Fratelli tutti à sombra do Antropoceno. Artigo de Wolfgang Sachs

16 Junho 2022

 

A nossa Terra está em perigo: uma prosperidade frugal deveria estar na ordem do dia, combinando uma economia de recursos com estilos de vida diferentes em todo o mundo. Uma tarefa que levará boa parte do século para ser realizada.

 

O comentário é de Wolfgang Sachs, líder de um projeto transversal chamado “Globalização e sustentabilidade” no Wuppertal Institut, na Alemanha, centro onde são estudados e desenvolvidos modelos e estratégias para o desenvolvimento sustentável. Discípulo de Ivan Illich, seus trabalhos de crítica sobre a ideia de desenvolvimento influenciaram o movimento ecologista.

 

O artigo foi publicado na revista Vita e Pensiero, 2/2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Entre as inúmeras aparições do Papa Francisco, qual será considerada pela posteridade como a mais icônica? Provavelmente nem a visita a Lampedusa entre os migrantes nem o encontro com os povos indígenas da Amazônia, embora ambos sejam imagens peculiares do seu pontificado – mas sim a sua aparição em uma Praça de São Pedro deserta durante a pandemia do coronavírus.

 

Uma figura de branco, sozinha, que subia fatigantemente os degraus rumo à Basílica de São Pedro, para depois dar a bênção eucarística Urbi et Orbi: essa será a imagem que entrará nos livros de história.

 

Uma visão, sem dúvida, cheia de contrastes: a imagem do papa solitário ao entardecer debaixo da chuva, em contraste com a imagem familiar, para os telespectadores de todo o mundo, dele olhando para a Praça de São Pedro saudado pela exultação de dezenas ou centenas de milhares de fiéis entre as colunas de Bernini. E, depois, em março de 2020, uma manifestação poderosa de vulnerabilidade que comoveu até os não crentes.

 

No entanto, a pandemia está ofuscando a consciência referente a outra calamidade. Longe das câmeras, em agosto de 2018, Greta Thunberg prestava um testemunho anônimo dessa calamidade, brandindo o seu cartaz com a frase “School Strike for Climate” (Greve escolar pelo clima), em Estocolmo, totalmente sozinha, em frente ao Parlamento sueco. Na época com 15 anos, armada de um talento notável e de muita obstinação, ela desencadeava a proverbial avalanche.

 

A partir dos “Fridays for Future”, o aquecimento global (e a falta de combate a esse problema) tornou-se um refrão em todo o mundo. A indignação de Greta nas Nações Unidas (com o seu “Como vocês se atrevem?”) teve uma cobertura tão vasta na mídia que a revista estadunidense Time nomeou a menina como “Pessoa do Ano de 2019”.

 

Mas a Covid-19 apagou Greta da memória coletiva. E se trata de uma supressão de primeiro grau, porque já está claro a todos os especialistas que a pandemia da Covid-19 é apenas o prelúdio de uma era de colisões na biosfera devidas a uma relação já comprometida entre o gênero humano e a natureza. E esse é também o sentimento do escritor britânico Ian McEwan: “A Covid é o nosso tutorial em massa, a nossa prova geral de todos os danos e os infortúnios pessoais que a emergência climática pode causar. Recebemos o aviso de um desastre em escala planetária” (The Wall Street Journal, 19 de março de 2021).

 

Por trás da Covid-19, esconde-se uma crise da natureza, e, depois da pandemia, o Antropoceno se assoma no horizonte. Como o próprio Papa Francisco contou, ele foi surpreendido pela pandemia enquanto escrevia a encíclica Fratelli tutti. Mas a encíclica tem algo a dizer sobre essa crise da natureza que está destinada a se tornar a marca distintiva do século XXI? A mensagem da fraternidade universal pode se realizar à sombra do Antropoceno?

