A legalidade pelas ondas do rádio

Rádio | Foto: Empresa Brasil de Comunicação (EBC)

26 Agosto 2022

 

"A partir dessa irradiação em homenagem ao centenário da independência, se alastraria uma série de emissoras que ligaram o Brasil de norte a sul. Desde a pioneira Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, inaugurada por Roquette Pinto em 1923, até as transmissões digitais de nossa era, o rádio foi, e de certa forma ainda é, um meio de comunicação popular. Mas, uma transmissão ocorrida entre os dias 27 de agosto e 07 de setembro de 1961 mostraria a força política de mobilização do veículo de comunicação. Getúlio Vargas já havia usufruído dela durante seus anos de governo, usando da Rádio Nacional para seus discursos inflamados. Contudo, quem de fato conseguiu chegar ao ápice de seu uso foi um de seus principais herdeiros políticos: o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola", escreve Marcelo Zanotti, estudante dos cursos de História e Jornalismo da Unisinos e estagiário do IHU.

 

Eis o artigo. 

 

No dia 07 de setembro de 1922, no Rio de Janeiro, então capital federal, ocorria uma feira chama de “Grande exposição mundial”. Essa grande exposição era uma forma que o governo brasileiro encontrou de comemorar o centenário da independência das terras tupiniquins. O então presidente Epitácio Pessoa, direto do Teatro Municipal do Rio de Janeiro proferiu o discurso de inauguração de tal feira, mas não eram apenas os aristocratas ali presentes que ouviam o discurso. Distante dali, na explanada do Castelo, um grupo de populares podia ouvir, por um estranho equipamento chamado rádio, o discurso do presidente. Esse estranho equipamento se tornaria, em questão de anos, o principal meio de comunicação nacional.

 

A partir dessa irradiação em homenagem ao centenário da independência, se alastraria uma série de emissoras que ligaram o Brasil de norte a sul. Desde a pioneira Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, inaugurada por Roquette Pinto em 1923, até as transmissões digitais de nossa era, o rádio foi, e de certa forma ainda é, um meio de comunicação popular. Mas, uma transmissão ocorrida entre os dias 27 de agosto e 07 de setembro de 1961 mostraria a força política de mobilização do veículo de comunicação. Getúlio Vargas já havia usufruído dela durante seus anos de governo, usando da Rádio Nacional para seus discursos inflamados. Contudo, quem de fato conseguiu chegar ao ápice de seu uso foi um de seus principais herdeiros políticos: o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.

 

Vista do Teatro Municipal - RJ, na noite da primeira transmissão radiofônica. | Foto: Biblioteca nacional

 

Nas eleições de 1960 para presidente da República, ganhou um candidato conservador, oriundo das elites paulistas: Jânio Quadros. Em uma época que os votos para presidente e vice eram desvinculados, o vice-presidente eleito foi o candidato da outra chapa, João Goulart. Ex-ministro do trabalho do governo Vargas (1951-1954), ex-vice-presidente da República do governo JK (1956-1960) e cunhado de Leonel Brizola, Goulart tinha grande apelo popular pela sua origem trabalhista, era membro do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e era visto com maus olhos pelas elites. A dobradinha JAN-JAN, como ficou conhecido na época o resultado das eleições, se mostraria, logo depois, a justificativa perfeita para uma tentativa de golpe.

 

Jânio Quadros faz um governo de contradições, se alinhando diplomaticamente aos Estados Unidos, mas ao mesmo tempo retomando relações diplomáticas com países socialistas, como Cuba, China e a então União Soviética, em uma época de Guerra Fria. Nos 07 meses que fica na presidência faz proibições, condecora o revolucionário Ernesto Che Guevara, manda o seu vice em missão diplomática para a República Popular da China e tenta um golpe: renuncia à presidência alegando “forças terríveis”, esperando que o povo saísse a rua pedindo sua volta.

 

 

João Goulart, voltando da missão a China, recebe duas notícias: a renúncia de Jânio e que estava proibido de desembarcar no Brasil para assumir a presidência da República. O exército não aceitava sua posse pois o via como uma ameaça aos seus interesses. Assim, no dia da renuncia, 25 de agosto de 1961, assume a chefia do Estado Brasileiro Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. Cumprindo o mandato da alta burguesia nacional e internacional, os ministros militares se opõem à posse do vice-presidente, formam uma Junta Militar para assumir o governo e anunciam a prisão de Jango, caso retornasse ao país. Coube então ao governador Leonel Brizola iniciar a campanha pelo cumprimento das normas constitucionais de então, a campanha da legalidade.

 

Da esquerda para a direita (literalmente): Leonel Brizola, João Goulart e Jânio Quadros. | Foto: Biblioteca nacional

 

Ainda no dia 26, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola declara não concordar com a junta militar e defende a posse do vice João Goulart. Na noite deste mesmo dia, o Marechal Henrique Teixeira Lott, candidato derrotado por Jânio Quadros, ex-ministro da Guerra de Vargas e JK, e seus correligionários, fizeram um manifesto à população brasileira concitando-a a uma enérgica defesa da legalidade. Lott acabou preso por ordem do Ministro da Guerra, Marechal Odílio Denys.

