A luta pela independência, 200 anos depois: “O que nos constrange hoje é a miséria, a desigualdade, a destruição do meio ambiente”. Entrevista especial com Cecilia Helena de Salles Oliveira

"A desqualificação das oposições, a desvalorização das capacidades da sociedade, por si própria, encontrar o seu caminho, são marcas do pensamento político conservador do Brasil, e essas marcas são muito fortes", afirma a historiadora

Tela "A proclamação da Independência", de 1844, do pintor francês François-René Moreaux

Por: Patricia Fachin | 05 Setembro 2022



O conhecimento acumulado na historiografia brasileira, particularmente nas três últimas décadas, fornece novas compreensões sobre a Independência brasileira, cujos 200 anos serão celebrados nesta quarta-feira, 7 de Setembro, sobre os processos e movimentos em curso em todo o país no período e também sobre a própria sociedade. É a partir dessa ênfase que "Ideias em Confronto: Embates pelo Poder na Independência no Brasil (1808-1825)" (São Paulo: Todavia, 2022), livro lançado em agosto pela historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, propõe revisitar a história do país e a própria Independência do Brasil.



"Até bem pouco tempo atrás – há três décadas –, os historiadores lidavam com a sociedade colonial, que participou da Independência, como se ela fosse muito simplificada. O que os estudos mais recentes têm mostrado é o contrário disso: é uma complexidade da sociedade. É a presença de inúmeros segmentos sociais que tinham diferentes graus de riqueza e de inserção, diferentes possibilidades de exercer a cidadania e que havia uma mistura, uma mescla: a sociedade era múltipla nas suas cores, nas suas condições de vida", resume.



Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Cecilia explica que a historiografia recente tem buscado compreender "justamente os derrotados" da história "porque quanto mais investigarmos os projetos que foram derrotados e não tiveram encaminhamento, mais nós vamos conseguir compreender a diversidade social e as razões pelas quais a proposta monarquista, constitucional, acabou vencendo as outras".



Segundo ela, "é muito difícil de estabelecer conexões de 2022 para 1822" para compreender, por exemplo, as desigualdades sociais que atravessam o país ao longo dos dois últimos séculos. Entretanto, é possível encontrar algumas razões no período da Independência. "No caso do Brasil, diria que na discriminação dos cidadãos e na configuração da Carta de 1824, um ponto central é a possibilidade de os interesses privados interferirem nos interesses públicos. Se hoje enfrentamos essa situação em que quase não há diferença entre o que é público e o que é privado, nós podemos dizer que as origens dessa articulação vêm do período da Independência. Quer dizer, o modo como o governo constitucional representativo foi se constituindo ensejou ou provocou a articulação entre os interesses privados e os interesses públicos, e isso está nítido no momento da declaração da separação de Portugal, porque a grande maioria da sociedade não queria a separação de Portugal. Mas ela foi quase que imposta pelos interesses econômicos e mercantis daqueles grupos que mencionei anteriormente, que dominavam São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais", menciona.

 

O movimento da Independência, acrescenta, "está articulado às ações, aos interesses, às propostas, à dinâmica de determinados segmentos da sociedade. Em função do poder conquistado, conseguiram impor o encaminhamento político. Claro que vão sofrer inúmeras oposições e serão apeados do poder depois, mas esse nexo entre economia e política foi dado ali, naquele momento, e essa é uma característica das práticas liberais no Brasil desde então".



Prospectando o futuro do país, a historiadora ressalta que as demais independências que ainda precisam ocorrer no Brasil "serão sinalizadas pela própria sociedade". "É a força da sociedade e das lideranças enraizadas na sociedade que vão transformar essas independências em realidade. São muitas independências para além da cidadania e para além da liberdade política porque isso é a base para chegarmos mais adiante, mais a frente e lutar contra aquilo que nos constrange. O que nos constrange hoje é a miséria, a desigualdade, a destruição do meio ambiente, a falta de respeito para com os jovens, as crianças e as mulheres. Temos que lutar por essas independências", conclui.

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira

Foto: Divulgação

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira é graduada em História, mestre e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo - USP. Livre-docente pelo Museu Paulista da USP, é professora do Programa de Pós-Graduação em História Social da mesma universidade e professora titular no Museu Paulista da USP.

Ex-diretora do Museu do Ipiranga, Cecilia Helena de Salles Oliveira também é autora de “7 de Setembro de 1822. A Independência do Brasil” (São Paulo: Lazuli, 2005) e “Astúcia Liberal: Relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro 1820-1824” (São Paulo: Intermeios, 2021).



Confira a entrevista.

 

IHU - As interpretações sobre a Independência do Brasil sofreram transformações profundas nos últimos trinta anos, conforme a senhora pontuou no artigo intitulado “Independência e Revolução: Temas da política, da história e da cultura visual”, em 2020. O que mudou fundamentalmente na interpretação desse fato ao longo das últimas três décadas? Como a Proclamação da Independência do Brasil foi sendo compreendida pela historiografia brasileira e como é interpretada historicamente hoje, 200 anos depois?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – Nos últimos 30 anos, em função da acumulação de conhecimentos que os historiadores obtiveram ao longo do tempo – porque nesses 200 anos, desde o momento da Independência, da separação de Portugal, as interpretações sobre o que estava acontecendo, sobre o futuro da nação, sobre a construção da nação, foram sendo elaboradas –, existem alguns princípios consensuais entre os historiadores a partir dos quais os novos estudos vêm se realizando.