 

Antropoceno: um conceito que esconde um abismo

 

Raramente uma exclamação teve tanto sucesso. Em 2000, durante uma conferência sobre a mudança global em Cuernavaca, no México, Paul J. Crutzen, cientista de Mainz, premiado com o Nobel pelo seu trabalho sobre o buraco de ozônio, não conseguiu se conter: “Paremos de usar a palavra Holoceno. Não estamos mais no Holoceno. Estamos no Antropoceno!” (E. Horn - H. Bergthaller, The Anthropocene. Key Issues for the Humanities, Routledge, 2019). No início, houve um silêncio atônito, em seguida, no momento do coffee break, o termo começou a circular, difundindo-se primeiro nos círculos profissionais e depois, na última década, entre um público mais amplo, até entrar em todos os âmbitos, da sociologia à arte.

 

O que Crutzen queria dizer? A Terra entrou em uma nova época histórica em que o gênero humano deve ser considerado uma força geológica, da mesma forma que as erupções vulcânicas e os terremotos. A atividade humana está modelando a superfície da Terra e a atmosfera em larga escala e de modo permanente, entre o aquecimento global com as suas consequências para a flora, a fauna e o habitat humano e a impermeabilização da superfície terrestre com a interrupção do ciclo da água, a rápida redução da biodiversidade, a poluição de ar, solo e água por meio de substâncias tóxicas, com uma população humana em rápido crescimento e a exploração de recursos para a criação de gado de corte.

 

A biosfera terrestre está atualmente superexplorada por um fator de 1,7, por isso não é nenhuma surpresa que a natureza, tanto em nível local quanto global, esteja gemendo de fadiga. Em consideração a essa mudança epocal, o discurso convencional sobre a crise ambiental foi posto em exibição como em uma vitrine. Mas não se trata aqui de ambiente, mas sim da natureza subjugada por influência do ser humano; e, novamente, não se trata de uma crise passageira, mas sim de uma era geológica.

 

O que o termo “Antropoceno” nos transmite, desde que a geologia histórica o aceite em termos de classificação, é um alerta inquietante: enquanto o gênero humano não reduzir drasticamente sua pegada ecológica, assistiremos ao colapso gradual de um número cada vez maior de formas de vida conhecidas no mundo.

 

Essas mudanças induzidas pelo ser humano no planeta estão tendo um efeito bumerangue que poderia dar origem a uma catástrofe gradual. Nunca na história humana o poder e a impotência foram tão inseparáveis como no Antropoceno, um tempo em que coexistem lado a lado as viagens espaciais e o aquecimento global, os arranha-céus e a extinção das espécies, as interconexões digitais e a urbanização, tudo causado pelas tentativas humanas de controlar a natureza.

 

Parece que quanto mais profundamente nós, humanos, intervimos no sistema terrestre, mais temos que enfrentar processos que vão além do nosso controle.

 

Temos mais poder sobre a natureza, mas ao mesmo tempo a natureza tem mais poder sobre nós. Isso leva à situação paradoxal em que as pessoas do século XXI se encontram divididas entre um enorme poder humano e uma grande perda de controle.

 

Da Laudato si’ à Fratelli tutti

 

“Recebemos a Terra do Criador como uma casa-jardim”, disse o Papa Francisco no encontro com os dirigentes de empresas petrolíferas e do setor energético em junho de 2018. “Não a transmitamos às futuras gerações como um lugar selvagem.” O papa exortou as empresas a abandonarem os combustíveis fósseis e a investirem nas energias renováveis.

 

Na encíclica Laudato si’, ele havia falado da profanação da natureza e do grito do pobre, um tema recorrente do seu pontificado. Quem não se lembrará de como, com profunda autocrítica, ele havia se distanciado do dominium terrae de Gênesis 1? Isto é, da ideia de que os seres humanos são dominadores e proprietários da natureza, como postulado por Descartes no início da era moderna.

 

O papa, pelo contrário, chama a Terra, em puro espírito franciscano, de mãe e irmã. Ele também chama a atenção para a contraparte da natureza, a tecnosfera. Ele desaprova o imperativo da eficiência econômica que permeia a tecnologia, deixando pouco espaço para o bem-estar, e não só dos seres humanos. O fabuloso crescimento do poder humano permaneceu sem senso de responsabilidade e clarividência.

