Documentário Laudato Si’ dá um rosto humano às mudanças climáticas, diz diretor

Cacique Dadá, em cena do documentário "A Carta", sobre a Laudato si'. Foto: Reprodução | Movimento Laudato Si'

06 Outubro 2022

 

O disruptivo documento do Papa Francisco sobre ecologia, criação e mudança climática que ele dirigiu ao mundo inteiro está chegando a uma tela de computador, telefone ou TV inteligente perto de você.

 

A Carta: Uma Mensagem para Nossa Terra” é um novo documentário sobre a encíclica “Laudato Si', sobre o cuidado da casa comum”. O filme, um projeto conjunto da Off the Fence Productions (por trás do documentário vencedor do Oscar “Professor Polvo”) e do Movimento Laudato Si', terá sua estreia no Vaticano em 04 de outubro, dia da festa de São Francisco de Assis, padroeiro da ecologia. O documentário completo está disponível no YouTube para assistir gratuitamente (acesse abaixo).

 

 

O lançamento do filme, previsto durante a cúpula climática das Nações Unidas COP26, foi programado com a entrada formal do Vaticano no Acordo de Paris. O Vaticano, que colaborou no documentário, convidou líderes eclesiásticos, cientistas e embaixadores da Santa Sé para a estreia, este último também participando de uma reunião de alto nível onde autoridades do Vaticano pediram maiores ações sobre as mudanças climáticas.

 

“A crise ambiental não é um problema apenas para os católicos. Ela afeta a todos, agora e as gerações futuras”, disse o cardeal Michael Czerny, chefe do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, em comunicado. “Este filme é um grito de clarim para as pessoas em todos os lugares: temos que agir juntos, e temos que fazê-lo agora”.

 

Com mais de quatro anos de produção, A Carta (“The Letter”) segue a história de cinco pessoas, cada uma representando grupos frequentemente marginalizados nas deliberações ambientais internacionais, a caminho de Roma para um encontro com o papa para discutir a Laudato Si' e as crescentes ameaças globais das alterações climáticas e da rápida perda de biodiversidade. Eles incluem Arouna Kandé, um refugiado climático no Senegal; Cacique Dadá, defensor do meio ambiente e líder da Terra Indígena Maró, na Amazônia brasileira; Ridhima Pandey, uma jovem ativista climática da Índia; e Greg Asner e Robin Martin, biólogos que estudam recifes de coral no Havaí.

 


Cena inicial do documentário "A Carta". Foto: Reprodução "A Carta" | Movimento Laudato Si'

 

O filme apresenta imagens exclusivas de seu encontro com Francisco, cujas palavras servem de guia espiritual ao lado de histórias pessoais e descobertas científicas ao longo do documentário. Após o encontro papal, o grupo viaja para Assis, a casa de São Francisco, cujo “Cântico das Criaturas” deu o nome à encíclica do papa.

 

Atrás das lentes capturando suas histórias estava Nicolas Brown, cineasta premiado que fez mais de uma dúzia de documentários sobre mudanças climáticas e meio ambiente, incluindo “As Regras do Serengeti”, “Pandas: The Journey Home”, da National Geographic, e “Climate Chaos” com o famoso naturalista David Attenborough.

 

“Nossa visão original era: ‘Podem a e a ciência se unirem de alguma forma para salvar o planeta?’ E isso foi uma grande base para mim, para iniciar o projeto e embarcar”, disse ele ao EarthBeat em uma ampla entrevista antes da estreia de A Carta.

 

Brown, o escritor e diretor, compartilhou a visão do filme, seu espanto ao ler a encíclica pela primeira vez e a jornada que transformou Laudato Si' de 40 mil palavras no papel em uma expedição visual de 90 minutos em suas mensagens ecológicas e as vidas impactadas pela destruição ambiental em um planeta em rápido aquecimento.

 


Nicolas Brown, diretor do documentário "A Carta", sobre a encíclica Laudato Si'. Foto: NCR

 

A entrevista é de Brian Roewe, publicada por EarthBeat, caderno do National Catholic Reporter, 04-10-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

Como você veio a fazer parte deste projeto de filme? O que o atraiu para este documento papal como tema de um documentário?

 

A ideia era fazer uma espécie de “Seremos história?”, mas com o papa em vez de Leonardo DiCaprio. Essa era a ideia. E inicialmente quando fui abordado, devo dizer que não estava tão interessado porque não sou católico. Eu nem sou tão religioso assim, embora eu suponha que me considero espiritual – e mais ainda desde que fiz este filme, um pouco. Mas eu estava preocupado que seria como um vídeo promocional para a Igreja Católica.

