O Ocidente e a cristianofobia. Artigo de Lorenzo Prezzi

Cristão mártir no Coliseu. (Foto: Internet Archive Book Images | Flickr, domínio público)

23 Janeiro 2023

"O processo de secularização, o declínio conspícuo da participação nos gestos litúrgicos e a progressiva fragilidade institucional contribuem para a marginalização das religiões. Adiciona-se a isso o peso da falta de cultura religiosa generalizada e das denúncias dos abusos sexuais e de poder por parte do pessoal eclesiástico. A longa onda dos escândalos mina um depósito de credibilidade anteriormente construído", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 19-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Culpadamente desatento aos 360 milhões de cristãos expostos à perseguição no mundo, o Ocidente parece incapaz de sentir os sinais da erosão da liberdade de fé também internamente. Há mais de uma década, institutos de pesquisa e Igrejas relatam o crescimento impetuoso das perseguições.

Ao mesmo tempo, o magistério católico adverte sobre o deslizamento ideológico da laicidade ocidental em laicismo. O Papa Francisco o repetiu em seu discurso de 9 de janeiro (2023) ao corpo diplomático: “É bom não esquecer que a violência e a discriminação contra os cristãos estão aumentando mesmo em países onde eles não são uma minoria. A liberdade religiosa também é ameaçada quando os crentes veem reduzida a possibilidade de expressar suas convicções no contexto da vida social, em nome de um conceito mal compreendido de inclusão.

A liberdade religiosa, que não pode ser reduzida à mera liberdade de culto, é um dos requisitos mínimos necessários para viver dignamente e os governos têm o dever de a proteger e de garantir a cada pessoa, respeitando o bem comum, a oportunidade de agir de acordo com a própria consciência também na esfera da vida pública e no exercício da própria profissão".

E, pouco depois, denuncia a “colonização ideológica” expressa pelas “tentativas de impor um pensamento único, que impede o diálogo e marginaliza quem pensa diferente. Corre-se o risco de uma deriva, que assume cada vez mais a face de um totalitarismo ideológico, que promove a intolerância para com quem não adere a pretensas posições de “progresso”, que, na realidade, parecem antes conduzir a uma regressão geral da humanidade, com violação da liberdade de pensamento e de consciência".

Os nomes e a substância

Dificilmente se pode falar de perseguição (assédio e perturbação sistemática) no Ocidente. Em vez disso, se recorre ao termo cristanofobia. Nascido no ambiente acadêmico, foi difundido pela linguagem diplomática e da ONU, especialmente como o equivalente de "antissemitismo" e "islamofobia". Indica certas práticas de intolerância e discriminação e uma aversão preconceituosa para com as Igrejas cristãs.

Não faltam sinais de alerta por parte das instituições. Do Ministério do Interior austríaco que em 16 de novembro de 2022 convidou as associações dedicadas à denúncia das perseguições na Chancelaria, no grupo de trabalho sobre diálogo intercultural e religioso do Partido Popular Europeu que de 9 a 10 de dezembro em Viena iria discutir sobre “a religião e o futuro da Europa".

Naquele encontro, o secretário-geral da COMECE (comissão das conferências episcopais da Comunidade Europeia), Manuel Barros Prieto, recordou como a questão de Deus é decisiva para o futuro do continente, um antídoto para regimes autoritários e culturas antissociais. A França introduziu a atenção às religiões na formação diplomática e na Alemanha há um diálogo em curso com o atual governo verde-vermelho nas instituições federais que tratam do tema religioso.

Um sinal é também a nomeação do belga Franz van Daele como enviado especial da Comissão Europeia para a liberdade de religião e convicção. Designação que ocorreu após um longo período de ausência no último dia 7 de dezembro.

Os sinais

"Na Europa de hoje, não só está fora de moda viver a vida cristã com convicção, como tal opção também pode levar a graves violações da liberdade pessoal em áreas importantes da vida como o trabalho e a formação": a afirmação é da diretora do OIDAC (observatório sobre a intolerância e a discriminação contra os cristãos na Europa), Madeleine Enzlberger, no relatório do ano passado (cf. Settimana News).

No relatório deste ano, há 500 casos de hostilidade social ou ameaças à liberdade religiosa. A organização não governamental que se refere à Agência de Direitos da União e à OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) destaca três principais desenvolvimentos: o elevado número de crimes de ódio anticristãos em 2021, o crescente fenômeno da autocensura por parte dos cristãos e os preconceitos contra a fé e os valores cristãos nas redes sociais e na mídia.

A surpresa e a incredulidade de muitos com relação às denúncias estão ligadas à crença de que se trata simplesmente de perda de privilégios por parte dos credos e das Igrejas, de pouca plausibilidade diante da prática e da adesão declarada da maioria ou uma minoria consistente da população, de fatos e eventos de insignificante importância, de conflitos internos entre as diferentes confissões cristãs.

Autocensura dos crentes

São atos de vandalismo, furtos, incêndios e apenas em alguns casos (14) agressões físicas e homicídios (4). No entanto, são sinais de uma mudança progressiva da neutralidade para a hostilidade, da laicidade para o laicismo. O fenômeno da autocensura dos crentes no debate público e na vida civil está ligado a formas sutis de condicionamento e censuras indiretas.