 

Em contraste, a natureza não aparece na encíclica Fratelli tutti. Esta se centra totalmente na observação da relação com os outros dentro do horizonte visionário de um mundo justo e fraterno. Este se contrapõe à “globalização da indiferença”, como o Papa Francisco a definiu em Lampedusa, propondo, em vez disso, uma globalização da fraternidade, que abrange um amplo leque de questões: dos males de um mundo fechado aos outros, como o medo dos migrantes, a fácil violação dos direitos humanos, a solidão digital, aos princípios para um mundo hospitaleiro marcado pela dignidade humana, pela busca do bem comum e pelo diálogo entre culturas.

 

E, até agora, tudo bem, mas não há nenhuma menção à crise da natureza. Isso é surpreendente, pois o discurso da fraternidade com todos os seres vivos poderia ter sido o fio condutor entre as duas encíclicas. No entanto, a Fratelli tutti aborda as questões existenciais do gênero humano, com o foco central na busca – que remonta a Abel e a Caim – de uma sociedade sem violência e sem discriminação, mas marcada pela solidariedade e pelo senso de comunidade.

 

Portanto, o documento magisterial do papa aborda os fatos que estão na vanguarda da história: a opressão, o egoísmo dos ricos, as migrações. Por outro lado, os eventos de segundo plano permanecem ocultos: o aquecimento global, a perda de biodiversidade, a urbanização. O que esses dois cenários têm em comum? E como um memorando sobre a coesão da sociedade global pode contribuir com o conceito de Antropoceno?

 

O declínio do estilo de vida imperial

 

É preciso levar em consideração três fatos:

 

1) o número dos habitantes da Terra aumentou rapidamente, de 2,5 bilhões em 1950 para os atuais 7,8 bilhões;

 

2) desde 1950, o Antropoceno sofreu uma enorme aceleração: a natureza teve que servir de mina de carvão, de petróleo, de gás, de metais, de minerais e de água doce; teve que se pôr à disposição como área para a infraestrutura, a urbanização, a agricultura e teve que suportar vapores de todos os tipos, como emissões poluentes, pesticidas e nitratos: a Terra se curvou ao estilo de vida industrial;

 

3) o avanço da desigualdade global, entre quem tem e quem não tem nada, entre os possuidores e os refugiados, entre quem tem poder e quem não o tem. A desigualdade econômica se replica na desigualdade ecológica. Como consequência, metade da humanidade se empanturra de natureza, enquanto a outra metade tem que se contentar com migalhas. Sem meios termos, o anthropos da palavra Antropoceno é sinônimo de dominação global dos ricos sobre os pobres por meio da exploração da natureza.

 

Talvez alguns dados possam ajudar. Se observarmos a população mundial de acordo com a classe de renda e examinarmos as suas emissões de CO2, surge uma enorme lacuna. Em 2015, uma pequena parcela da população que produzia 50% da renda mundial provocava impressionantes 93% das emissões de CO2, enquanto a metade mais pobre era responsável por apenas 7%.

 

Se olharmos o mapa-múndi para identificar onde residem as classes alta e média globais, surge o seguinte quadro: em relação às emissões globais de pessoas com renda média/alta, 35,9% provêm da América do Norte e da Europa, 24,8% da China, 13,6% do restante da Ásia incluindo a Índia, 13,6% do Oriente Médio e da Rússia/Ásia Central, 3,5% da América Latina e 1,7% da África. Por outro lado, a outra metade da população mundial, aquela dos de 7%, encontra-se principalmente na Índia, China, África e América Latina.