 

Entre eles, destacaria, em primeiro lugar, a inserção do movimento de Independência do Brasil no campo dos movimentos liberais e independentistas que estavam ocorrendo na Europa e nas demais áreas americanas. Esse é um ponto essencial. Quer dizer, ao contrário do que sempre se ensinou, o Brasil não estava isolado e o movimento de Independência não aconteceu absolutamente de todos os outros. Claro que a vinda da corte [para o Brasil], as transformações geradas pela presença desta, o desenvolvimento do governo no Rio de Janeiro, isso tudo teve uma interferência, mas o ponto central é reconhecer as aproximações entre o que estava acontecendo aqui e o que estava acontecendo na América de origem Hispânica, na América do Norte e as revoluções liberais em curso na Europa, particularmente em Portugal e na Espanha.

 

Tanto a Revolução do Porto quanto a Revolução de Cádis [Espanha], em 1812, e a Revolução Liberal, em 1820, tiveram uma enorme repercussão na América e no Brasil. Então, os mesmos princípios constitucionais, os mesmos debates em torno da cidadania, os mesmos debates em torno de como construir governos representativos, isso tudo fazia parte de um mesmo movimento e, apesar das particularidades, o Brasil estava integrado a tudo isso.

 

 

Narrativas criadas no Rio de Janeiro

 

O segundo ponto é o de que a historiografia enfatizou por demais as narrativas em torno da Independência criadas no Rio de Janeiro, como se o conjunto da América Portuguesa pudesse ser entendido a partir de lá. Isto dificultou a compreensão de que havia um núcleo de poder – Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais –, mas que, para além desse núcleo de poder que concentrava muitas das decisões adotadas pelo governo do Rio de Janeiro, havia uma fragmentação de posições políticas que se refletia também no Rio de Janeiro. Quer dizer, não havia unanimidade em torno do caminho a ser adotado nem do ponto de vista da separação ou não separação de Portugal, muito menos do ponto de vista do teor, do conteúdo do novo governo que se pretendia construir. Se nós não entendermos os projetos, as ações e os movimentos em curso no Norte, no Nordeste e no extremo Sul, incluindo o Rio Grande do Sul e, particularmente, as relações do Rio Grande de São Pedro com o Rio da Prata, nós não vamos conseguir entender de que modo um projeto – que era um projeto localizado – acabou se tornando um projeto dominante a ponto de levar à separação [de Portugal e Brasil] e de indicar o caminho constitucional que está refletido na Carta de 1824. Mas nós também não vamos entender por que esse projeto, que era tão forte ao longo do Primeiro Reinado, foi posto em xeque não só pelo parlamento, pela Câmara dos Deputados, mas, principalmente, por inúmeros movimentos de oposição. Isso acabou levando à abdicação e a uma série de situações de conflito ao longo dos anos de 1830, que, de alguma maneira, retomavam questões que tinham sido debatidas em 1821, 1822, 1823, mas não tinham sido resolvidas ali. Então, o que se percebe é que a Independência é muito importante – ela sem dúvida é um marco do ponto de vista da formação da nacionalidade, mas ela não é o fim; ela é o começo.

 

 

Construção da nacionalidade

 

Há uma compreensão de que o processo de construção da nacionalidade – e este é o terceiro ponto que eu gostaria de ressaltar – e de construção do Estado nacional avança para os anos de 1830, 1840 e que, efetivamente, o Império, do ponto de vista da unificação do território, da centralidade da corte do Rio de Janeiro, da autoridade do governo do Rio de Janeiro, só pode ser entendido a partir dos anos de 1840, com a coroação de Dom Pedro II. Então, estamos diante de alguma coisa muito complicada, muito complexa e que a historiografia até bem pouco tempo atrás não reconhecia dessa maneira.

 

Veja que coisa curiosa mesmo com relação ao 7 de Setembro: foi ao longo do século XIX que este dia se tornou data nacional. Mas durante o governo Dom Pedro I, ele enfrentou inúmeras resistências para que a data fosse aceita. Durante o Período Regencial, havia uma disputa entre o 7 de Setembro e o 7 de Abril porque os liberais não queriam que o primeiro se consolidasse pois ele representava um governo centralizador, a figura de um monarca que não era celebrada por boa parte da sociedade.

 

 

Complexidade da sociedade

 

Então, aí vem o quarto ponto: até bem pouco tempo atrás – há três décadas – os historiadores lidavam com a sociedade colonial, que participou da Independência, como se ela fosse muito simplificada. O que os estudos mais recentes têm mostrado é o contrário disso: é uma complexidade da sociedade. É a presença de inúmeros segmentos sociais que tinham diferentes graus de riqueza e de inserção, diferentes possibilidades de exercer a cidadania e que havia uma mistura, uma mescla: a sociedade era múltipla nas suas cores, nas suas condições de vida. Havia, claro, uma grande quantidade de escravizados, mas havia também muitos libertos, mestiços. Essa gente misturada com índios e com portugueses tinha pequenas e médias propriedades, vivia de inúmeras formas de trabalho e é essa sociedade que vai lutar pela cidadania. É essa sociedade que vai efetivamente participar das Guerras de Independência em todo o território.

 

Qual era a imagem que tínhamos da sociedade antes? Que havia latifúndios, com escravos, e que eram os latifundiários que dominavam. Hoje, se sabe que não é mais assim. Se sabe que pequenos e médios produtores tinham uma força econômica muito grande e que, claro, eles eram escravistas, porém, era uma sociedade que não pode, de maneira nenhuma, ser entendida como uma sociedade submetida ao poder da metrópole e simplificada. Então, na verdade, a periodização com a qual estamos trabalhando recuou para os fins do século XVIII. Você pode ter percebido, na minha explanação, que estou trabalhando com um período que vai de 1831 até um pouco mais adiante e, na verdade, nós recuamos justamente para compreender as interferências, as ingerências das transformações nas políticas metropolitanas em relação à sociedade colonial e à capacidade de inúmeros segmentos dessa sociedade atuarem na administração e se inserirem de uma outra forma perante as autoridades, perante a lei e perante àquilo que acontecia.

 

Ideias em Confronto

 

Eu tive a oportunidade de trabalhar todos esses aspectos com muita profundidade no livro mais recente que lancei em agosto deste ano, “Ideias em Confronto: Embates pelo Poder na Independência no Brasil (1808-1825)” (São Paulo: Todavia, 2022). Nesse livro, retomo as questões que coloquei naquele artigo de 2020, mas as aprofundo do ponto de vista da recuperação dos principais pontos que a historiografia tem trabalhado nos últimos tempos.

 

 Foto: Divulgação

 

Além desses quatro pontos que mencionei, tem outro que gostaria de ressaltar: até bem pouco tempo atrás, os historiadores revisitavam os arquivos, buscando sempre as mesmas coleções. Mas, ultimamente, tem uma série de publicações pela imprensa, folhetos, manifestos, que passou pelo crivo dos historiadores. E lidar com a imprensa é lidar com uma multiplicidade, é lidar com a dinâmica da sociedade, com a dinâmica da cultura política e isso tudo abriu novos horizontes e perspectivas de pesquisa. Então, acredito que obras mais recentes espelhem justamente essa perspectiva. Nesse sentido, cabe lembrar que em 1º de setembro foi lançado, pela Universidade de São Paulo – USP, o Dicionário da Independência do Brasil, que organizei em conjunto com o professor João Paulo Pimenta. O dicionário demonstra o atual estado da arte do tema, trabalhando justamente todas essas questões que mencionei. Tivemos a colaboração de 274 autores, entre eles, muitos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.

 

IHU – Entre os movimentos de emancipação que ocorreram na América e na Europa desde os fins do século XVIII, quais influenciaram mais o processo brasileiro e por quê?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – Acredito que a Revolução em Cádis, em 1812, foi muito importante porque inspirou tanto as ações dos revolucionários portugueses quanto a formulação de projetos no Brasil. Fora isso, claro que a Independência dos EUA e os movimentos revolucionários do Rio da Prata, porque cada um deles, para além da participação popular, trazia experiências da aplicação prática de princípios como o federalismo, a confederação, e também a discussão a respeito da cidadania e de quais seriam os critérios para o exercício desta. Tanto a Constituição Portuguesa de 1822 quanto o projeto de Constituição de 1823 e a Carta de 1824 são tributários desses debates a respeito do exercício da cidadania, da condição dos homens livres, da condição dos homens libertos, da condição dos escravizados. Isso tudo está muito candente nesses textos constitucionais – e também o confronto armado. Quer dizer, temos que lembrar que as Guerras de Independência não ocorreram só na Bahia. Temos que incluir aí a Revolução de 1817, em Pernambuco, as guerras que aconteceram no Pará e no Maranhão, mas também as guerras que atingiram Montevidéu, Buenos Aires e Rio Grande do Sul. Em todas essas áreas, a atuação de gente do Rio de Janeiro, da Bahia, de Pernambuco, de São Paulo estava muito presente porque, através das linhas de comércio, de crédito, da navegação de cabotagem, da navegação transoceânica, do tráfico de escravos, essas regiões se articulavam, assim como os ideais e as propostas políticas – e havia uma atuação muito efetiva através das armas.

 

 

Então, sem dúvida nenhuma, compreender o processo de Independência é compreender a violência que atravessava a sociedade de alto a baixo e que estava associada tanto ao uso das armas e ao confronto das armas, propriamente, quanto às hierarquias sociais, às formas de dominação social e à maneira como inúmeros segmentos reagiam a isso e viam, no debate constitucional, saídas para a sua própria situação. É muito interessante como nas Guerras de Independência houve a participação de homens e mulheres livres, a participação de escravizados, a participação da população indígena. Esse dinamismo acabou se perdendo ao longo dos 200 anos porque, ao mesmo tempo em que a figura de Dom Pedro e a figura de determinados protagonistas passaram a ter toda a atenção e o 7 de Setembro se tornou o eixo da discussão, o mesmo movimento que vai iluminar Dom Pedro, a monarquia e José Bonifácio vai apagando os outros protagonistas, as lutas políticas e as outras propostas que foram derrotadas.



O que a historiografia mais recente tem feito é buscar justamente os derrotados porque quanto mais investigarmos os projetos que foram derrotados e não tiveram encaminhamento, mais nós vamos conseguir compreender a diversidade social e as razões pelas quais a proposta monarquista, constitucional, acabou vencendo as outras.

 

 

IHU - Pode nos falar um pouco sobre os movimentos políticos que estavam em curso à época na Bahia, no Maranhão, no Pará, em São Pedro de Rio Grande e em outros estados? Que entendimento eles tinham acerca do que significaria a "independência"? Todos buscavam uma saída institucional e constitucional? De que modo buscavam articular seus interesses com as propostas de “independência”?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – Primeiro, o termo “independência” é um termo muito cheio de significados. Então, por exemplo, nas guerras que ocorreram no Rio Grande do Sul e nas guerras que articularam o Rio Grande do Sul com Montevidéu e Buenos Aires havia, pelo menos, três propostas diferentes de independência e nenhuma delas era sinônimo de separação de Portugal. Nós confundimos separação de Portugal com independência, mas o sentido de “independência” está ancorado na construção de um espaço para a liberdade política pelos cidadãos e na construção de um governo constitucional. É interessante observar como muitos estancieiros e comerciantes radicados no Rio Grande do Sul, e que tinham muito contato com Montevidéu e Buenos Aires, apoiaram a presença de tropas portuguesas ligadas à corte joanina justamente porque era uma forma de garantir a continuidade dos negócios, impedir a presença inglesa e fazer frente aos interesses de Buenos Aires. Então, para eles, a independência, na verdade, significava articular-se ao governo português, articular-se às cortes de Portugal porque o projeto destas era de base social ampla, de cidadania abrangente, e também era uma proposta na qual o poder legislativo tinha muita influência.



Em contrapartida, havia aqueles que consideravam “independência” se articular com o governo do Rio de Janeiro, mas não necessariamente se separar de Portugal. A questão era a competição comercial e também a possibilidade de se ancorar no Rio de Janeiro um projeto de expansão territorial, incorporando Montevidéu efetivamente – daí a Guerra da Cisplatina.



Mas, por exemplo, em São Paulo, havia também grupos de poder diferentes: alguns consideravam que o melhor era seguir as cortes não do ponto de vista de uma subordinação a elas, mas do projeto constitucional delas; alguns consideravam Dom Pedro como um centro de autoridade que poderia efetivamente articular a região, mas outros pegaram em armas. Houve uma rebelião na cidade de Santos, um dos portos mais importantes do período. Eram rebeliões de tropas que queriam se liberar do Rio de Janeiro e constituir, juntamente com as outras províncias, uma federação, uma confederação de províncias, e não se articular necessariamente a um centro definido de poder, espelhando-se muito no exemplo norte-americano.

 

 

Foi muito difícil para o governo central norte-americano se constituir efetivamente porque os estados queriam manter plena autonomia. Esse mesmo debate aparece em Pernambuco, no Maranhão, em Belém do Pará e na Bahia. Então, percebe-se que esses projetos tinham como pano de fundo um constitucionalismo, que poderia ser interpretado de inúmeras formas. Mas, ao mesmo tempo, havia projetos de caráter muito mais centralizador ou mesmo de caráter absolutista. Estamos diante de um quadro político que é muito variado e que as propostas políticas estão muitas vezes presas a determinados interesses de grupos ou de segmentos da sociedade. É nessa direção que a historiografia tem caminhado. Por exemplo, existem estudos mais recentes a respeito dos chamados servis, que eram remanescentes do governo de Dom João VI que lutavam contra o constitucionalismo. Então, o sentido de “independência” é muito divergente naquela época e foi o próprio governo de Dom Pedro que acabou associando a palavra à separação de Portugal.



IHU - Por que a proposta de Independência, tal como ocorreu, venceu em relação às outras? Qual foi a particularidade?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – A particularidade é o poder dos grupos que davam respaldo a ela, as chamadas províncias coligadas, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Os grupos econômicos mais influentes e mais enriquecidos dessas três províncias acabaram dando sustentação militar e financeira para que Dom Pedro declarasse a separação de Portugal e constituísse um Império no Brasil. Se bem que essa gente toda foi muito beneficiada durante o governo de Dom João VI, porque a presença da corte no Rio de Janeiro beneficiou determinados setores, mas não o conjunto da população e muito menos todas as regiões. Essa gente ficou no poder até a abdicação de Dom Pedro, mas foram apeados com o Período Regencial. Eles voltam depois, mas as oposições liberais contra eles acabaram fazendo com que Dom Pedro abicasse poder aos liberais e às oposições. São núcleos de produtores e negociantes de grosso trato ligados à expansão da lavoura cafeeira, ao mercado interno, à circulação de mercadorias no mercado interno e boa parte deles está ligada também aos traficantes de escravos. Eles ganharam muito espaço com a presença da corte porque sustentaram o governo de Dom João e acabaram assumindo cargos absolutamente decisórios.



