28 Novembro 2022
“Não posso chamar o senhor ao tribunal como testemunha, nunca ousaria isso, mas é preciso que haja uma declaração sua...” Piazza del Santo Uffizio, Roma, 24 de julho de 2021. O cardeal Angelo Becciu desabafa: três dias depois, seria julgado no tribunal vaticano por acusações de abuso de poder, peculato e suborno de testemunhas, ou seja, promessas de vantagens para fazer falso testemunho. Antigamente no auge da carreira no Vaticano, ele caiu em desgraça. E busca garantias do único que pode salvá-lo, o papa.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada em La Repubblica, 25-11-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma reação normal. O que é menos normal é que o purpurado, que recentemente perdeu a confiança de Francisco, gravou aquele telefonema com Bergoglio. É a reviravolta que surgiu no julgamento em andamento no tribunal vaticano sobre o golpe de compra e venda de um edifício no centro de Londres.
O investimento foi decidido na época em que Becciu era o número dois da Secretaria de Estado, gerido por uma rede opaca de burocratas vaticanos, financistas, corretores, e que acabou muito pior do que o investimento previa: comprado em 2014 por 275 milhões de libras, ou 320 milhões de euros, foi finalmente revendido neste ano por 186 milhões de libras, ou 216 milhões de euros.
Estabelecer quem é o fraudado e quem é o fraudador é uma tarefa dos magistrados liderados por Giuseppe Pignatone, mas não há muitas dúvidas de que houve uma fraude. Mas, na audiência dessa quinta-feira, o promotor de justiça, ou seja, o procurador, tirou uma carta-surpresa: a investigação realizada na Sardenha pela Guardia di Finanza, a pedido do Vaticano, sobre o entrelaçamento de relações e de negócios que ligavam Becciu a seus familiares na Diocese de Ozieri. E, a partir das mensagens trocadas pela família Becciu – guardadas no celular da sobrinha do cardeal, Maria Luisa Zambrano – surge a gravação do telefonema com o papa, que, com toda a evidência, não sabe que está sendo gravado. Não só isso: 20 dias antes ele havia sido submetido a uma delicada operação no cólon e agora tinha a voz cansada.
Becciu, como vem à tona a partir das conversas, quer demonstrar que Bergoglio não o abandonou. Busca um contato telefônico, mas que demora. “Seria preciso dar uma pancada na cabeça do Santo Padre”, comenta um amigo da família em uma mensagem. No fim, porém, o telefonema acontece.
Segundo a gravação, ouvida no tribunal sem a presença do público, mas divulgada pela agência Adnkronos, Becciu pede ao papa que intervenha para explicar que foi ele quem decidiu destinar dinheiro para a libertação de uma freira sequestrada no Mali.
“Eles me acusam de que eu o enganei”, diz Becciu ao papa. “Para mim, eu quase não deveria ser processado, porque lamento, mas a carta que o senhor me enviou é uma condenação...” E ainda: “Dizer ‘pois bem, eu autorizei Dom Becciu quando era sostituto a fazer essas operações’ bastaria para mim”. Francisco hesita, ainda está convalescente e no fim dá meias garantias. Sem saber, provavelmente, que está sendo gravando.
Mas o telefonema não é a única novidade. Há documentos de transporte falsificados para as entregas de uma padaria, há a confiança que Cecilia Marogna, autointitulada agente dos serviços italianos, afirma ter com a família Becciu, há a impressão relatada pelo bispo de então, Sergio Pintor, de que a família Becciu administra de modo familiar o orçamento da cooperativa Spes, à qual o cardeal envia generosas ofertas da Secretaria de Estado.
O procurador informou que, agora, o cardeal também está sendo investigado por associação criminosa.
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Escândalo no Vaticano: cardeal Becciu gravou telefonemas com o papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU