4º domingo da quaresma - Ano A - Subsídio Exegético

17 Março 2023

Subsídio elaborado pelo grupo de biblistas da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana - ESTEF: Dr. Bruno Glaab, Me. Carlos Rodrigo Dutra, Dr. Humberto Maiztegui e Me. Rita de Cácia Ló. Edição: Dr. Vanildo Luiz Zugno.

 

Leituras do dia

Primeira Leitura: 1Sm 16,1b.6-7.10-13a
Salmo: 23,1-6
Segunda Leitura: Ef 5,8-14
Evangelho: Jo 9,1-41

 

 

O Evangelho

Já no prólogo do quarto evangelho, Jesus é apresentado como luz do mundo (Jo 1,4-9). Agora este tema é ilustrado de forma concreta. Mais do que pensar em cegueira biológica, ou física, deve-se ver no relato da cura do cego o confronto entre a luz (Jesus) e as trevas (autoridades religiosas). No primeiro dia da criação, Deus criou a luz (Gn 1,3s). Mas esta luz foi ofuscada pelo pecado. A religião do AT, em grande parte, era uma petrificação casuísta da Lei, da Profecia e da Sabedoria. Tudo isto deixava as pessoas cegas. Jesus, o logos de Deus é a luz definitiva que agora plenifica a luz iniciada no primeiro dia da criação. Em Jesus toda obra de Deus chega a sua plenitude.

De acordo com Ex 20,2ss Deus castigava os pais nos filhos e netos. Os discípulos veem a deficiência física do cego de nascença como castigo de pecados praticados por antepassados do cego, ou mesmo por ele. Esta visão, no entanto, é falsa. Jesus, a verdadeira luz, vem iluminar esta situação e não concorda com isto (Jo 9,3). A prática de Jesus se choca com a interpretação teológica do AT das autoridades religiosas de então. Ou seja, a Lei e a Sabedoria eram vistas como a luz do povo, mas no relato de hoje, a Lei (sábado) e a Sabedoria (interpretação da deficiência física como castigo) são justamente o empecilho da verdade, são cegueira. Na realidade, se tornaram trevas e opressão. Jesus assume o lugar da Lei e da Sabedoria com sua luz e muda o cenário. Agora os representantes do AT entram em conflito com Jesus. A luz ilumina os que a aceitam (Jo 1,11-12). A luta travada pelos representantes da Lei (sábado) com Jesus mostra a caducidade da compreensão empedernida de uma prática religiosa que já não pode iluminar as pessoas.

A liturgia do Quarto Domingo da Quaresma coloca este relato, não para realçar um milagre no estrito sentido do termo, mas para preparar os catecúmenos que iriam ingressar na comunidade de fé. Todo candidato ao batismo deveria ver no relato a sua própria história. Antes da conversão o homem era um cego condicionado por uma teologia ultrapassada (Ex 20,2ss – um Deus que castiga pais nos filhos), mas agora, mediante a palavra de Jesus, simbolizada na saliva, ele é recriado. A saliva de Jesus (sua palavra) faz barro (cf. Gn 2,7), cria o homem novo e através da água do batismo (piscina de Siloé) leva o batizado a enxergar a verdade de Deus. Os novos membros da Igreja eram iluminados. Já não podiam mais estar nas trevas como antes do batismo. O evangelho os transformava em novas criaturas.

Mas agora inicia um novo capítulo: o iluminado já não é mais reconhecido e entra em choque com os valores tradicionais (sábado e a Lei). Os batizados viviam novas maneiras que deixavam os de fora perplexos. Prova de que a evangelização e o batismo transformavam as pessoas. Agora, vivendo na luz de Cristo, a incompreensão dos adversários se torna evidente. Os cristãos vivem na contracorrente da história. Os representantes do sábado (religião petrificada, mantenedora da cegueira) não suportam a vida nova em Cristo e perseguem os convertidos.

 

 

Relacionando com as outras leituras

1Sm 16,1b.6-7.10-13a: o olhar de Deus não é o olhar humano. Samuel tinha a missão de ungir um rei para Israel. Pensou no primogênito de Jessé, o mais forte, o mais astuto, o mais belo. Mas o escolhido foi o último, um adolescente, quase uma criança. A cegueira humana vê as aparências, julga a partir de critérios diferentes de Deus. Pedro pensava as coisas dos homens e não de Deus (Mc 8,32-33), os judeus pensavam em milagres e os gregos queriam belos discursos (1Cor 1,22ss), mas em todos estes acontecimentos, entra em cena a lógica de Deus que escolheu a humilde serva, menina virgem, como mãe de seu filho (Lc 1,26ss). Paulo, ao encontrar Cristo, ficou cego por três dias (At 9,8ss), para depois enxergar diferente, isto é, iluminado pela palavra de Jesus. Ele passou de uma maneira de ver (lógica do AT) para uma nova maneira de enxergar (luz de Cristo).

Quem recebeu a luz de Deus, como Samuel, como Pedro, como Paulo deve enxergar o mundo com outra perspectiva. As pessoas verdadeiramente evangelizadas se baseiam em valores que a lógica meramente humana não consegue abarcar. Fica um apelo: o olhar cristão, iluminado pelo evangelho, pode se conformar com os valores que norteiam as relações culturais e ideológicas deste mundo?

Ef 5,8-14: o presente texto tem seu auge em “outrora éreis trevas; agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz. E o fruto da luz se chama: bondade, justiça, verdade” (8-9). Passar das trevas à luz como o cego de Jo 9,1-41 implica deixar para trás uma maneira viciada de viver para abraçar outros valores. A prática da bondade, justiça e verdade não estão na lógica do mundo, onde impera a concorrência, a injustiça e a mentira. Quem, pela evangelização e batismo foi iluminado, não pode concordar com os valores da sociedade meramente humana, mas deve denunciar tudo o que contraria os valores do reino de Deus instaurado por Jesus.

 

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