Agora, essa gente tem uma visão de grande perspectiva: eles apostam na configuração de um governo centralizado capaz de justamente unificar o mercado interno, unificar o território e fazer frente à competição norte-americana e britânica porque eles tinham a percepção da necessidade de modificar a legislação vigente, abrir o mercado para a economia mundial e, principalmente, criar condições de câmbio e de juros para a inserção da produção exportadora brasileira no mercado internacional. Então, eles tinham uma perspectiva de um grande império capaz de fazer frente à concorrência e capaz de inserir a economia brasileira no mercado internacional com ganhos. Realmente realizaram isso, porém, enfrentaram inúmeras oposições e acabaram também tendo que enfrentar a oposição britânica e a oposição ao tráfico de escravos.

 

 

IHU - Qual foi a atuação dos negros nesses movimentos pela Independência, considerando que já existiam libertos, embora o processo de abolição da escravidão no Brasil tenha sido gradual depois da Independência?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – Houve uma inserção de escravizados e de libertos descendentes de africanos ou libertos africanos nas tropas auxiliares, chamadas de milícias, nas tropas do Exército e da Marinha, e nas Guerras de Independência, não no sentido de serem guerras necessariamente contra as tropas portuguesas ou as tropas aliadas às cortes. No caso do Maranhão, por exemplo, tanto indígenas quanto escravizados foram mobilizados nas lutas locais entre os grupos políticos locais que queriam se assenhorar do poder provincial para decidir qual caminho que a província do Maranhão e do Pará iriam seguir. Eles entram como soltados mesmo, mas isso não quer dizer que não ocorrem revoltas que os próprios escravizados organizassem e, em alguns casos, isso aconteceu de uma maneira muito forte, porque no caso da Bahia, e mesmo no Maranhã e no Pará, a promessa era de que os escravizados, atuando dentro dos exércitos para defender as propostas dos grandes produtores e dos médios e pequenos produtores, seriam libertados. Depois, isso não aconteceu. Então, houve revoltas tanto da população indígena quanto de escravizados.



Não podemos esquecer que esses movimentos ainda estão em processo de análise de pesquisa porque há uma cobertura em torno disso já que houve um silenciamento, assim como houve um silenciamento em torno dos matizes étnicos e de cor de pele que formavam a sociedade americana porque ao longo do século XX se criaram dois mitos: o mito da democracia racial e o mito de que a miscigenação não iria dar certo. Esses dois mitos acabaram criando um véu nas investigações e nas interpretações porque muitas pessoas ainda se voltam para o passado a partir desses princípios, desses preconceitos e preposições que a historiografia atual vem desfazendo. Ainda falta conhecer muito a respeito da participação das mulheres, dos escravizados, dos libertos, dos indígenas e das populações mais pobres não só nas Guerras de Independência, mas no exercício da cidadania.



Temos que entender que apesar de o voto ser definido por critérios censitários, quer dizer, quem era votante tinha que ter Cem Mil Réis de renda anual – o que em 1822 é praticamente nada, é o equivalente a uma arroba de farinha de mandioca, então, quem possuía um escravo não só era votante como eleitor –, o voto não era universal porque as mulheres não votavam, porque existiam muitas restrições mesmo para os homens livres do ponto de vista de ser militar, de ser sacerdote, de ser de ordem religiosa. Mas a grande maioria dos homens livres acima de 20 anos, fossem libertos ou não, se tivessem rendimento acima de Cem Mil Réis, podiam votar e participar das eleições. Então, há uma questão ainda a ser estudada que é como se realizavam as eleições, quem efetivamente participava. Essas descrições ainda não estão inteiramente investigadas.

 

 

IHU - Uma categoria muito comum nas teorias e análises sociológicas e políticas é a de "povo" em relação aos processos políticos. No caso da proclamação da Independência, é possível introduzir a categoria “povo”? Nesse sentido, quais foram as consequências da proclamação da Independência para o “povo”? O “povo” seria a "sociedade que lutava pela cidadania", que a senhora mencionou antes, ou todos aqueles sobre os quais ainda não se têm tantas informações historiográficas, como é o caso das mulheres, dos libertos, escravos, dos indígenas?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – Acho difícil falar de “povo” porque, primeiro de tudo, esta era uma categoria muito usada pelo discurso da época, mas, naquela ocasião, “povo” era o conjunto dos homens livres com capacidade para serem cidadãos. Então, temos que ver o seguinte: o direito de voto é o direito civil, é o equivalente ao direito de representação. O direito civil é um direito com abrangência muito grande, mas, há uma diferença com relação ao direito político: o direito político é o direito de participar efetivamente das decisões políticas e esse direito é de uso muito mais restrito. Apesar de o direito civil ser amplo no sentido de poder ser votante e poder ser eleitor, o ser eleito é outra coisa, porque o eleito é quem efetivamente vai exercer o direito político.



Para ser deputado, para ser senador, a restrição de rendimento era mais elevada e isso não impedia que mulatos ou mestiços se elegessem, mas a quantidade de pessoas que efetivamente tinham a possibilidade do exercício do direito político era muito menor. Isso faz parte de uma sociedade liberal, que se organiza a partir da destruição dos monopólios políticos do absolutismo monárquico. Mas isso não quer dizer que no liberalismo não tenhamos a elaboração de outros monopólios: monopólios políticos e econômicos talvez ainda mais duros, porque o liberalismo se fundamenta na propriedade de bens. O exercício da liberdade está relacionado, na primeira metade do século XIX, à propriedade de bens, à propriedade de riquezas e eram esses que tinham a riqueza que exerciam o poder político, sendo eleitos.



