Humano: uma categoria em disputa na era do antropoceno. Entrevista especial com Mateus Uchôa

“Uma abordagem que leva o nome de multinaturalismo, de multiespécies, seria aquela que não define a vida nos termos exclusivistas da vida social e política humana, mas que, ao mesmo tempo, não toma o que a tradição entende como natureza como um organismo, uma realidade objetiva exterior compartilhada por qualquer cultura ou qualquer organismo”, explica o filósofo

Foto: Pixabay

Por: Edição: Patricia Fachin | 02 Agosto 2022

 

Fazer distinções sempre foi uma marca da filosofia, a qual teve como consequência, na história do pensamento ocidental, a "hierarquização filosófica em torno das espécies e seres". Entretanto, "abalar e desconstruir" essa visão de mundo é a proposta filosófica do multinaturalismo que, segundo Mateus Uchôa, pode ser resumido como "a crítica na crença ao excepcionalismo humano, antropocêntrico, em oposição a uma consciência da realidade cosmopolítica da natureza". As ideias centrais do multiculturalismo e suas consequências e propostas políticas para enfrentar o antropoceno foram expostas por Uchôa na conferência virtual intitulada "Multinaturalismo. Da política do conceito a um novo conceito de política", promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 22-07-2022.



Segundo ele, em contraposição à metafísica clássica, em que o "acesso específico ao mundo seria somente próprio ao homem", o multinaturalismo advoga que o acesso ao mundo "é democratizado politicamente para as outras espécies, não só atores biológicos, mas abióticos, e o próprio mundo em uma perspectiva geológica ou geontológica. (...) Se trata aqui de nova reflexão metafísica, filosófica, não do ponto de vista do grande fundamento, mas, sim, um pensamento que não se guia pela ideia de substância, mas que vai se modular muito mais em termos éticos do que propriamente ontológicos", disse.

 

O que está em disputa entre essas duas compreensões, acentua, é a concepção de ser humano. "A ideia de humano é uma categoria em disputa e essa disputa se arranja dentro de um enquadramento cosmológico e dentro de uma atitude animista que recusa de antemão o pensamento alicerçado na descontinuidade entre os seres do cosmos, em um sentido mais próximo da relação do que da ideia de distinção entre um plano de fundo antropomórfico do qual se irradia a hierarquização política e metafísica dos seres, dentro da própria ideia de humanidade, em que também haveria sub-humanidades, humanidades inferiores a um padrão – sobre isso, sabemos do que se trata: um padrão baseado na ideia de branquitude, eurocêntrico e patriarcal", afirma.



A seguir, publicamos a conferência de Mateus Uchôa no formato de entrevista.

 

Mateus Uchôa (Foto: Té Pinheiro)



Mateus Uchôa é bacharel e mestre em Filosofia e em Artes pela Universidade Federal do Ceará - UFC e doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Atualmente realiza pesquisa sobre pensamento indígena a partir da etnologia de Eduardo Viveiros de Castro, e também da obra A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, com ênfase na articulação de ideias ameríndias com questões da filosofia especulativa contemporânea. Também desenvolve projetos audiovisuais com o Laboratório de criação em cosmopolíticas - LabCosmo.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Em que consistem as principais ideias do multinaturalismo?

 

Mateus Uchôa - Vou iniciar dando uma definição do que seria uma vida multinaturalista, que se trata também de uma vida multiespécie. Essa vida ultrapassa a história conceitual, marcada até então por uma narrativa monoespecífica e pela oposição entre vida política qualificada e vida biológica desqualificada. Visando pensar outros sentidos de natureza, de vida, podemos dizer que o multinaturalismo ou a lógica da vida multiespécies está nesse caminho de desconstrução e superação de termos antropocêntricos que orientam também as nossas formas de compreensão e composições políticas nesse mundo.



