Desserviços ecossistêmicos são gerados pela proliferação de espécies exóticas invasoras. Entrevista especial com Fernando Becker

A presença de palometas (piranhas vermelhas) na bacia Jacuí-Patos, no Rio Grande do Sul, pode causar impactos relevantes na biodiversidade, alerta o biólogo

Foto: Reprodução

Por: Patricia Fachin | 15 Junho 2022

 

A introdução de espécies exóticas em ambientes não nativos, como tem sido registrado na presença e disseminação frequente de palometas (piranhas vermelhas) na bacia do Delta do Jacuí-Laguna dos Patos e na bacia do rio Tramandaí, no Rio Grande do Sul, pode ocorrer de modo não intencional, "por meio da interligação de bacias hidrográficas via canais e manejo de água para uso agrícola", ou intencional, quando as espécies "são deliberadamente introduzidas no ambiente com alguma finalidade", explica o biólogo Fernando Becker. Mas de uma forma ou de outra, geralmente, acrescenta, o processo ocorre como efeito da "ação humana" no ambiente e "a proliferação de exóticas invasoras se torna um problema quando as espécies aumentam muito a sua abundância e distribuição geográfica no ambiente".

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Becker comenta especificamente o caso das palometas, nativas das bacias do rio Amazonas e do Paraná. Segundo ele, no Rio Grande do Sul, elas estão presentes "naturalmente na bacia do rio Uruguai", mas "não são nativas da bacia do Jacuí-Laguna dos Patos e na bacia do rio Tramandaí". Essa espécie, diz, "provavelmente conseguiu transpor o divisor de águas, por meio de conexões propiciadas por canais, barragens e açudes na região de cabeceiras dos rios Ibicuí e Vacacaí, daí se dispersando até o Delta do Jacuí. (...) Conforme relatos feitos por pescadores, além de registros no Vacacaí, a espécie já ocorre em todo médio e baixo Jacuí, incluindo os rios Pardo e Taquari e porção do rio dos Sinos em Canoas. Entretanto, ainda não há um levantamento sistemático e completo da situação". A proliferação desses animais em ambientes não naturais, esclarece, gera um impacto social e econômico na pesca por atacarem o pescado, reduzindo outras espécies e o rendimento financeiro dos pescadores.

 

Fernando Gertum Becker é mestre em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos. Foi pesquisador na Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul e atualmente leciona no Departamento de Ecologia da UFRGS.



Confira a entrevista.

 

IHU - O que são espécies invasoras? Que tipo de problemas elas causam nos ecossistemas e nas infraestruturas criadas nas cidades?

 

Fernando Becker - Quando falamos em "espécies invasoras" no contexto de problemas ambientais, estamos nos referindo mais precisamente às espécies exóticas invasoras. Ou seja, são espécies que estão fora de sua distribuição natural, ou fora de sua distribuição nativa, e cuja introdução em novos ambientes pode causar problemas ambientais, além de prejudicar a biodiversidade nativa.

 

Não tenho conhecimento aprofundado sobre os problemas causados por espécies invasoras especificamente na infraestrutura das cidades, mas é importante observar que espécies exóticas em ambientes urbanos, especialmente plantas, estão associadas tanto a benefícios (serviços ecossistêmicos) quanto a prejuízos (desserviços ecossistêmicos). Casos de desserviços ecossistêmicos de exóticas invasoras em ambiente urbano estão frequentemente associados a plantas que podem causar impactos na saúde (como alergias), mas diversos outros organismos podem gerar problemas. Especificamente em Porto Alegre, o Departamento Municipal de Água e Esgotos - DMAE se viu obrigado a implementar medidas de controle e monitoramento do mexilhão-dourado (de origem asiática), devido ao risco de obstrução das tubulações de água para abastecimento da cidade. Até onde sei, o controle é efetivo, mas certamente implica em despesas financeiros e alocação de servidores e esforço institucional que de outra forma poderia ser destinado à atividade fim do órgão. Plantas exóticas invasoras também vêm causando problemas em áreas verdes da cidade, como no Parque Natural do Morro do Osso (acácia-negra – uma ótima avaliação foi realizada pela bióloga Maria Carmem Bastos, da SMAM), prejudicando valores estéticos, culturais e a biodiversidade nativa.