Então, a palavra “povo” está muito associada ao conjunto dos cidadãos, não só àqueles que exerciam direito civil, mas, particularmente, àqueles que exerciam o direito político. Nesse sentido, a Independência, por um lado, criou condições de liberdade da supressão das regulamentações coloniais, da modificação das relações econômicas, das relações políticas, mas, por outro lado, estabeleceu outras formas de dominação e de monopólio.

 

 

IHU – Esses processos têm muitas nuances.

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – Exatamente. E, no caso do Brasil, diria que na discriminação dos cidadãos e na configuração da Carta de 1824, um ponto central é a possibilidade de os interesses privados interferirem nos interesses públicos. Se hoje enfrentamos essa situação em que quase não há diferença entre o que é público e o que é privado, nós podemos dizer que as origens dessa articulação vêm do período da Independência. Quer dizer, o modo como o governo constitucional representativo foi se constituindo ensejou ou provocou a articulação entre os interesses privados e os interesses públicos, e isso está nítido no momento da declaração da separação de Portugal, porque a grande maioria da sociedade não queria a separação do país. Mas ela foi quase que imposta pelos interesses econômicos e mercantis daqueles grupos que mencionei anteriormente, que dominavam São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.



Então, veja como o movimento de Independência está articulado às ações, aos interesses, às propostas, à dinâmica de determinados segmentos da sociedade. Em função do poder conquistado, conseguiram impor o encaminhamento político. Claro que vão sofrer inúmeras oposições e serão apeados do poder depois, mas esse nexo entre economia e política foi dado ali, naquele momento, e essa é uma característica das práticas liberais no Brasil desde então.

 

 

IHU – Uma herança maldita desde então?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – Não diria que seja uma herança maldita, mas é uma ênfase porque nos EUA isso aconteceu também. Quando vemos a história da independência, principalmente a organização do governo central nos EUA, as lutas entre aqueles que eram favoráveis ao governo central e entre aqueles que eram favoráveis à autonomia dos estados, vemos que essa luta foi tão profunda que gerou, anos depois, a guerra civil. A guerra civil nos EUA significou o domínio de determinados interesses econômicos diante de outros interesses. Então, também lá essa mescla de interesses econômicos e políticos está muito presente. Porém, ao longo do tempo, foram estabelecidos alguns princípios nos quais a sociedade pode atuar de maneira mais efetiva contra essas injunções. Um exemplo disso é o que aconteceu com o Trump. O FBI descobriu que o ex-presidente tinha levado embora documentos que eram de interesse público e agora ele está sendo processado. Então, há limites. Aqui também há momentos em que há limites, mas o que é fundamental entender é que a relação entre interesses privados e interesses públicos está na matriz das práticas liberais no século XIX.

 

 

IHU - Qual foi o papel de José Bonifácio em torno da Independência? Alguns historiadores afirmam que ele foi a "a liderança mais firme e lúcida no processo de Independência". Concorda? Como resumiria o papel que ele desempenhou?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – Eu acredito que ele tenha tido um papel importante, porque foi chamado por Dom Pedro para colaborar com o governo no momento em que este precisava de um bom político no sentido de um bom conhecedor do governo português. Afinal de contas, José Bonifácio fez toda a carreira dele dentro do governo português, em Portugal. Ele retornou para o Brasil em 1819 e se radicou em São Paulo, onde estava sua família. Depois, reapareceu em 1822, a chamado de Dom Pedro, para colaborar com o governo já no encaminhamento da separação de Portugal porque, ao contrário de outros políticos, José Bonifácio tinha muitas restrições ao liberalismo que as cortes em Lisboa pretendiam implantar.



Ele era uma figura interessante, muito contraditória. Pretendia um governo forte porque achava que um governo no qual o poder legislativo era muito atuante não ia para frente. Ele era contra as assembleias – afinal, ele tinha assistido à Revolução Francesa na Europa e tinha uma série de restrições àquilo que podemos chamar de o predomínio das assembleias, dos representantes do povo nas decisões políticas. Ele tinha uma aversão às cortes e achava que elas não iriam dar certo porque muitas cabeças juntas jamais chegavam a uma decisão rapidamente. Então, para decidir rapidamente, na cabeça de José Bonifácio, precisava um governo mais fortalecido e mais forte e era nessa direção que Dom Pedro o chamou.

 

 

Agora, ele tem algumas propostas que são interessantes do ponto de vista da educação dos indígenas, da inclusão dos indígenas e da supressão do tráfico de escravos – não da escravidão. Ele achava que suprimindo o tráfico, a escravidão iria acabar muito rapidamente. Essas propostas dele precisam ser inseridas no âmbito do debate naquele momento. Quer dizer, José Bonifácio era muito ligado a Dom Pedro. Era tão ligado a ele que contribuiu para que a Assembleia Constituinte fosse fechada e, na Europa, quando foi exilado, ele não ficou quieto; continuou defendendo Dom Pedro. Ele retornou em 1828 novamente para ajudar Dom Pedro a vencer as grandes dificuldades de comandar o Império e de permanecer no poder. Então, ao mesmo tempo em que ele tem uma visão da necessidade de incorporar os indígenas, principalmente como mão de obra através da educação, essa não era uma proposta fora do liberalismo; não, é uma proposta dentro do liberalismo, ou seja, quem não conhece a educação e a civilização ocidental precisa ser obrigado a conhecê-las e pode muito bem ser incorporado como mão de obra. Esse é um ponto.



