Proletários digitais: considerações sobre os trabalhadores de transporte de passageiros e de mercadorias

Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil

19 Janeiro 2023

"A qualificação, tanto quanto o rendimento e a jornada semanal de trabalho, que é, em média, acima de 40 horas, evidenciam como o setor de transporte de passageiros e de mercadorias desenvolve seus mecanismos de produtividade, ou seja, para garantir a acumulação de capital, atrai um contingente de trabalhadores com média qualificação, oferecendo-lhe baixas remunerações e impondo longas jornadas de trabalho".

O artigo é de Anderson Alves Esteves e Marcelo Phintener, originalmente publicado por A Terra é Redonda, 22-12-2022, e enviado pelos autores ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Anderson Alves Esteves é professor do IFSP, doutor em Filosofia (PUCSP) e membro dos grupos de pesquisa Grupo de Pesquisa Filosofia Política Contemporânea (PUC-SP/CNPq) e GPEPS (IFSP/CNPq).

Marcelo Phintener é doutorando em Filosofia Política na PUC/SP e membro do grupo de pesquisa Grupo de Pesquisa Filosofia Política Contemporânea (PUC-SP/CNPq).

Eis o artigo. 

Os trabalhadores de aplicativos ou de startups, cujo tipo de trabalho é contratado, sem vínculo empregatício, por meio de uma plataforma digital – que conecta usuários a prestadores de serviços –, foram os primeiros a sentir no bolso, no corpo e na alma os efeitos da Reforma Trabalhista, sobretudo aqueles vinculados ao setor de transporte de passageiros e de mercadorias. Antes de ser implementada pelo Parlamento brasileiro, sob a Lei nº 13.467, de 2017, o poder empresarial, como argumentou em artigo o historiador João Bernardo (2019), já havia se antecipado e aplicado aos trabalhadores o que seria efetivado pela supracitada Reforma no nível de vida dos trabalhadores quando da chegada da Uber no Brasil, em 2014, uma gigante do transporte particular que emprega motoristas sob relações de trabalho sem contrato firmado, ou seja, sem direito a salário mínimo e à proteção social.

Citando relatório da McKinsey Global Institute, a revista The Economist (2016) noticiou que “162 milhões de pessoas na América e na Europa, ou mais de 20% da população em idade ativa, trabalham fora do emprego normal”. Em outras palavras, estão na economia da informalidade. E esta é, pois, a dinâmica do compartilhamento de carona pago e das empresas de entrega, dois ramos de atividade a compor a chamada gig economy, ou, na linguagem do dia, denominada economia dos bicos, associada a formas laborais precárias, que estabelece relações de trabalho sob demanda e temporária (ARAÚJO, 2020; IPEA, 2021).

Trata-se de uma atividade econômica baseada em aplicativos e distribuída entre a indústria de transporte, de alojamento, de delivery, de entretenimento e de serviços de modo geral, que, em outros termos, significa, aos trabalhadores, o acesso à economia do freelance ou do bico, do meio período, dos consultores e dos autônomos, no qual o pagamento é feito por hora, por corrida ou por entrega, o que reduz os custos da produção mediante o barateamento da mão de obra. Consiste, portanto, numa versão do toyotismo, hoje uma das “principais formas da atividade produtiva no capitalismo atual", só que levada às últimas consequências.

O toyotismo, enquanto uma nova modalidade de administração de empresa, conjuga, por meio da infraestrutura tecnológica avançada, controle da força de trabalho e atividade econômica (BERNARDO, 2014). E está concatenado à acumulação flexível de capital que vinca-se, entre outros fenômenos, pela diminuição da utilização do trabalho vivo no processo produtivo (neste caso, da total subserviência do trabalhador ao app para, assim, dispensar qualquer forma de idiossincrasia e baratear a mão de obra) e pela disponibilização de serviços a nichos de mercado que, para tornarem-se lucrativos, demandam maior precarização até o nível da eliminação do assalariamento, da majoração total da informalidade e da fusão entre as mais valias absoluta e relativa, amalgamando o moderno e o arcaico , revestindo a neomarginalização social ideologicamente como “empreendedorismo”, “faça você mesmo” e pretensamente elevando os desempregados e os não empregáveis à categoria de “autônomos” (ANTUNES, 2009, p. 234; OLIVEIRA, 2003).