 

Da mesma forma, a divisão do mundo se reflete nas emissões climáticas. Viagens aéreas, mercado imobiliário e bifes são típicos das classes altas do mundo, enquanto os carros de segunda mão, as máquinas de lavar e o ar-condicionado são comuns entre a classe média. E depois há a classe dos mais pobres, que têm que se contentar em viajar em ônibus lotados, alimentando-se de modo inadequado e fazendo uso de latrinas.

 

De modo geral, entre 1970 e 2017, a demanda anual por materiais, por exemplo biomassa, recursos fósseis, minerais, metais, aumentou de 7 toneladas per capita para 12 toneladas. O desmatamento em grande escala e o esvaziamento das áreas de pesca, as plataformas de petróleo e os gasodutos, as minas de prata e a extração de lítio a céu aberto são exemplos de extrativismo de recursos. E aqui também os ricos levam a parte do leão: a pegada material (tanto interna quanto externa) do consumo nos países com renda alta é de cerca de 27 toneladas per capita, nos países de renda média é de 16 toneladas e nos países com renda baixa é de 2 toneladas.

 

Mudando o foco para as multinacionais que comercializam materiais tirados da biosfera, o grau de concentração é surpreendente: nada menos do que quatro empresas têm uma parcela de 84% do mercado global de pesticidas, cinco empresas são responsáveis por 90% do mercado de óleo de palma, 10 empresas estão envolvidas na extração de cobre (50%) e de prata (36%), outras 10 controlam 72% das reservas de petróleo e 51% das reservas de gás. Naturalmente, todas têm as suas sedes em arranha-céus, principalmente na América do Norte, Europa, China e Oriente Médio.

 

Se olharmos para os últimos 70 anos, podemos afirmar que o modelo econômico predominante não é nem justo nem sustentável. Pelo contrário, ele alimenta a polarização social e provoca uma colisão com a natureza. Portanto, é incapaz de garantir o bem comum global. Além disso, esse modelo econômico desastroso deu origem a um estilo de vida imperialista que, por meio do poder de vínculos práticos, obtém aquilo que tenta esconder: que alguns vivam às custas de outros.

 

Uma ecologia com intenção cosmopolita

 

Tudo isso fica claro quando se leem as inúmeras mensagens, os discursos e as encíclicas do Papa Francisco: ele absolutamente não está olhando o mundo a partir da perspectiva do progresso e do crescimento, mas da desigualdade global e da destruição da natureza. Esse é o motivo pelo qual ele está levando adiante um conceito de mundo como alternativa ao neoliberalismo e ao estatismo, baseado na fraternidade. Uma ideia bíblica que adquiriu relevância durante a Revolução Francesa, com o slogan antifeudal/democrático “Liberté, Égalité, Fraternité”, e que após 1848 foi substituído pelo conceito de solidariedade tanto pelo movimento operário quanto pelo ensino social cristão. Um eco tardio ainda pode ser encontrado no hino europeu, o “Hino à alegria”, de Schiller, musicado por Beethoven (“Alle Menschen werden Brüder”, todos os homens serão irmãos).

 

Comparada com a “solidariedade”, a palavra “fraternidade” assume uma característica imediata, que consiste em estabelecer uma relação de parentesco. Entre irmãos/irmãs, quer vivam distantes ou perto, existe um certo vínculo indissolúvel: eles partilham os eventos e as coisas da vida; ficam quase fisicamente afetados se um deles estiver mal. Além disso, no momento em que chamamos alguém de irmão ou irmã, mesmo que em sentido metafórico, professamos ter progenitores comuns.

 

Quando Francisco de Assis, no “Cântico do Irmão Sol”, chama as estrelas, o fogo, a água e a terra de irmão ou irmã, ele celebra Deus Pai. Entendido de forma secular, isso pode significar aparentar-nos com os seres humanos e não humanos para manter exuberante de saúde a árvore da vida familiar sobre a terra. Geneticamente, os humanos têm muito em comum com outros mamíferos; eles participam, junto com outros animais, da atmosfera criada pelas plantas que cercam a Terra, na delicada camada da biosfera, da qual não existe um exemplo semelhante em todo o universo. Estreitados nesse vínculo, como irmãos/irmãs, fraternidade significa cuidar dos fundamentos naturais da vida das criaturas humanas e não humanas.

