1º domingo da quaresma - Ano A - Discernir a vontade de Deus a serviço da missão

(Foto: Pixabay)

Por: MpvM | 24 Fevereiro 2023

"O tempo litúrgico quaresmal inicia-se com a Quarta-Feira de Cinzas. É um tempo privilegiado, que nos ajuda a tomar consciência da rota que estamos seguindo a fim de ajustá-la, se necessário for, para realizarmos a Vontade de Deus. A liturgia, de maneira pedagógica, nos insere na mistagogia da vida de Jesus para vivermos nossa vida cristã segundo o Espírito do Nazareno. Neste sentido, o primeiro domingo da quaresma nos coloca na perspectiva do discernimento que Jesus faz para viver Sua missão. Trata-se do itinerário que cada cristão é convidado a fazer para seguir o dinamismo da graça recebida no Batismo."

A reflexão é de Rosana Araujo Viveiros, ansp. Religiosa da Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade - ANSP. Ela é doutoranda em teologia pelo Pontifício Instituto Oriental, Roma. É mestra em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (BH), especialista em Filosofia Clínica pelo Instituto Packter, Porto Alegre (RS) e Pedagoga pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Lavras /MG).

 

Leituras do dia

1ª leitura: Gn 2,7-9.3,1-7
Salmo: Sl 50(51),3-4.5-6a.12-13.14.17 (R. cf. 3a)
2ª leitura: Rm 5,12-19
Evangelho: Mt 4,1-11

O tempo litúrgico quaresmal inicia-se com a Quarta-Feira de Cinzas. É um tempo privilegiado, que nos ajuda a tomar consciência da rota que estamos seguindo a fim de ajustá-la, se necessário for, para realizarmos a Vontade de Deus. A liturgia, de maneira pedagógica, nos insere na mistagogia da vida de Jesus para vivermos nossa vida cristã segundo o Espírito do Nazareno. Neste sentido, o primeiro domingo da quaresma nos coloca na perspectiva do discernimento que Jesus faz para viver Sua missão. Trata-se do itinerário que cada cristão é convidado a fazer para seguir o dinamismo da graça recebida no Batismo.

Jesus, após receber o batismo no rio Jordão, seguido da revelação da parte de seu Pai de que Ele é o Filho amado, segue para o deserto conduzido pelo Espírito. O deserto na Sagrada Escritura é um lugar especial, seja para o encontro com o Senhor, seja para o encontro consigo mesmo e para o discernimento. O povo de Deus passou 40 anos no deserto antes de entrar na Terra Prometida. O profeta Oséias diz que no deserto de Deus falará ao nosso coração (cf. Os 2,14). No deserto se está desprovido de tudo, por isso é também um lugar perigoso. O deserto é símbolo  nossa interioridade, do nosso eu mais profundo, diante do qual nos deparamos com nossos desejos, nossas forças e nossas fraquezas.

Jesus segue para o deserto para discernir o como viver e o como realizar a Vontade do Pai. Que tipo de Filho, de Messias, Ele deveria ser para anunciar a Boa Nova que o Pai lhe confiou? Todos nós passamos por tentações. Como enfrentá-las? É preciso uma atenção profunda à Palavra de Deus.

Como ouvimos hoje na primeira leitura (Gn 2,7-9.3,1-7), o primeiro casal humano escuta a Palavra de Deus que diz: “podes comer de todas as árvores do jardim, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, não comerás, porque no dia em que dela comeres, certamente você morrerá” (2,16-17). Porém, a serpente, símbolo da tentação, entra em diálogo com a mulher distorcendo a Palavra de Deus e lhe pergunta: “Então Deus disse: vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?” (Gn 3,1). E a partir da abertura da mulher ao diálogo com o tentador, ela se distancia da Vontade de Deus e rejeita sua condição de criatura, desejando ser igual a Deus.

Jesus, ao contrário, não entra em diálogo com o tentador. Ele responde a este com a Palavra de Deus (Mt 4,1-11). Interessante notar que o tentador conhece a Palavra de Deus, mas a deturpa usando-a de forma descontextualizada. É um perigo usar a Palavra de Deus desta forma. Jesus nos ensina como acolher e viver esta Palavra por meio da obediência à Vontade do Pai e da confiança em Seu amor. Ele não nega a necessidade da comida, do pão, mas percebe na proposta do tentador o desvio no modo de ser Filho e no modo de cumprir sua missão. Ele veio para servir e não para ser servido (cf. Mc 10,45), Ele é o Servo Sofredor anunciado pelo profeta Isaías em seu quarto cântico (cf. 52.13-53.12). Portanto, Jesus não é um super-homem, um mágico, um Deus que usa seu poder em benefício próprio, Ele é verdadeiro Homem que vive da Palavra de Deus no serviço aos outros. Ele é verdadeiro Deus que  ama e dá a sua vida pela humanidade.