A ideia geral de um multinaturalismo seria no sentido de que todos os seres vivos emergem e fazem as suas vidas dentro de uma comunidade multiespécies. Esse pressuposto é uma unidade fundamental da sobrevivência de todo ser vivo e todo o seu organismo em seu ambiente. Isso quer dizer que a vida não pode surgir e ser sustentada de forma isolada – daí sua potência política permanente. Uma abordagem que leva o nome de multinaturalismo, de multiespécies, seria aquela que não define a vida nos termos exclusivistas da vida social e política humana, mas que, ao mesmo tempo, não toma o que a tradição entende como natureza como um organismo, uma realidade objetiva exterior compartilhada por qualquer cultura ou qualquer organismo.

 

 

Pensar a expressão de uma vida multinaturalista é marcar uma contraposição também à redução monoespecífica do pensamento moderno; sobretudo, explorar as redefinições do conceito de natureza como condição indicadora de uma continuidade cosmopolítica entre humanos e não-humanos. Esse é um passo fundamental nessa instigante tarefa de reconhecer a inter e a transdisciplinaridade dos campos de conhecimento nesse novo quadro teórico. A vida multinaturalista é, principalmente, uma crítica da crença no excepcionalismo humano e, sobretudo, a consciência de uma realidade cosmopolítica da natureza – citando o conceito da filósofa Isabelle Stengers.



No campo da filosofia, essa implicação das teorias multinaturalistas, politicamente, se aproximam de uma resposta ao que entendemos como paradigma da vida nua, tal como foi exposto pelo filósofo Giorgio Agamben. O multinaturalismo concebe a atividade e a vida das espécies num tipo de contínuo “natureza-cultura” e não na forma de um dualismo, de uma condição abissal entre essas duas categorias, “natureza” e “cultura”. Para o multinaturalismo, não se trata de pensar uma exterioridade e refletir sobre o que cerca o humano, mas construir uma lógica de uma mútua inclusão, a qual é independente da distinção biológica e política entre zoé e bios, entre vida qualificada e vida desqualificada.

 

Considero que aqui podemos superar o conceito de vida nua de Agamben e desenvolver uma outra noção que pode levar o nome de “atividade nua”, comum a todos os seres terrestres e terranos, como uma espécie de contraposição vital e, sobretudo, conceitual, ao estabelecimento de uma fronteira política entre o dentro e o fora, que suspende os efeitos dessa descontinuidade moderna entre o humano e o mais-que-humano. Então, forma-se um circuito a partir do multinaturalismo, marcado por essa atividade nua, que é geral a todas as espécies e que, ao invés de confinar a vida em uma determinada perspectiva - no caso, antropocêntrica -, compreende a vida como membranosa. Essa atividade nua constrói o dentro e o fora como acionamento constante em uma mudança de fase que vai sempre designar os polos nesse mesmo processo de mútua inclusão.

 

 

IHU – Pode explicar o que quer dizer com isso?

 

Mateus Uchôa - Que o transindividual, a partir do multinaturalismo, se junta ao individual. Isso se desdobra novamente nesse transindividual. Esse seria o status sociocosmológico do presente dentro da ideia de multiculturalismo. Podemos tomar como referencial direto os modos de vida extramoderno dos povos indígenas e tradicionais. Não povos pré-modernos nem ligados a essa ideia de um passado primitivo, mas povos que trazem uma perspectiva contramoderna, contra essa divisão acionada pelo nomos político da modernidade.



Uma característica mais evidente do multinaturalismo é a crítica à crença no excepcionalismo humano, antropocêntrico, em oposição a uma consciência da realidade cosmopolítica da natureza. Gosto de lembrar da filósofa Donna Haraway, quando afirma que nenhuma espécie desse mundo, nem mesmo a nossa própria, age sozinha. A vida se erige a partir de arranjos de espécies, como espécies orgânicas aliadas a atores abióticos, e essa aliança faz história e produz uma história tanto evolucionária do ponto de vista dos seres, quanto de outros tipos também; no caso, uma história cosmopolítica. Isso se torna bastante presente a partir do trabalho de alguns antropólogos contemporâneos, dentre eles, Eduardo Viveiros de Castro, que é uma referência central nessa discussão. Mas caberia citar outras referências teóricas que são indispensáveis nessa conceituação filosófica do multinaturalismo, dessa teoria que tem como origem a etnologia ameríndia, e como isso se torna uma teoria filosófica. Um exemplo é o vitalismo libertário de [Gilles] Deleuze, a ideia de mundo circundante, do Barão de von Uexküll, ou [Jacques] Derrida, com sua reflexão sobre os animais, e a ideia de contínuo “natureza-cultura”, “humano-animal”, do filósofo Brian Massumi. Essas referências são cruciais para entendermos e tecermos o conceito de vida multinaturalista que está em processo de devir.