É sobre esse tipo de trabalhador, inserido no contexto das relações laborais da gig economy, ainda com certas dificuldades de mensuração, que versa o artigo em tela (HATHAWAY e MURO, 2016). E, neste sentido, para traçar um breve quadro da situação dos trabalhadores de aplicativos, consultamos os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNADC/IBGE), 3º trimestre de 2022, informações disponíveis no momento do estudo, dado seu nível bastante detalhado e sua consistência na coleta de informações sobre os mecanismos de funcionamento do mercado de trabalho brasileiro.

O passo seguinte foi filtrar a Classificação de Ocupações para Pesquisas Domiciliares e a Classificação Nacional de Atividades Econômicas Domiciliar (CNAED), a partir dos quais identificamos e localizamos atributos dos trabalhadores de app, como ocupação, idade, sexo, cor/raça, qualificação laboral, rendimento etc. Os predicados para caracterizar o perfil desse trabalhador ocupado se encontra nos microdados da PNADC/IBGE identificado no regime por Conta Própria e no grupo de atividade econômica Transporte, armazenagem e correio, especificamente nas atividades de transporte rodoviário de passageiros, transporte rodoviário de carga e atividades de malote e de entrega. Importante notar que, como a PNADC/IBGE não está desenhada para captar grupos ocupacionais específicos, o coeficiente de variação de qualquer estimativa pode oscilar.

Outra nota a destacar é que este estudo se baseia em duas pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA] (2021, 2022), sobremaneira na sua metodologia para estimar o universo de trabalhadores de aplicativos (app). Portanto, considerando as possíveis oscilações, como observado, os resultados que ora apresentamos estão estimados para compreender os arranjos alternativos de trabalho, nos quais parcela significativa da População Economicamente Ativa (PEA) busca seus meios de sobrevivência material.

A PNADC/IBGE, 3º trimestre de 2022, captou 5,3 milhões de trabalhadores vinculados ao setor de Transporte, armazenagem e correio, sendo 31% (1,6 milhão de pessoas, conforme Tabela 1) trabalhadores de app atuando em regime de conta própria. Deste universo, como mostra a Tabela 1, quase 1,0 milhão trabalha como motoristas de aplicativos e de taxista, representando 62% da força de trabalho.

O segundo maior contingente de trabalhadores se encontra na ocupação de motoboy, com mais 319 mil pessoas, seguido de mototaxista e outros entregadores (de bicicleta ou de carro), respectivamente, 224 mil e 62 mil trabalhadores. Quando se compara com o terceiro trimestre de 2021, segundo informações do IPEA, com base nos microdados da PNADC/IBGE do período, há um crescimento de 4% de trabalhadores na chamada gig economy, passando de 1,5 milhão em 2021 para 1,6 milhão em 2022. E, na comparação trimestral entre as ocupações, o maior crescimento ocorre na função de entregadores, por meio de bicicleta ou de carro, e por motocicleta, respectivamente, 21% e 7% de trabalhadores.

No caso do transporte de mercadorias, em particular a entrega de comida, uma reportagem da revista Época Negócios, edição de dezembro de 2021, revelou que só a Ifood emprega, em regime de conta própria, mais de 200 mil trabalhadores de entrega, ou seja, 62% do universo pesquisado. Tem-se, aqui, um exemplo acabado do toyotismo, quando a empresa, para acumular capital e explorar a força de trabalho, administra uma massa de trabalhadores sem precisar concentrá-los no mesmo espaço físico.