"O generalizado laicismo político em vários países levou, em muitos casos, a excluir as crenças religiosas do discurso público e a considerá-las ultrapassadas e, em alguns casos, ofensivas". E isso acontece particularmente nas universidades, nas escolas e na mídia. Os estereótipos negativos são amplamente utilizados no debate político e na mídia.

O cristianismo é frequentemente descrito como inadequado e perigoso. E a sociedade civil parece cada vez mais indiferente a discursos depreciativos e às falsas acusações contra os cristãos.

“Na parte jurídica do Relatório são propostos cinco direitos humanos fundamentais muitas vezes negados aos cristãos:

• A liberdade de expressão e de reunião, cada vez mais limitada pelas leis sobre a chamada instigação de ódio e em zonas tampão em torno de clínicas que praticam aborto.

• As leis que também criminalizariam as conversas privadas, a oração e outras atividades pacíficas.

• A liberdade de consciência dos cristãos é questionada, pois a legislação sobre o aborto ou a eutanásia exige o direito à objeção dos profissionais de saúde para essas práticas.

• Da mesma forma, os direitos dos pais entraram em conflito com as leis LGBTQ+ e de aborto, que dão aos menores a autonomia para decidir se querem fazer um aborto ou uma mudança de gênero sem que os pais sejam informados.

• As limitações desproporcionais à liberdade religiosa durante a pandemia de Covid-19" (cf. Settimana News).

Defensores não confiáveis

O processo de secularização, o declínio conspícuo da participação nos gestos litúrgicos e a progressiva fragilidade institucional contribuem para a marginalização das religiões. Adiciona-se a isso o peso da falta de cultura religiosa generalizada e das denúncias dos abusos sexuais e de poder por parte do pessoal eclesiástico. A longa onda dos escândalos mina um depósito de credibilidade anteriormente construído.

A tudo isso se soma a falta de confiabilidade e credibilidade dos defensores e os limites da cultura leiga. O presidente da Missio Aachen, Dirk Bingener (Katholisch.de, 26 de dezembro) destaca o apoio ambíguo dos movimentos populistas europeus à defesa da tradição cristã. Apresentam-se como os verdadeiros defensores dos valores cristãos numa suposta guerra cultural contra o Islã e contra as decadentes democracias liberais do Ocidente.

Não percebem a contradição de defender a liberdade religiosa (para os cristãos) negando-a aos outros e usam a referência aos valores morais tradicionais para enfraquecer as formas essenciais da democracia. Uma estratégia própria de todos os partidos populistas, mas também das "democracias iliberais" como aquela de Viktor Orbán na Hungria.

A falta de consciência de algumas Igrejas que se aliam acriticamente para defender os valores tradicionais (é o caso da Polônia) sem a adequada consciência de elementos como a autonomia do poder judiciário num estado de direito contribuem para aumentar o radicalismo islâmico em países como como a Turquia, alimentam as reticências de amplos setores do espectro político e confirmam a intolerável cancel culture de algumas administrações públicas que, ao retirar símbolos cristãos ou com outras decisões semelhantes, acreditam estar prestando um serviço aos "outros".

“Essa mistura de ignorância e desinteresse pelo tema da religião é deplorável e deve mudar. Quanto mais os atores democráticos tiverem dificuldade para falar de violações das liberdades religiosas e se pronunciar em favor dos cristãos oprimidos e perseguidos, mais essas questões serão percebidas em público como próprias de partidos de direita”. Uma dinâmica que facilita aos populistas se apresentarem como os últimos apoiadores dos cristãos oprimidos.

Direitos e Evangelho

A cultura laica, acadêmica e midiática, ao lado do pensamento dominante das elites políticas, não percebe as possíveis derivas da ênfase nos direitos pessoais e à contradição de afirmá-los como obrigatórios em contextos culturais que os percebem como violentas colonizações.

É o tema dos "novos direitos" que, no ímpeto da expansão dos direitos fundamentais de 1948 (da criança, da mulher, do idoso, do meio ambiente, da paz, etc.) chegam aos "direitos sexuais", aos "direitos reprodutivos", à "saúde reprodutiva", ou seja, à afirmação dos "direitos individuais" que, em relação aos "direitos fundamentais" (liberdade pessoal, de pensamento, de movimento, etc.) não toleram quaisquer limites e transformam a "não discriminação" de condição para afirmar o direito a direito em si, ignoram a contradição com outros direitos mais tradicionais e retiram sua historicidade.

Uma insuficiência que não percebe o desenvolvimento que está ocorrendo na teologia e no magistério para uma saída progressiva da cristandade, da pretensão de uma palavra decisiva e obrigatória sobre a sociedade de parte da Igreja. A afirmação de uma lei natural ou de uma ordem moral objetiva não é de forma alguma desmentida, mas colocada em uma posição "segunda" (não "secundária") em relação à força kerigmática e inclusiva do Evangelho.

As distâncias das concepções antropológicas permanecem, não mais medidas na linha Igreja-mundo, mas na linha Evangelho-humano-comum. A prioridade dada ao tempo sobre o espaço (mais ao projeto do que ao poder) e ao poliedro mais que à esfera (mais à criatividade cultural e espiritual do que à ordem lógica da doutrina) enfatiza o dado testemunhal da fé mais do que aquele "obrigatório" do raciocínio. A palavra eclesial entra na linguagem da polis apenas com a força de seus gestos e de sua confiabilidade.

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