 

 

IHU – Qual é o pressuposto do multinaturalismo?

 

Mateus Uchôa - O pressuposto para compreender o sentido dessas teorias é uma ideia de mais-valia de vida – deslocando um termo da economia política e o levando para uma discussão sobre espécie e natureza na ideia de uma mais-valia de vida, de que a vida possuiu um excedente, que é dispendiosa e que, nesse modelo, nessa ideia, todas as espécies humanas e mais-que-humanas superam o modelo do pensamento científico moderno ocidental que parte de uma concepção muito particular de matéria, como algo que ganha forma a partir de um determinado projeto ou plano racional. É nesse sentido que vai se situar o debate sobre multinaturalismo e a política que esse conceito traz e as implicações políticas.



O multinaturalismo é uma alternativa aos dualismos intransitivos do pensamento político moderno e nos coloca em perspectiva. Nessa perspectiva, o natural e o social deixam de ser ideias irremediáveis e ontologicamente separadas. A partir do multinaturalismo, natural e social tornam-se algo fluido, construído a partir de diversos rendimentos teóricos e corporais que são resultado dessa composição relacional entre agenciamentos entre as espécies.



O multinaturalismo trata de ordenar as diferenças constituintes desse mundo e de outros mundos na tentativa de chegar a uma correspondência dessas relações porque distribui, segundo suas relações diferenciais, a própria ideia de espécie e, da mesma forma, também, a ideia de sujeito, a ideia de humano, o que seria a partir daqui uma espécie de devir multinaturalista dos mundos multiespecíficos.



Não estamos falando só apenas de uma ideia de mundo, um único mundo específico e monoespecífico – sempre gosto de mencionar a tese de mundo heideggeriana, em que Martin Heidegger expõe os conceitos fundamentais da metafísica: medo, finitude e solidão. Ele tem uma tese de mundo que se popularizou por afirmar que o homem é formador de mundo, o animal é pobre de mundo e a pedra é sem mundo. Então, na história do pensamento ocidental, na ontologia ocidental, há de fato uma hierarquização filosófica em torno das espécies e seres, a qual o multinaturalismo visa abalar e desconstruir. Esse acesso específico ao mundo, que seria somente próprio ao homem, é democratizado politicamente para as outras espécies, não só atores biológicos, mas abióticos, e o próprio mundo em uma perspectiva geológica ou geontológica.

 

 

IHU – Qual a implicação disso para a filosofia?

 

Mateus Uchôa - A filosofia contemporânea deveria saber reencontrar esse tom que a antropologia contemporânea conseguiu, que afirma que não é a natureza de um vivente que vai definir a sua imagem e a sua aparência; é a sua figura, portanto, a sua espécie, o modo pelo qual os seres existem sensivelmente, que decide sobre a sua natureza. Aqui vale a importância fundamental da teoria do perspectivo multinaturalista que Viveiros de Castro desenvolveu em Inconstância da Alma Selvagem e na sua obra Metafísicas Canibais. A perspectiva da vida multinaturalista segue esse tom pois parte da compreensão de que o universo dos seres vivos é multifacetado e é composto por essas alianças de experiências vitais, diversificadas e criativas, a partir dessa variação do que entendemos como natureza.



O multinaturalismo é perpassado por esses interesses solidários, por essas relações políticas de simbiose. Então, é um processo de misturas, onde os seres vivos seguem o movimento incessante do devir mundo, que o conecta com o devir animal, o devir vegetal em um contínuo que podemos considerar como o multinaturalismo. Isso traz implicações para o que podemos entender como vida, que talvez seja o referencial básico de toda a ideia de política. Uma vida, nesses termos, ou seja, uma vida que só pode ser algo alheio a si através de outros corpos, de outras perspectivas, é uma vida definível somente em termos modais e não substanciais. Se trata aqui de nova reflexão metafísica, filosófica, não do ponto de vista do grande fundamento, mas, sim, um pensamento que não se guia pela ideia de substância, mas que vai se modular muito mais em termos éticos do que propriamente ontológicos.