 

 

IHU - Quais são as causas relacionadas ao surgimento de espécies invasoras em determinados ecossistemas? É um fenômeno natural, como uma migração, ou produzido por outras causas?

 

Fernando Becker - Geralmente o surgimento de espécies exóticas invasoras está associado à introdução intencional ou não intencional por ação humana. A introdução intencional se dá quando espécies exóticas são deliberadamente introduzidas no ambiente com alguma finalidade (p.ex., o capim-annoni para pastejo do gado, ou os javalis para produção de carne), mas que acabam se dispersando e aumentando muito a abundância. A introdução não-intencional pode ser dar de muitas maneiras, sendo que um caso emblemático é o do mexilhão-dourado, dispersado para várias partes do mundo por meio da água de lastro dos navios, e o das palometas aqui no Rio Grande do Sul, por meio da interligação de bacias hidrográficas via canais e manejo de água para uso agrícola.

 

 

IHU - Espécies invasoras são consideradas somente como fontes de potenciais riscos ambientais ou a presença delas, em determinados ecossistemas, pode ser positiva?

 

Fernando Becker - Há alguma discussão nesse sentido, por exemplo, nos ambientes urbanos, em que uma dada espécie pode ser considerada benéfica para uma finalidade determinada (por exemplo, estética), mas prejudicial de outras perspectivas, como causar alergia. Em linhas gerais, seria necessário analisar muito bem o balanço entre custos e benefícios para afirmar se a introdução de uma espécie exótica pode ser benéfica, mas penso que, exceto para aquelas espécies incapazes de se dispersarem e se reproduzirem sozinhas no ambiente, a chance de saldo negativo será quase certa. Vale lembrar que, ecológica e evolutivamente, invasões são um processo dinâmico, de modo que diante de ambientes em constante transformação (local e globalmente), situações que hoje parecem pouco preocupantes podem futuramente se tornar um problema. É por isso que a maioria dos países está trabalhando na busca de protocolos de avaliação de risco e detecção precoce. No Brasil, o Ministério do Meio Ambiente - MMA faz isso dentro da "Estratégia Nacional para Espécies Exóticas Invasoras", assim como a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura - SEMA-RS por meio do Programa Invasoras RS.

 

 

IHU - Quando a proliferação de espécies invasoras se transforma em um problema ambiental e como isso tem se manifestado no Rio Grande do Sul? Pode dar alguns exemplos de espécies invasoras nos ecossistemas do estado?

 

Fernando Becker - A proliferação de exóticas invasoras se torna um problema quando as espécies aumentam muito a sua abundância e distribuição geográfica no ambiente, agregando-se a isso a maneira como elas o modificam. No Rio Grande do Sul há diversos exemplos, como capim-annoni, a uva-do-japão, o pinus, a rã-touro, o javali, o mexilhão-dourado e, mais recentemente, as palometas. A melhor maneira de evitar esses problemas é por prevenção ou por controle em estágios iniciais da invasão. Para isso é fundamental a existência de análise de risco e sistemas de detecção precoce, que permitem respectivamente evitar introduções ou perceber a ocorrência de invasões antes que se tornem um problema mais complexo.

 

 

IHU - Entre as espécies invasoras, destacam-se no Rio Grande do Sul as chamadas piranhas vermelhas, palometas. De onde elas são oriundas e a que atribui a presença delas no delta do Jacuí?

 

Fernando Becker - As palometas (Serrasalmus maculatus) são nativas das bacias do rio Amazonas e do Paraná, ocorrendo naturalmente na bacia do rio Uruguai, no RS. Porém, não são nativas da bacia do Jacuí-Laguna dos Patos e na bacia do rio Tramandaí. Essa espécie provavelmente conseguiu transpor o divisor de águas, por meio de conexões propiciadas por canais, barragens e açudes na região de cabeceiras dos rios Ibicuí e Vacacaí, daí se dispersando até o Delta do Jacuí.

 


Regiões hidrográficas do Brasil (Foto: Reprodução)

 

Incidência de palometas no Rio Jacuí cresce e preocupa ainda mais

 


Regiões hidrográficas do RS (Foto: Comitê Ibicuí)

 

IHU - Em que outras regiões do estado há presença de piranhas vermelhas? Algumas notícias da imprensa relatam casos de ocorrência no Rio do Sinos, na região de Canoas, por exemplo. O senhor tem informações sobre?

