão parental ou de um modelo de família, pai, mãe, filhos. João insiste no “grau de parentesco” na fé que os une como irmão e irmãs. Essa palavra “irmão” (adelfós) será a usada por Jesus, após a ressurreição e definirá a comunidade dos seus discípulos (Jo 20,17) que será comum entre os membros da comunidade cristã primitiva. Assim, a forma como é descrita a relação entre Jesus e essa família trata-se de uma família amiga de Jesus, que o recebe em casa e um fato a abala: um irmão (Lázaro) está gravemente doente e suas “irmãs” mostram preocupação e solidariedade, e informam a Jesus.

A relação de Jesus com Lázaro é de afeto e amizade, mas Jesus não vai imediatamente ao seu encontro; mostra que o tempo de Deus é diferente, por isso, parece até atrasar-se deliberadamente (vers. 6) para comunicar a vida em seguida, no tempo certo além do cronológico, vivido no desespero e na correria. Ele é o pastor que desafia o perigo por amor aos seus. (Ao chegar a Betânia, Jesus encontrou o “amigo” sepultado há já quatro dias. De acordo com a mentalidade judaica, a morte era considerada definitiva a Por isso, havia oposição a Jesus, mais precisamente, na Judeia e em Jerusalém. Os discípulos tentam dissuadi-o: não o entendem que o plano do Deus. Jesus não dá atenção ao medo ou às prováveis desconfianças das pessoas; a sua preocupação é levar amor e esperança, realizar o plano do Pai. Nesse contexto as duas mulheres diferentes, se complementam na ação diante de Jesus. Ambas significativas na fé e na esperança.

Marta é a primeira que vem ao encontro de Jesus e insinua uma reprovação: Jesus podia ter evitado a morte do irmão, se tivesse chegado antes. No entanto, percebe que mesmo agora, Jesus pode interceder junto de Deus, atendê-lo-á e devolverá a vida física a Lázaro. Marta pensa que as palavras de Jesus são uma consolação banal, mas fica registrada a intervenção de Deus na história humana. Jesus não fala da ressurreição no final dos tempos, mas a devolve já, na perspectiva do projeto de construção do Reino.

Maria, a segunda mulher a aparecer em cena, tinha ficado em casa. É chamada de irmã e está imobilizada pela dor da perda de Lázaro. Marta que falara com Jesus e encontrara nele a resposta para a situação que a fazia sofrer, convida a irmã a sair da sua dor e a ir ao encontro de Jesus. Maria vai rapidamente, sem dar explicações, mas também nas palavras de Maria há uma reprovação a Jesus pelo fato dele não ter estado antes presente, impedindo a morte física de Lázaro. Jesus nada fala, nem exorta as mulheres à mera resignação. Apenas devolve a vida.

Assim, a questão principal e determinante do Evangelho deste final de semana é uma afirmação para a vida de “amigos/as” de Jesus, que mesmo privados da vida biológica, não estão mortos, podem encontrar a vida plena. E diante da certeza que a fé nos dá, como em Marta e Maria, somos convidadas a viver a vida sem medo, livres e corajosas, companheiras nas dificuldades, capacita-nos para investir na vida, generosamente, contra tudo aquilo que nos oprime e que nos rouba a justiça e a vida plena. Esta liturgia garante-nos que a amizade com Jesus é aderir à sua proposta. E isso ele nos comunica no exemplo da família de Betânia. As leituras deste final de semana lembram que pelo Batismo optamos por Cristo e pela sua ressurreição, nos preparamos para a Páscoa, a passagem para a vida nova que Ele veio oferecer. Convida-nos, mulheres e homens de hoje, a sermos coerentes com a nossa escolha de fé, a fazermos as obras de Deus e a vivermos “segundo a Ruah, o feminino de Deus, que recria a todas/os no seu Espírito”.

 

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