 

 

Contribuição do multinaturalismo indígena



A partir da noção transespecífica do multinaturalismo, isso se contrapõe à ideia básica da ciência moderna que colocava a descontinuidade ontológica fundacional entre o homem e as demais formas de vida e, sobretudo, entre homem e mundo. Esses conceitos foram mobilizados, de certa forma, de uma maneira vulgar, como operadores conceituais da razão classificatória de raiz colonialista também, a qual estabelece uma unidade pura da ideia de humanidade dissociada de toda a multiplicidade heterógena do mundo. Aqui entra a força e a grande contribuição do multinaturalismo indígena da maneira como foi desenvolvido por Eduardo Viveiros de Castro.

 

A teoria do multinaturalismo certamente nos auxilia nessa compreensão de uma problematização crítica do conceito de espécie. Em geral, o antropólogo Viveiros de Castro nos apresenta que o perspectivismo típico das cosmologias ameríndias e dos povos tradicionais da América do Sul, a sua condição sociocosmológica, subverte a suposta excepcionalidade da espécie humana ao afirmar que cada espécie viva é humana em seu próprio departamento. É um modo finito de humanidade onde todas as diferenças específicas que colocam o conceito tradicional de espécie aparecem aqui com modalidades de uma condição humana genérica e universal a esses seres.

 

 

Humano: uma categoria em disputa



Nesse sentido, a ideia de humano é uma categoria em disputa e essa disputa se arranja dentro de um enquadramento cosmológico e dentro de uma atitude animista que recusa de antemão o pensamento alicerçado na descontinuidade entre os seres do cosmos em um sentido mais próximo da relação do que da ideia de distinção entre um plano de fundo antropomórfico do qual se irradia a hierarquização política e metafísica dos seres, dentro da própria ideia de humanidade, em que também haveria sub-humanidades, humanidades inferiores a um padrão – sobre isso, sabemos do que se trata: um padrão baseado na ideia de branquitude, eurocêntrico e patriarcal. O multinaturalismo marca essa diferença entre esse ponto de vista interno do sujeito e um ponto de vista externo do multinaturalismo.

 

Multinaturalismo. Da política do conceito a um novo conceito de política

 

IHU – Como a cosmologia indígena se destaca nessa visão?

 

Mateus Uchôa - Nesse contexto, podemos pensar que as cosmologias indígenas são o exemplo perfeito desse multiverso de ideias animistas que são atravessadas, como Viveiros de Castro afirma, por essa continuidade de um tipo sociomórfico entre natureza e cultura. Essa continuidade radicalmente altera a ordem das disposições humanas e dos seres naturais de modo bastante diferente da dualidade ontológica que citei anteriormente. Então, de fato, o multinaturalismo, dentro do seu cenário cosmopolítico, expõe uma guerra de mundos entre o mundo moderno e os mundos extramodernos. A grande problemática é que para a efetivação do mundo moderno, este teve que ser erigido a partir do fim de outros diversos mundos. O mais intrigante é que dentro da condição epocal na qual vivemos hoje, que é a do antropoceno, esse mundicídio, que é característico do mundo moderno, volta-se contra nós mesmos.

 

 

Anteriormente, enquanto implicávamos fins a outros mundos, parece que não havia uma necessidade de reformulação de nossas categorias políticas, mas agora, nós, humanos, enquanto também uma condição de uma força geológica, portanto, de um retorno, de uma transcendência à ideia de humanidade, ao mundo humano em que superlativiza a nossa condição, nos colocamos em uma condição de espécie, que agora é ameaçadora. E esse fim implica justamente na impossibilidade da continuidade da vida humana na Terra.