 

Fernando Becker - Conforme relatos feitos por pescadores, além de registros no Vacacaí, a espécie já ocorre em todo médio e baixo Jacuí, incluindo os rios Pardo e Taquari e porção do rio dos Sinos em Canoas. Entretanto, ainda não há um levantamento sistemático e completo da situação.

 

IHU - Quais são os danos ambientais, sociais e econômicos gerados por essa espécie invasora?

 

Fernando Becker - Esses danos ainda não foram devidamente avaliados. As palometas têm potencial de impacto social e econômico na pesca (atacam o pescado, ainda nas redes, reduzindo o ganho), podendo ainda causar diminuição na abundância de espécies de maior interesse da pesca; há que se considerar também o impacto em atividades de lazer e turismo, como em balneários ao longo das áreas invadidas. Esses problemas seriam ainda mais preocupantes caso penetrem nas lagoas do litoral norte. Porém, é na biodiversidade que os impactos podem ser mais relevantes, não só por conta da invasão das palometas em si, mas porque pela mesma via de dispersão por elas usada podem entrar dezenas de outras espécies da bacia do rio Uruguai que não ocorrem naturalmente na bacia Jacuí-Patos, aumentando o risco de extinções na bacia (incluindo outra espécie de piranha), além de efeitos de mais difícil previsão causados pela sobreposição das invasões a outros fatores de pressão ambiental já existentes (poluição, extração de areia, barramentos etc). Na prática, pelo menos três outras espécies de peixe já haviam percorrido provavelmente o mesmo caminho das palometas desde o final dos anos 1980, o que reforça essa preocupação.

 

 

IHU - Qual é o custo ecológico, social e econômico da introdução de espécies invasoras e não-nativas em determinados ecossistemas?

 

Fernando Becker - Os custos ecológicos podem ser variados, incluindo a extinção de espécies, a diminuição da abundância de espécies ou da integridade de ambientes importantes ecologicamente, os quais se desdobram em perda de serviços ambientais e em problemas sociais e econômicos. No Brasil, a avaliação econômica mais abrangente, publicada em 2021 [1], considerou os impactos de 16 espécies invasoras (incluindo algumas das espécies que mencionei anteriormente) de um total de 460 existentes no país, sendo, portanto, uma estimativa ainda conservadora dos reais custos. Esse estudo estima que, entre 1984 e 2019, foram gastos anualmente cerca de três bilhões de dólares no país. Esses custos recaíram principalmente sobre agricultura e saúde (sem contar custos compartilhados entre diversos setores). Obviamente, dada sua magnitude, esse custo econômico implica também em custos sociais.

 

 

IHU - Destaca-se com frequência os efeitos nocivos que as espécies invasoras geram em determinados ecossistemas. Ao mesmo tempo, cresce a preocupação ecológica de modo mais amplo, considerando todas as espécies. Nesse sentido, como tratar a questão das espécies invasoras a fim de evitar a invasão e a destruição de outras espécies, mas garantir, por outro lado, a proteção das que invadem?

 

Fernando Becker - Em princípio, espécies que estejam em uma dada região geográfica na condição de exóticas invasoras não necessitam de políticas ou ações de proteção. Isso ocorre justamente por elas serem a causa de problemas que podem elevar o risco de extinção de outras espécies e o aumento de desserviços ecossistêmicos (isto é, de modificações ambientais negativas sob a perspectiva humana, incluindo impactos sociais, econômicas e mesmo culturais). Eventualmente, pode acontecer de uma espécie ser concomitantemente ameaçada em sua região de origem, mas invasora em outras regiões; porém, esses casos são raros.

 

Nota:

 

[1] (Adelino JRP, Heringer G, Diagne C, Courchamp F, Faria LDB, Zenni RD (2021) The economic costs of biological invasions in Brazil: a first assessment. In: Zenni RD, McDermott S, García-Berthou E, Essl F (Eds) The economic costs of biological invasions around the world. NeoBiota 67: 349–374.  (Nota do entrevistado)

 

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