 

Até ser abordado sobre [o filme], eu nem tinha lido a Laudato Si'. E eu li e fiquei tão surpreso que o Papa Francisco parece ter intuído o momento de alcançar um aperto de mão em direção à comunidade científica para salvar nosso planeta.

 


Arouna Koundé, do Senegal. Foto: Reprodução "A Carta" | Movimento Laudato Si'

 

O que lhe impressionou quando leu Laudato Si'? E como isso começou a influenciar a visão que você tinha para o documentário?

 

Quando li o documento pela primeira vez, devo dizer que fiquei completamente impressionado com ele. Me pegou completamente de surpresa. Eu mesmo fui criado na tradição evangélica, e foi em uma parte bastante conservadora do estado do Colorado, EUA, onde a tradição era um tanto hostil à ciência... E então eu não estava preparado para um papel tão aceito da ciência [na Laudato Si']. Isso é o que imediatamente me impressionou.

 

Acho que foi a primeira vez que lentamente meu preconceito começou a desmoronar um pouco. Senti que em minha bolha, até certo ponto, se alguém fosse particularmente religioso, poderíamos simplesmente descarta-lo como alguém que não estaria necessariamente tão interessado em uma questão científica muito complicada. Mas, de repente, perceber que, no fundo, se proteger das mudanças climáticas e lutar contra a perda de biodiversidade, por causa dos componentes envolvidos, é tanto uma questão moral quanto tecnocrática. Agora, sou da opinião de que não há como nós, na comunidade científica, resolver a questão climática sem a ajuda da liderança moral.

 

A outra coisa que imediatamente me impressionou sobre a encíclica é que não havia história, então parecia uma tarefa impossível descobrir como transformá-la em um filme.

 

Eu fiz um filme antes deste onde eu tinha quatro personagens que se conheceram em torno de uma questão de ciência, chama-se “As Regras do Serengeti”. E eu pensei que poderia ser uma ideia trazer quatro pessoas de diferentes esferas da vida… pessoas que são de alguma forma desprivilegiadas do processo [de tomada de decisão em torno da mudança climática]. Então surgiu a ideia da voz da vida selvagem, voz dos pobres, voz dos jovens e voz dos indígenas. Vamos contar essas histórias e usar o megafone do papa que ele tem para transmitir essas histórias, para dar a eles tempo para entender quem eles são como pessoas para que possamos começar a pensar no problema das mudanças climáticas e no problema da biodiversidade menos em termos de estatísticas e mais em termos de seres humanos.

 


Cacique Odair "Dadá" Borari, da comunidade Novo Lugar, Pará, Amazônia brasileira. Foto: Reprodução "A Carta" | Movimento Laudato Si'

 

E então esse era o nosso objetivo, que essas pessoas não se tornassem mais estatísticas, mas se tornassem pessoas reais, e realmente entendêssemos algumas das dimensões humanas dos problemas que enfrentamos que acho que o papa está realmente tentando apontar. Então, de certa forma, acho que estamos contando a Laudato Si', mas pelos olhos das pessoas que a vivem na linha de frente.

 

Perto do final do filme, há um momento poderoso com Arouna do Senegal. Como foi testemunhar e capturar isso, e o que isso acrescentou ao filme?

 

Como acontece com o documentário, você tem uma ideia e geralmente a ideia é apenas incompleta e não é tão boa na realidade. Mas o que acontece é que a realidade sempre toma conta.

 

E no caso das mudanças climáticas agora, acho que em qualquer dia você poderá abrir o jornal e encontrar alguma evidência de mudanças climáticas severas. E aconteceu que no dia em que conhecemos o papa, alguns eventos aconteceram com um de nossos personagens, Arouna, do Senegal, que mudaram bastante a vida dele. A maioria das pessoas não sabe que o Senegal é o país mais baixo da África e, portanto, o aumento do nível do mar já está afetando drasticamente. E há comunidades inteiras, já estive lá várias vezes, há um centro de refugiados climáticos que está em operação há quatro anos, onde mais de 3 mil pessoas já foram deslocadas por causa das mudanças climáticas.

 

A história de Arouna é uma das que não prevíamos, mas o fato de ter acontecido ela fez o filme... E foi nesse ponto – nós tropeçamos nisso – mas percebemos que o verdadeiro encontro não era realmente para eles conhecerem o papa. O verdadeiro encontro era para eles se conhecerem. E assim o final do filme realmente se torna sobre uma união de pessoas que antes eram estranhas, cujas histórias eram estranhas umas às outras, que através de um diálogo de repente se tornaram amigos íntimos, até familiares e aliados um do outro da maneira que o mundo precisa se unir para responder às mudanças climáticas.

 


Arouna Koundé, no encontro com o Papa Francisco. Foto: Reprodução "A Carta" | Movimento Laudato Si'

E acho que é indicativo de quebrar essas bolhas e essas barreiras, que é o que o filme deve ser, o que eu acho que o Laudato Si' deve ser.

 

No início de “A Carta”, afirma que a mensagem de Francisco na Laudato Si' é ainda mais crucial para hoje do que quando foi emitida pela primeira vez. Por que você acha que é isso?

 

Acho que a urgência não vai desaparecer, porque como eu disse, a realidade está nos superando. Está superando até mesmo a ciência, mas certamente está superando os mercados financeiros e superando o público, pois está acontecendo mais rápido do que pensávamos. Os polos estão derretendo mais rápido. Os oceanos estão subindo mais rápido. E estamos vendo os resultados diariamente agora, em que as vidas das pessoas estão sendo dilaceradas. E não é só na África, embora eu diga que está muito claro que o Sul Global está pagando um preço mais alto.

 

É incrível ter alguém tão poderoso quanto o papa falando sobre isso. E espero que isso encoraje muito mais pessoas também. O filme pretendia ser, em alguns aspectos, uma reinicialização do documento.

 

Cada átomo de dióxido de carbono que sobe para a nossa atmosfera superior permanece lá em cima por uma média de 200 anos. Portanto, ainda temos dois séculos de aquecimento para superar o que já criamos. Portanto, essa urgência não vai desaparecer por alguns séculos. Felizmente, a Igreja pensa em séculos.

 

Considerando que o Papa Francisco dirigiu sua encíclica a todas as pessoas, qual foi a importância de tornar este documentário acessível no YouTube para as pessoas assistirem gratuitamente?

 

Esse foi uma verdadeira confusão para mim no começo porque estou muito, muito acostumado – e acho que toda a minha indústria é totalmente voltada para – prêmios, tapetes vermelhos, festivais e ganhar dinheiro fazendo um filme. E assim esta foi uma abordagem muito contraintuitiva.

 

Todo esse projeto, para ser honesto, é sair dessa bolha [de pessoas que já estão preocupadas com questões ambientais]. E para isso, o YouTube se torna essa plataforma incrível e poderosa. Meu sonho é que este filme seja assistido na África, na América Latina, em igrejas e pequenas comunidades distantes dos grandes cinemas, e alcance pessoas que de outra forma não poderiam assistir ou talvez não se interessassem se não fosse pelo fato de que o papa está nele.

 


Raniero Cantalamessa, pregador da casa papal, lê o "Cântico das Criaturas" de São Francisco de Assis em uma cena do documentário. Foto: Reprodução "A Carta" | Movimento Laudato Si'

 

Você falou de esperança durante toda a nossa conversa. O que você espera que os espectadores tirem deste filme?

 

Espero que as pessoas se interessem e fiquem fascinadas com sua própria dimensão espiritual para que possam tomar decisões sobre o meio ambiente. O cardeal Raniero Cantalamessa tem algumas mensagens muito poderosas no final do filme, onde ele fala sobre sua própria experiência como franciscano, onde o fato de não possuir nada lhe permite possuir tudo em um sentido. E há mensagens de liberdade que vêm com compaixão e bondade que são mais convincentes, eu acho, do que o argumento capitalista, que é acumular e comprar e ter e manter e possuir e desejar.

 

Minha maior esperança é que as pessoas entendam que a crise climática e a crise da biodiversidade são as maiores ameaças existenciais já enfrentadas pela humanidade, e será necessária uma resposta humana completamente unificada em todo o mundo para combatê-las. Estes são grandes, grandes, quase surrealmente grandes problemas colocados que afetarão todas as gerações futuras, não apenas as atuais. E de um ponto de vista filosófico puro, condenar todas as gerações futuras a uma vida inferior apenas para que possamos ter algum conforto a curto prazo é incrivelmente moralmente censurável.

 

Então, espero que as pessoas comecem a olhar mais para as dimensões morais dessas questões, e Laudato Si' sendo um documento moral, o próprio papa sendo um líder moral. Acho que se reconhece que a ciência no final das contas é apenas uma ferramenta, e é o comportamento moral e a consciência dos indivíduos, é sua capacidade de gerar sua própria compaixão pelo outro e sua capacidade de talvez ver a criação como uma responsabilidade, não algo que é ser saqueado. E são esses tipos de mensagens mais profundas que eu espero que as pessoas comecem a pensar, por influência do filme, todas as quais eu acho que são realmente mensagens de esperança.

 

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