A ideia de multinaturalismo e de um pensamento geofilosófico cosmopolítico pode operar, a partir de uma lógica multiespécie, um novo tipo de esquematismo cosmológico, político e metafísico, a exemplo da socialidade ameríndia e dos xamãs amazônicos. O pensador indígena Davi Kopenawa marca o sujeito cosmopolítico por multinatureza. Seria um perspectivismo ontológico em contraste com esses não-perspectivismos epistêmicos e geométricos que foram dominantes em nossa tradição política.

 

O multinaturalismo é, portanto, um pensamento da terra. É a expressão conceitual das agências cosmopolíticas e, sobretudo, da irredutibilidade dos contextos, das sobrenaturezas e das extramundanidades dos outros, como colocam e propõem as ontologias amazônicas. Se formos capazes de irmanar as ontologias amazônicas com determinadas teorias do nosso mundo, sobretudo teorias filosóficas que são mais afeitas à crítica da posição privilegiada do humano na ontologia e na epistemologia do ocidente moderno, podemos construir um novo modo de poder perceber o mundo e também novas alianças em vista de um fim iminente do nosso e de outros mundos. Então, trata-se de uma cultura e múltiplas naturezas, epistemologia constante, ontologia variável.



Viveiros de Castro vai dizer que o perspectivismo, portanto, é um multinaturalismo. E uma perspectiva, cabe sempre lembrar, não se trata de uma representação de mundo, mas de uma composição deste. O multinaturalismo vai assim redistribuir as potências políticas humanas e extra-humanas na composição do mundo nesse esforço de reestabelecer o pluralismo ontológico característico das comunidades e das vidas dos povos tradicionais e indígenas, uma condição que faz todo o sentido ao que se coloca hoje como desafio para o nosso mundo moderno. As considerações que Viveiros de Castro aponta nos permitem reconciliar investigações filosóficas, biológicas e antropológicas com o intuito dessa pluralidade cosmopolítica de mundos, antevendo uma solução que descarte esse binarismo entre natureza e cultura, que hoje demonstra sua face ameaçadora, essa nova epocalidade que estamos denominando de antropoceno.

 

IHU – Em que medida essas mudanças conceituais podem gerar mudanças políticas?

 

Mateus Uchôa - Essas saídas, que inicialmente são conceituais, deverão cada vez mais ser também políticas. Elas acentuam o traço contrastivo dos perspectivismos indígenas em relação às políticas modernas dos sujeitos que se apoiam na ideia de unicidade da sua espécie e da sua superioridade. Ao contrário dessa cisão etnocêntrica e eurocêntrica entre natureza e cultura que o naturalismo do ocidente marca, como a ideia de corpo e alma, o multinaturalismo propõe uma continuidade física e descontinuidade metafísica, onde espírito e alma, natureza e cultura, são considerados os grandes diferenciadores ocidentais. Então, trata-se de uma nova concepção ameríndia do corpo e, sobretudo, da política, porque no pensamento indígena tudo é uma inscrição do corpo e no corpo. Essa visão é oposta à cisão que postula uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física entre os seres do cosmos. Há um embate cosmológico e político entre essas visões de mundo.

 

 

IHU – Como o multinaturalismo contribui para a discussão sobre o antropoceno?

 

Mateus Uchôa - Há, de fato, a meu ver, uma confluência da problemática multinaturalista com a discussão sobre o antropoceno por causa da consciência de que o grande projeto político da construção social da realidade realizou-se numa contradição fundamental, que vem sob a forma desastrosa de uma destruição natural do planeta, vide uma necessidade de autovaloração da construção material do mundo moderno humano.



Gosto de citar a crítica da economia política de Marx. Por mais que a ideia de antropoceno tenha uma escala maior do que se convenciona chamar de capitaloceno, o problema já não seria mais o modo de produção com o qual a vida humana alicerçou as suas formas, mas há uma correlação muito direta entre consolidação do modo de vida e do modo de produção capitalista com a epocalidade do ser humano, que leva o nome de antropoceno. Esse conflito conjurado no antropoceno diz respeito a dois atores políticos: a espécie humana e a Terra. A espécie humana se tornou, perante a crise ambiental, essa mega força natural de destruição cuja aparência ainda é a acumulação primitiva do modo de produção capitalista, que é capaz de modificar e perturbar os sistemas geofísicos da Terra. Esta, por sua vez, assume cada vez mais essa lógica de predação do mundo. Segundo Davi Kopenawa, nós seríamos os canibais da Terra, os comedores de Terra dentro do seu ponto de vista antropológico xamânico sobre os brancos. Nesse contexto, a Terra cada vez mais assume o seu comportamento imprevisível em relação aos seus círculos climáticos e também a vida humana assume um comportamento imprevisível aos seus círculos políticos e econômicos.