 

“Cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos”, afirma a encíclica. “Mas precisamos de nos constituirmos como um «nós» que habita a casa comum. Um tal cuidado não interessa aos poderes econômicos que necessitam de um ganho rápido” (Fratelli tutti, n. 17). As incumbentes consequências negativas ocultas, embora óbvias, do Antropoceno afetam a todos, especialmente no Sul do mundo, junto com os animais e as plantas da terra inteira. E isso é verdade particularmente para o quarto mais pobre da população mundial, que depende do acesso gratuito às áreas naturais para sua própria subsistência, e para o qual a savana, a floresta, a água, as terras aráveis e também os peixes, os animais de caça e os animais de criação são meios de subsistência imediata.

 

Os direitos humanos como a alimentação, o vestuário, a habitação, os remédios e também a cultura estão ligados a ecossistemas intactos em economias de subsistência. Esse vínculo entre os direitos humanos e os espaços naturais é um tema particularmente caro ao Papa Francisco, como se pôde observar de modo evidente com o Sínodo para a Amazônia de 2019, durante o qual ele se cercou de representantes das populações indígenas.

 

É claro que ele também pensa neles quando cita Francisco de Assis no primeiro parágrafo da encíclica: “Feliz quem ama o outro, ‘o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si’ (Fratelli tutti, n. 1). E esta não é uma posição distante do programa cosmopolita que remonta à stoà, passando pelo Iluminismo, até a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1848, segundo a qual o mundo é uma comunidade de pessoas, não um conjunto de Estados ou de clãs, mas uma comunidade na qual todos têm o direito de receber justiça, assim como de oferecê-la.

 

Naturalmente, os direitos de uns não podem ser obtidos sem os deveres dos outros. No debate internacional, no entanto, fala-se frequentemente de direitos humanos, e muito pouco de deveres humanos. E como a universalidade dos direitos humanos pode ser garantida se não for contrabalançada pela universalidade dos deveres humanos? Levantar a hipótese não dos direitos, mas da sua contrapartida – os deveres universais – foi o movimento decisivo da ética de Immanuel Kant.

 

Como bem se sabe, o imperativo categórico é: aja segundo aquela máxima que você deseja que todas as outras pessoas racionais sigam, como se fosse uma lei universal. Em perspectiva kantiana, a injustiça, portanto, pode ser definida assim: as instituições políticas e econômicas são injustas quando se baseiam em princípios que não podem ser assumidos por todas as nações. Nas palavras pungentes da encíclica: “Enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados” (Fratelli tutti, n. 22).

 

Um exemplo flagrante disso é a distribuição desigual dos recursos naturais, que foram acumulados pelas classes médias e altas do mundo em tal medida que os pobres não podem dispor deles para poderem alcançar um nível igual. E, pior ainda, a metade mais pobre da população global não tem a permissão de se desenvolver no mesmo nível, porque senão os limites do planeta seriam ultrapassados.

 

Assim, falando em termos esquemáticos, a distribuição internacional dos recursos torna-se um jogo de soma zero, no qual vencer significa que outros perdem. Injusto e limitativo – nisso reside um poder explosivo que pode desembocar em conflitos e, em casos extremos, em guerras pela obtenção dos recursos.

 

Só há uma saída: uma renúncia disciplinada ao estilo de vida imperialista. Porque não está claro como podem ser disponibilizados, por exemplo, a motorização em massa, as residências com ar-condicionado ou o alto consumo de carne para todos os habitantes do planeta. Uma prosperidade frugal deveria estar na ordem do dia, de modo a combinar uma economia de recursos com estilos de vida diferentes em todo o mundo. Uma tarefa que levará uma boa parte do século para ser realizada, na qual certamente serão indispensáveis um movimento popular democrático, uma transformação da tecnologia e uma moderação na economia e no estilo de vida.