Nesta primeira tentação de Jesus podemos aprender que o problema da fome não se enfrenta de forma mágica, mas é necessário acolher a graça de Deus e trabalhar para que todos tenham alimento digno para viver como filhos de Deus. Afinal, o “jardim do Éden” foi plantado para todos nós! Nossa missão é cultivá-lo como guardiões obedientes e confiantes em Deus, não como proprietários que só querem usufruir, mas como servidores e irmãos.

O tentador percebe que Jesus, embora esteja com fome, é firme na confiança em Deus. Agora ele insistirá sobre o prestígio de ser servido. Usando o salmo 91 o tentador coloca Jesus no ponto mais alto. Interessante que a tentação nos eleva, para depois nos jogar pra baixo. Na encarnação, Jesus não deixou de ser Deus, Ele é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, conforme foi definido no Concílio de Calcedônia e que nós rezamos no símbolo Constantinopolitano. Portanto, Ele tinha os atributos de Deus, mas ele se abaixou, se humilhou, abrindo mão dos seus ‘poderes’ divinos, se fez servo obediente até a cruz como nos diz Paulo na carta aos Filipenses (2,6-8). A Palavra de Deus é para nos guiar e sustentar na caminhada e não para nos colocar acima dos outros e sermos privilegiados. Como gostamos de ser privilegiados... essa tentação nos acompanha sempre. É preciso estar atento e unido ao Senhor para não cair. Jesus não entra no jogo do tentador de usufruir da Palavra de Deus a bel prazer, mas lhe responde usando a própria Escritura para ser fiel à Vontade do Pai. O tentador sabia da revelação divina, no batismo, quanto à filiação de Jesus, por isso ele insiste na tentação sobre esta condição de Jesus.

Na terceira tentação, que nos apresenta Mateus, o tentador propõe algo que nos fascina muito: o poder. E qual a condição para Jesus obtê-lo? Adorar o diabo! Usando a palavra de Deus contextualizada, Jesus afirma que só a Deus se deve prestar culto, pois adorar e servir são ações que se implicam (cf. Dt 6,13).

Ao enfrentar estas três tentações básicas da vida humana - o desejo de ter posses, o desejo de obter prestígio, o desejo de poder - Jesus nos ensina a viver, na liberdade, como filhos de Deus, por meio da obediência à Vontade do Pai e na profunda confiança em seu amor incondicional. À diferença do primeiro casal humano que quis ser igual a Deus e não obedeceu a Deus não dando atenção à Sua Palavra, Jesus, sendo Deus, se faz um de nós, e em nossa condição humana dá ouvidos atentos à Palavra de Deus e lhe obedece livremente. Por isso, sim!, os anjos vêm Lhe servir no deserto após ter vencido as tentações.

Vivemos em uma realidade na qual usamos a Palavra de Deus e o Seu nome para justamente aderir às propostas do tentador: sermos poderosos, termos domínio sobre os outros e acumularmos riquezas enquanto muitos morrem de fome. Nosso país é muito rico e é inconcebível que nossos irmãos morram de fome. A CF deste ano nos recorda o mandato de Jesus que nos ensina o milagre da partilha: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). O milagre acontece, Deus intervém, mas Ele nos convida a vivermos como filhos e irmãos.

Não estamos perdidos, como nos recorda Paulo na segunda leitura (Rm 5,12-19), pois, se por um homem desobediente o pecado e a morte entraram no mundo, por um Homem obediente, Jesus, a graça manifesta sua força dando-nos a vida e a verdadeira liberdade de filhos e filhas. Peçamos ao Senhor, como o salmista canta hoje nesta liturgia, que Ele nos dê um coração puro (51,10) para acolher e viver da sua Palavra na construção de uma sociedade mais justa, solidária e fraterna. Desta forma seguiremos o itinerário que Jesus percorreu e saberemos, como Ele, enfrentar as tentações que nos assolam querendo nos desviar de nossa missão como batizados, Filhos de Deus, guardiões da Casa Comum como embaixadores de Deus.

Bom tempo quaresmal a todos nós!

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