 

 

Crises



As constantes crises do mundo contemporâneo e do capital são um reflexo direto do antropoceno. Surge tudo isso sobre uma nova forma de transcendência que é ameaçadora à nossa espécie e temos como necessidade cada vez mais estar atentos – é preciso sempre estar atento e forte a esses sinais que apresentam os motivos do desmoronamento dessa distinção política fundadora da modernidade, que é a distinção entre natureza e política.

 

O multinaturalismo, em sua política do conceito, visa justamente abalar essa distinção. Não é um movimento iniciado por uma simples necessidade lógica, mas também porque o colapso ambiental planetário configura essa situação que poderíamos denominar como a falência do nomos político dos modernos. Essa relação conflitante entre esses polos, o polo do anthropos e o da natureza, é submetido a uma transmutação, a uma revisão fundamentalmente crítica, onde o caráter que era inicialmente distinto e fraturado de ambos agora forma uma mesma figura. Não é mais a dualidade entre homem e mundo que conta ou tem força a partir daqui, mas se coloca sobretudo a sua negatividade histórica que se impõe.



Considero essencial que permaneçamos ainda também cosmopolitizando as categorias críticas da economia política. Quando li a obra A queda do céu, pude perceber que ali continha um novo tipo de pensamento crítico do modo de vista alienado com o qual a vida humana se encontra. Falo de uma espécie de crítica xamânica da mercadoria que é erigida a partir da compreensão da análise perspectiva que o xamã Davi Kopenawa faz do nosso mundo, do mundo dos brancos, que é o mundo do antropoceno. Portanto, o mundo de história materializada. No antropoceno, a história - e outras histórias também - é mais do que nunca materializada e a natureza é essencialmente política. Então, a sequência tumultuosa dessas transformações põe em xeque radicalmente a noção de anthropos, que é um divisor político de um sujeito universal, que contra define o mundo como objeto.

 

 

Racionalidade moderna



Se pegarmos a ideia de racionalidade moderna, da sua construção ética, veremos que ela é toda baseada na distinção entre o sujeito universal de direitos e o mundo contradefinido como objeto de ação do seu espírito. E, portanto, a intrusão de Gaia como um megaevento vem para, em primeiro lugar, ser uma espécie de intrusão em nossas histórias. É o tipo de transcendência que nunca mais a política dos homens, dos modernos, deixará de levar em conta, a partir desse horizonte de colapso e emergência climática marcado pelo aquecimento global antropogênico e, portanto, de raiz humana. A cosmopolítica, o multinaturalismo e Gaia são os nomes desse megaevento multifacetado que põe o nosso mundo em perigo – e é o único mundo que temos. Hannah Arendt fala sobre isto: não há filosofia sem mundo. Parece que disputar cosmopoliticamente o mundo ou os diversos mundos é a nossa tarefa atual.



Se o antropoceno marca o fim da concepção política do humano e aponta para o início de um reconhecimento onde o mundo é atravessado por múltiplas ontologias extra-humanas, mais-que-humanas, falar da ameaça de um colapso ecológico é também imaginar a possibilidade de um novo mundo a partir desse. Portanto, falar de multinaturalismo é convocar um outro povo, uma outra ideia de povo.

 

 

IHU – Quem seria esse povo porvir?

 

Mateus Uchôa - Seriam os terranos, em oposição aos modernamente considerados humanos. Por seu turno, o terrano não é um antagonista das naturezas. Uma visão pós-correlacionista da natureza é justamente a visão de mundo perpassada por essa metamorfose cosmopolítica e metafísica em que muitos desses terranos já são constituídos e outros estão se preparando para viver neste mundo na era do antropoceno como povos da terra, como povos terranos. O problema é que, ao passo que a consciência de um modo de vida terrano ganha certa popularidade e urgência em nosso tempo, muitos outros persistem a viver como humanos.