O segundo ponto é o de que era preciso, para José Bonifácio, ir aos poucos suprimindo a escravidão justamente para civilizar os pobres e as camadas de pequenos proprietários que poderiam e teriam que se vergar ao trabalho metódico e disciplinado e que poderiam vir a substituir o trabalhador escravizado. Então, a perspectiva dele é no âmbito do liberalismo, a perspectiva de alguém que se formou no âmbito do absolutismo monárquico português, que serviu ao governo absolutista de Portugal e que depois vai se aliar a Dom Pedro. Ele vai ser um grande aliado de Dom Pedro em vários momentos e, portanto, aliado de um governo mais centralizado.



Ele tem uma importância efetiva como ministro, como aquele que encaminha decisões diplomáticas, mas ele era muito criticado pelos liberais. Tanto é assim que quando Dom Pedro abdica e entrega a educação do futuro Pedro II a ele, Bonifácio não fica, porque o governo da Regência não aceita que ele seja o orientador do jovem príncipe. A educação do jovem príncipe passa para outras mãos: Francisco de Lima e Silva e depois o Marquês de Itanhaém. Veja como ele é uma figura ambígua, contraditória e que, para muitos liberais, só ajudou Dom Pedro a ser um imperador centralista, um imperador que muitas vezes teria abusado do poder, como foi no caso da confederação do Equador, em que Dom Pedro mandou organizar as comissões militares fora de qualquer princípio constitucional e as comissões militares agiram do ponto de vista da repressão e do ponto de vista do justiçamento daqueles que eles consideram como culpados. Frei Caneca foi fuzilado em operação militar e isso depois rendeu processos e contestações.



Do mesmo jeito como Dom Pedro foi contraditório, José Bonifácio também foi. Não nego de maneira alguma a importância dele, assim como de outros protagonistas, porém, centralizar tudo na figura dele é um pouco aquela ideia de que a sociedade não consegue andar por si própria e precisa de um luminar, de um sábio, de uma inteligência suprema que ilumine o caminho. Esse pensamento, que é absolutamente conservador, prevaleceu em grande parte no modo de entendimento do que é a Independência, mas ele tira das oposições, e de uma sociedade mestiça e múltipla em todos os seus aspectos, a capacidade de se autogovernar e a legitimidade dos movimentos de rebelião e de contestação. Nesse sentido, é importante lembrar que José Bonifácio faz parte de um movimento, que ele é um dos protagonistas e que em outros lugares há outros protagonistas que são muito significativos, importantes, que também deram a sua contribuição na formação de um governo constitucional e representativo – e que ele tinha um viés muito conservador.



É importante, em um momento como o que estamos vivendo hoje, em que há um conhecimento acumulado em torno da Independência, nos voltarmos para o passado para compreender como aquela sociedade era formada, agiu, reagiu, se rebelou e por que se rebelou, ao invés de desqualificar antecipadamente as oposições ou aqueles que tinham outros projetos que foram derrotados e que eram projetos muito mais abrangentes do ponto de vista da cidadania e da participação popular. José Bonifácio tem um caráter muito conservador e ele seguramente atuou para que a Assembleia Constituinte fosse fechada.

 

 

IHU - Entre as representações visuais que ilustram a Independência e influenciaram historiadores e o imaginário da sociedade brasileira, qual, na sua avaliação, ainda tem uma força persuasiva no entendimento geral sobre o que foi e significou o movimento da Independência?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – Dentre as imagens, a que ainda tem mais força persuasiva, sem dúvida, é a do Pedro Américo, que expressa justamente essa visão mais conservadora a respeito do movimento de Independência.

 

Obra clássica de Pedro Américo, Independência ou Morte | Imagem: Reprodução Google Artes

 

A tela do Pedro Américo nunca foi uma unanimidade, recebeu muitas críticas e tem sido discutida por vários pesquisadores, mas ela ainda mantém a sua vigência justamente por essa percepção de que Dom Pedro seria um luminar, uma liderança capaz de levar a sociedade à liberdade política e à constituição de um governo constitucional. Pedro Américo, na obra que escreveu, fala muito disso e da importância da Independência como a constituição de um governo constitucional. Essa é uma obra de valorização da monarquia, uma obra que articula a Independência e a formação da nação com a monarquia e com São Paulo.



Do ponto de vista historiográfico, a tela do Pedro Américo repercute o conhecimento da Independência na segunda metade do século XIX – ela foi pintada 66 anos depois dos episódios – e repercute aquilo que os empreendedores de São Paulo e do Vale do Paraíba queriam expressar: São Paulo era o berço da nação, a monarquia era a origem da nacionalidade brasileira e Dom Pedro era o herói indecoroso. Era esse o sentido e é muito interessante que, a despeito das críticas, a imagem foi muito divulgada, mas ela foi mais divulgada ainda no começo do século XX, depois da Proclamação da República, porque os republicanos, que fizeram a proclamação, que eram jacobinos, tentam transformar a data naquilo que ela se tornou, uma data com caráter cívico-militar, uma data que marca o surgimento da nação, articulando o surgimento desta com o Centro-Sul e com São Paulo, e uma data na qual a nação criada pela monarquia vai ser restaurada e reformulada pela República.