 

A distribuição regional dos trabalhadores de app pelo Brasil revela que a região Sudeste (Tabela 2) concentra percentual acima de 50% desta mão de obra, no caso de motoboys e motoristas de aplicativo e taxista. Os dados confirmam a presença mais generalizada de atividades relacionadas a gig economy em cidades/regiões, particularmente em áreas metropolitanas, onde o tecido econômico é mais desenvolvido. Plataformas como Uber, que globalmente emprega, à margem da legislação trabalhista e social, mais de 5,0 milhões de motoristas, começaram a operar nos EUA e depois ampliaram suas presenças em outras economias, notadamente, na América Latina (BIRON, 2022; THE ECONOMIST, 2016). A ascensão da gig economy evidencia que as remodelações pelas quais passa o capitalismo se iniciam onde ele está mais avançado, e é neste mesmo tipo de sociedade, em razão da luta dos trabalhadores, que a Uber, por exemplo, foi obrigada a conceder direitos trabalhistas, como aconteceu no Reino Unido (BLOOMBERG; MILLIGAN, 2021; WOODCOCK, 2017).

Já os mototaxistas têm expressiva presença na região Nordeste, representando 51% dos profissionais dessa categoria, conforme reportado na Tabela 2.

 

Este setor de atividade econômica tem uma força de trabalho predominantemente masculina, cuja média de idade é de 36,7 anos, sendo o motorista de aplicativo e de táxi o profissional com idade mais avançada, conforme ilustram as Tabelas 3 e 4. No atributo cor/raça, observado na Tabela 5, percebe-se a predominância de pretos/pardos/indígenas entre os mototaxistas, ao passo que para os demais profissionais o percentual é próximo dos 57%.

 

 

Acerca da habilidade das pessoas ocupadas - o parâmetro é o aprendizado em sala de aula, ou seja, a escolaridade formal –, tratam-se de trabalhadores com qualificação de nível médio. Conforme reportado na Tabela 6, a qualificação média está distribuída acima de 50%, sendo quase 70% para os motoboys. Na PEA total ocupada, 43% dos trabalhadores têm a qualificação em questão. Entre os mototaxistas, há maior percentual de ocupados com baixa qualificação (quase 45%), ao passo que o nível de qualificação mais elevado se encontra entre os motoristas de aplicativos e taxistas (20%). Para o quesito rendimento mensal médio (Tabela 7), as estimativas indicam que os motoristas de aplicativos e taxistas possuem os melhores ganhos. São R$ 2,2 mil recebidos por mês no terceiro trimestre de 2022, seguidos pelos motoboys, com rendimento mensal de R$ 1,7 mil. Os mototaxistas recebem por mês R$ 1,1 mil valor inferior ao salário mínimo vigente em 2022, que é de R$ 1,2 mil. O rendimento médio mensal para o total da PEA ocupada, no mesmo período, é de R$ 2,7 mil.

 

 

A qualificação, tanto quanto o rendimento e a jornada semanal de trabalho, que é, em média, acima de 40 horas (Tabela 8), evidenciam como o setor de transporte de passageiros e de mercadorias desenvolve seus mecanismos de produtividade, ou seja, para garantir a acumulação de capital, atrai um contingente de trabalhadores com média qualificação, oferecendo-lhe baixas remunerações e impondo longas jornadas de trabalho. Os aplicativos ou startups, formas de trabalho que vêm remodelando a economia, que terceirizam a entrega de mercadorias e o transporte de passageiros e, burlando as legislações trabalhistas, vivem à custa da condição de risco e insegurança, sobretudo a econômica, a que submete os trabalhadores, vendendo-lhes a ilusão de que podem ser independentes e não ter patrão (REST OF WORLD, 2021; RIBEIRO, 2022). A presente reflexão exemplifica como o capitalismo, notadamente em sociedades periféricas, tal como o Brasil, tem expandido, por meio de tal remodelação econômica, a precariedade laboral para o conjunto da classe trabalhadora, em termos de condição de trabalho, remuneração, formas de controle e disciplina.

Referências Bibliográficas

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