 

A insistência do projeto político moderno no processo de exploração capitalista ainda é a persistência de viver como humano, uma condição completamente insustentável dentro dos padrões ambientais atuais. Não vai ser tarefa fácil convencer a nossa civilização, que se arroga e se orgulha de ter inventado a política como a grande invenção própria de sua natureza, a compreender, a partir do antropoceno e das implicações multinaturalistas, que a política não é uma simples repartição da sua identidade. Se trata de uma repartição e de uma ideia de política muito mais abrangente, de uma cosmopolítica que iguala simetricamente todas as outras entidades e espécies envolvidas nesse grande evento que leva o nome de antropoceno.

 

 

O mundo sem o homem



O mundo do antropoceno se encaminha para ser um mundo sem o homem, mas é vivido sobre o modo de uma resistência que se encontraria com o mundo feito de outras gentes. Esse mundo feito de gentes é o mundo do multinaturalismo, das cosmologias ameríndias, porque o multinaturalismo toma essa transcendência definitiva de Gaia, da natureza em nosso horizonte de vida, do modo de uma imanência geológica e geomórfica originária que sempre foi levada em conta e postulada pelos povos da terra e pelos povos ameríndios. Isso posto à determinação de uma vida multinaturalista, ela vai cuidar de outras possibilidades de relação, interação e simbioses estabelecidas entre os organismos heterogêneos de uma vida multiespécie. Portanto, é uma proposição de uma nova experiência para humanos, animais, vegetais e o próprio mundo, de uma maneira irrestrita, marcada por grandes filiações intensivas entre esses diversos mundos.



Então, se percebe que dentro do quadro social e conceitual do multinaturalismo há um referencial muito direto do modo da socialidade indígena, do modo de vida indígena a partir desse choque de histórias entre mundos. Me parece que muitos dos marcadores específicos da modernidade, utilizados anteriormente para indicar o que é natureza e cultura, parecem ter sido invertidos dentro da lógica multinaturalista, pois nesta época de distinção entre o geológico e o histórico é que se coloca a potência do multinaturalismo, que exige a adoção de novas políticas, mas não somente as políticas restritas aos homens. São também aquelas políticas que são compostas de outras visões de entes não-humanos que se acham dispostos aqui em uma espécie de continuum, onde a alteridade vai anteceder a identidade política e as relações dos seus termos.

 

 

Gosto muito do trabalho de uma antropóloga peruana chamada Marisol de la Cadena e seu texto “Histórias do antropocego”, em que ela nos alerta para a capacidade de que os povos indígenas têm de inventar e de suscitar acontecimentos de uma forma muito mais ativa enquanto sujeitos de composição de mundo do que os próprios modernos. Isso porque, para eles, a cosmopolítica não se encerra somente na humanidade. O multinaturalismo faz parte de uma diplomacia cósmica, como afirma Viveiros de Castros.

 

No multinaturalismo, o homem é a desmedida de todas as coisas ao mesmo tempo em que é medido por todas elas. Essa é a grande implicação cosmopolítica, o caráter excedente da figura humana. Então, o anthropos da política, o Humano com H maiúsculo, até então privilegiado agente neste mundo, em vista do multinaturalismo, age como uma espécie de unificador prematuro da própria natureza, enquanto o multinaturalismo quer impedir o fechamento prematuro das diversas naturezas e das não-humanidades.



Poderia citar uma passagem mais direta e completa do que Viveiros de Castro aponta sobre isso a respeito da cosmopolítica do naturalismo. Ele afirma que a cosmopolítica ou ontologia política da diferença sensível universal atualiza outro universo que o nosso. Enfim, reconhece outros modos de existência do que o nosso, justifica outra prática da vida, outro modelo de laço social, distribui diferentemente as potências e competências do corpo e da alma, do humano e do extra-humano.