 

 

IHU - Quando se trata de analisar e compreender a Independência do Brasil, o que ainda é preciso discutir e esclarecer acerca desse evento histórico e de outros eventos históricos em torno da Independência, 200 anos depois, além das questões que a senhora já apontou?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – Penso em três pontos. Um deles é explorar e aprofundar ainda mais as relações do movimento de Independência no Brasil e dos demais movimentos independentistas americanos. Muito se fez, mas nós ainda precisamos investir muito neste campo para descobrir as relações entre lideranças brasileiras e lideranças de outras áreas da América. Esse é um ponto central.

 

O segundo ponto central diz respeito às razões pelas quais a monarquia constitucional idealizada na Carta de 1824 conseguiu articular as províncias em torno do governo do Rio de Janeiro. Quer dizer, como é que se deu, do ponto de vista das províncias, a unificação do território.



O terceiro ponto central é quais outros projetos de independência que foram debatidos e discutidos no Rio Grande do Sul, Pernambuco, Goiás, Maranhão, Pará, no Nordeste, quais outros nós ainda desconhecemos – e isso através da continuidade dos estudos de imprensa, dos panfletos, das manifestações públicas, da participação popular. Quer dizer, nós temos que descobrir por que esse país se unificou e por que a monarquia constitucional, que foi tão criticada por aqueles que eram contra Dom Pedro pelas oposições liberais, ao fim e ao cabo, acabou sendo regulamentada.



Muitas pessoas acham que a unificação se deu por conta da prevalência da escravidão. Pode ser que seja uma das razões, mas não acredito que seja só isso. Isso ainda é um ponto a ser discutido. Quer dizer, por que os projetos federalistas e de confederações não vingaram e só vingaram pós-proclamação da República?

 

 

IHU - Um debate que continua atual no Brasil, especialmente depois da pandemia de Covid-19, é o da desigualdade. Que relações a senhora estabelece entre a desigualdade brasileira e os fatos históricos, políticos e culturais, dos últimos 200 anos do país? Onde estão, do ponto de vista histórico e político, as raízes da nossa desigualdade?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – É muito difícil de estabelecer conexões de 2022 para 1822. Houve muitas rupturas ao longo do tempo, o que não quer dizer que não foram respostas às formas de dominação e de desigualdades. Só que essas formas de dominação e de desigualdade foram adquirindo outras dimensões e outros protagonistas ao longo do tempo porque são inúmeras as gerações que viveram ao longo desses 200 anos. As gerações mudam, as cabeças mudam, a história muda, o tempo muda; o tempo é fator de mudança. O mundo mudou enormemente, principalmente nos últimos 50 anos. Mas eu diria que as raízes mais próximas das nossas desigualdades hoje estão na ditadura militar e no modo como os direitos descritos e estabelecidos na Constituição de 88 foram regulamentados ou ainda não foram inteiramente regulamentados.

 

 

 

IHU - O que significa, para nós, brasileiros, a celebração dos 200 anos da Proclamação da Independência do Brasil? Como esse fato histórico tem sido – se tem sido, de algum modo – reapropriado politicamente hoje?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – O 7 de Setembro foi reapropriado politicamente desde o momento em que a data surgiu como tal. O próprio Dom Pedro criou a data de 7 de Setembro do ponto de vista político para se projetar e criar uma narrativa em torno da separação de Portugal.



As comemorações não podem encobrir o necessário reconhecimento de que nós precisamos aproveitar o conhecimento acumulado em torno do passado e nos voltarmos para o passado com outras questões que possam iluminar os problemas de hoje. Não que esses problemas de hoje sejam decorrência de 1822, mas eles estão articulados com os modos pelos quais a sociedade viu a si mesma e interpretou a si mesma em vários momentos da sua própria história, desvalorizando sua força e sua capacidade de mudança.



Como falei ao longo da entrevista, a desqualificação das oposições, a desvalorização das capacidades de a sociedade, por si própria, encontrar o seu caminho, são marcas do pensamento político conservador do Brasil, e essas marcas são muito fortes. Então, temos que buscar no passado todas as manifestações em que a sociedade se mostrou e em que ela foi vitoriosa nas suas demandas e nos inspirar nesses projetos, mesmo naqueles que foram fracassados, porque eles podem iluminar a nossa força hoje.

 

 

IHU – Que outras independências precisamos prospectar para o futuro do país?

 

Cecilia Helena de Salles Oliveira – As outras independências serão sinalizadas pela própria sociedade e as demandas que esta revela hoje: a independência do racismo, das desigualdades, dos preconceitos, das formas pelas quais as mulheres são tratadas, pelas quais os povos indígenas são tratados, a independência do meio ambiente em relação à destruição.



São tantas outras independências, mas é a força da sociedade e das lideranças enraizadas nela que vão transformá-las essas independências em realidade. São muitas independências para além da cidadania e para além da liberdade política porque isso é a base para chegarmos mais adiante, mais a frente e lutar contra aquilo que nos constrange. O que nos constrange hoje é a miséria, a desigualdade, a destruição do meio ambiente, a falta de respeito para com os jovens, as crianças e as mulheres. Temos que lutar por essas independências.

 

 

Leia mais