 

Acima de tudo, uma pegada ecológica menor deverá ser acompanhada por processos de eliminação gradual e por um novo desenvolvimento. Por exemplo, a energia fóssil, os produtos petroquímicos e os automóveis terão que ser substituídos gradualmente pelo desenvolvimento de energias renováveis, por sistemas de mobilidade suave, por uma agricultura regenerativa e pela restauração das áreas naturalistas. Isso não seria nada menos do que uma declaração de guerra contra a civilização industrial das classes médias e altas do mundo, nos Estados Unidos assim como no Uruguai, na China assim como no Chile. Uma revolução não só contra quem está no poder, mas também contra todo um estilo de vida, real ou imaginário, de grande parte da população mundial.

 

Será doloroso, mas também estimulante. Será conflitante, mas também galvanizante. De todos os modos, é necessário mudar o nosso modo de olhar para o mundo: dos pobres para os ricos. Durante 70 anos, as políticas de desenvolvimento procuraram melhorar os padrões de vida dos pobres em nome da justiça – com resultados mistos. Mas agora se trata de mudar o estilo de vida dos ricos. Caso contrário, não haverá uma perspectiva de justiça em um mundo limitado. Sem pôr limites à riqueza, não será possível pôr limites à pobreza.

 

Esperar contra toda esperança

 

Parece que é preciso reviver uma antiga virtude cristã, indispensável em vista das questões futuras: spes contra spem, esperar contra toda esperança. Na sua epístola aos Romanos, Paulo adotou esse lema em referência a Abraão, que ansiava por ter filhos e netos. Atualmente, o objetivo é criar um futuro adequado para os nossos netos e assegurar uma habitabilidade duradoura da Terra.

 

As expectativas se baseiam em previsões, que por sua vez se baseiam em probabilidades. Mas a história, em nível local e também global, absolutamente não segue caminhos lineares, mas é intercalada por muitos eventos não lineares. Os exemplos abundam: a queda do Muro de Berlim, a pandemia do coronavírus, o movimento “Fridays for Future”. Esses eventos têm um denominador comum: foram imprevisíveis e epocais.

 

Quem espera, antecipa as surpresas; a esperança se baseia sobretudo nos momentos não lineares, caóticos da história. É por isso que é necessário desenvolver uma ética que respeite as condições de incerteza. Nesse sentido, é bastante razoável que a ação ética prossiga dentro da própria comunidade sem se preocupar com o que ocorre em outras comunidades e regiões do mundo.

 

Não há outro modo de compreender a decisão do Papa Francisco quando recomendou a figura do Bom Samaritano como modelo para a ação social e civil na sociedade mundial. Diz o papa: “O amor social é uma ‘força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e renovar profundamente, desde o interior, as estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos’” (Fratelli tutti, n. 183). Portanto, ele é guiado pela esperança e certamente não pela probabilidade, optando por confiar nas inúmeras iniciativas que vão contra a corrente.

 

E o nosso vai para aquelas cooperativas de cidadãos que trabalham pelas energias renováveis, aquelas empresas que levam seriamente em consideração os direitos humanos nas suas cadeias de fornecimento, aqueles advogados que levam as causas ambientais aos tribunais ou aqueles fazendeiros que abriram mão das criações intensivas. Isso sem falar dos inúmeros conflitos, especialmente no Sul do mundo: protestos contra a construção de barragens, de minas, de plantações, em favor de uma agroecologia, de uma mobilidade sem automóveis, da multiplicidade de empresas sociais.

 

Tomada individualmente, cada iniciativa é fragmentária e efêmera, mas, tomadas em conjunto, podem produzir uma grande repercussão na sociedade, especialmente nos momentos de caos. O que dizia o eminente ativista tcheco pelos direitos humanos e presidente da República Tcheca, Václav Havel? “A esperança não é a convicção de que algo vai dar certo, mas sim a certeza de que esse algo faz sentido, independentemente de como acabe.”