 

 

 

Antropoceno como atropocego



Marisol de la Cadena, ao examinar o modo de vida dos povos indígenas e especular sobre as condições cosmológicas que os homens estabelecem com a Terra, faz referência ao antropoceno como um atropocego, no sentido de que esse termo inclui relações e entidades antagônicas a partir de coletivos que passam a ser submissos. Ou seja, o antropocego, que seria uma das faces do antropoceno, inclui uma guerra travada contra entidades e práticas de mundo que ignoram a separação entre natureza e cultura e que por seu turno emergem como inerentemente juntas. Essa é a guerra dos mundos que o antropoceno coloca a outros coletivos de seres. Esse emaranhado de coletivos que compõe o multiculturalismo aponta que todas as entidades necessitam umas das outras. A natureza incomum à multinatureza da cosmopolítica é marcada por um comum divergente. Não se trata de uma unificação que apaga e silencia outras naturezas. Podemos trazer a ideia de síntese disjuntiva que Deleuze aponta: a diferença como marca de uma nova ordenação política e metafísica do mundo. A história política do antropoceno é uma chance cosmopolítica para a equivocidade de mundos, uma chance de desnaturalizar a natureza, que é o que se torna urgente hoje dentro da problemática da emergência climática.

 

 

Comum



Devemos, portanto, descolonizar a nossa ideia de natureza ou desnaturalizar esta e tudo que o homem compreendeu até aqui como natureza, pois as histórias que compõem essas múltiplas naturezas contam outras histórias mais do que as histórias que a nossa espécie contou até então. Então, são uma espécie de especulação sobre a composição de alianças que são capazes de acolher os acordos dessa equivocidade dos mundos, em que os acordos são feitos não entre diferentes pontos de vista sobre um mesmo mundo – não se trata mais de um mesmo mundo –, mas acordos que levam em consideração que os pontos de vista e as perspectivas dos povos extramodernos e mais-que-humanos possam corresponder a mundos que nunca são apenas os mesmos. Da política do conceito de multinaturalismo, nós temos um novo conceito de política, ou melhor, de cosmopolítica. Assim, o comum, já que toda política visa a ele, emerge dos mundos incomuns, que são ecologicamente relacionados desde as suas divergências, que são constitutivas.



Por isso que o perspectivismo não é um modelo de organização visando uma apaziguação ou uma pasteurização de demandas diretas da vida de determinada espécie. É uma divergência constitutiva. Gosto de citar como exemplo disso um conceito do filósofo Marco Antonio Valetim, que é a ideia de extramundanidade e sobrenatureza, em que não se faz mais a divisão entre humanos e não-humanos. É nesse sentido que apenas o multiculturalismo pode compor o que chamamos de o cosmos da cosmopolítica. A questão é que as proposições cosmopolíticas apontadas por determinados pensadores e pensadoras ainda parecem resguardar um certo messianismo e uma certa crença em um porvir que acaba por apagar as referências e pontos de partida ameríndios.

 

 

Há a necessidade de fortalecer mais esse laço e acredito que a partir das experiências sociais de libertação que aconteceram e acontecem na América Latina, que sempre foram conectadas a questões ecológicas, ambientais, de direitos sociais e de uma reparação ambiental, parece que podemos nos esforçar mais para nos aproximar dessa perspectiva epistêmicas e históricas da América do Sul. Ou seja, dos povos das terras baixas da América do Sul. Sempre me vem à mente a experiência dos exércitos de libertação nacional zapatistas. Portanto, uma experiência também indígena, já que estamos falando dos descendentes dos maias, um povo especialista em fim de mundo. Por que não olhar cada vez com mais atenção e apreço para as experiências políticas e indígenas da América Latina?



Para encerrar, gostaria de citar um trecho de uma declaração do Exército Zapatista, a Quarta Declaração da Selva Lacandona, que a própria Marisol de la Cadena expõe nos seus textos.



A declaração zapatista afirma: “Muitas palavras caminham pelo mundo, muitos mundos se fazem, muitos mundos nos fazem. Há palavras e mundos que são verdades e verdadeiros. Nós somos feitos por palavras verdadeiras. No mundo do poderoso não cabem mais que os grandes e seus servidores. No mundo que nós queremos, cabem todos. O mundo que queremos é um onde caibam muitos mundos.”

 

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