 

Brizola, para não ter o mesmo destino, parte para a resistência, mobilizando no dia 27 as polícias civil, militar, rodoviária e a guarda civil gaúchas para defender o Palácio Piratini (palácio do governo estadual). Mobiliza também os equipamentos da maior rádio do estado, a Rádio Guaíba, para dentro das dependências do palácio e começa a fazer discursos e programações em favor da legalidade. Mais 15 rádios do país e do exterior formam uma enorme cadeia e começam a transmitir a programação da rádio de Brizola. Esse movimento é batizado de Cadeia da Legalidade. Conflito devidamente contextualizado, vamos voltar então ao objeto de estudo do artigo: o rádio.

 

 

Os militares, em contrapartida, proíbem o fornecimento de energia elétrica aos transmissores da rádio, que é então transferida para o porão do Palácio Piratini. O Ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Grun Moss, ordena um bombardeio ao Palácio Piratini. Isto não acontece porque os sargentos da Aeronáutica se recusam a cumprir tal ordem, furam os pneus dos aviões, armam barricadas nas pistas de decolagem e dão-se as mãos por trás das barricadas. Quando Brizola soube da decisão do bombardeio, ordenou a instalação de metralhadoras no alto do palácio e na vizinha catedral. Carros, jipes, sacos de areia e até bancos de cimento arrancados pelos estudantes defendiam o lugar. Ao mesmo tempo, pela rádio, Brizola faz um longo discurso, do qual segue um trecho:

 

“Não nos submeteremos a nenhum golpe. Que nos esmaguem. Que nos destruam. Que nos chacinem nesse palácio. Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada. O certo é que não será silenciada sem balas. Resistiremos até o fim. A morte é melhor do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Podem atirar. Que decolem os jatos. Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa da fome e do sacrifício do povo. Joguem essas armas contra este povo. Já fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a independência de nosso povo.”

 

 

O General José Machado Lopez, comandante do 3° Exército se deslocava até o Palácio Piratini, para falar com o governador. Ao final do discurso, Brizola já contava com mais de 50 mil pessoas ao redor do palácio à espera do General. Todos achavam que o comandante ordenaria a prisão do governador e estavam lá para impedir. Quando o General subia as rampas do palácio, a multidão de mais de 50 mil pessoas (boa parte já armada com um antigo arsenal da Brigada Militar, comprado no início dos anos 30 para um eventual confronto com Getúlio), entoou o Hino Nacional, obrigando-o a virar-se, bater continência à bandeira e cantar o hino. O comandante do 3° Exército, na conversa com o governador, declara que iria defender a Constituição e, por conseguinte a posse de João Goulart.

 

A jornada de João Goulart para retornar da China ao Brasil, passa ainda pela França, por Nova Iorque, Argentina, Uruguai, enquanto Brizola organiza sua recepção no País, onde entraria pelo território do Rio Grande do Sul. Enquanto isso, Porto Alegre é isolada do restante do país de todas as formas possíveis. Da imprensa até os bancos, todos deixaram no isolamento a pequena cidade. O 3° exército, que contava com 120 mil homens no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, reage a esta situação e passa a controlar toda a região sul do país.

 

No fogo dessa batalha, João Goulart enfim chega a Porto Alegre. No entanto, preparava-se um golpe dentro do golpe. A Constituição era emendada tornando o país parlamentarista. Jango tinha duas opções. A primeira, proposta por Brizola, seria marchar até Brasília com o 3° Exército, e a segunda, fazer o acordo com os militares e voltar ao poder num Brasil parlamentarista. Jango preferiu a segunda opção. A massa em frente ao Palácio Piratini vaiou um Jango silencioso. Nem discurso proferiu para evitar uma suposta guerra civil e com ela um banho de sangue. Anos depois, acabou sendo deposto com o golpe militar de 1964.

 

Leonel Brizola usou, ali, um artifício depois exaustivamente usado por políticos de diversas vertentes: os meios de comunicação como guia da opinião pública. Talvez, se Brizola não tivesse usado das ondas radiofônicas, o golpe militar teria se concretizado ainda em 1961. Após isso, seguiram-se anos de regime militar e diversas manifestações populares ocorrem, tendo sempre como divulgador os meios de comunicação. Talvez, no longínquo 07 de setembro de 1922, nem Epitácio Pessoa, nem os ouvintes que estavam na explanada do Castelo, imaginassem a dimensão que tomaria aquele novo veículo de comunicação. Hoje, 100 anos depois de sua inauguração e 61 anos depois da campanha da legalidade, estamos de frente a uma imensa revolução tecnológica que faz com que esse popular veículo de comunicação centenário esteja em constante evolução. E assim caminha a humanidade, a milhares de anos.

 

 

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