Nas raízes da crise ecológica. Artigo de Sergio Rondinara

Foto: Daniel Hannah | Pixabay

15 Junho 2022

 

Os trabalhos do 5º Halki Summit (Istambul, 8-12 de junho de 2022), simpósio internacional coorganizado pelo Patriarcado Ecumênico e pelo Instituto Universitário Sophia, concentraram-se na crise ecológica como desafio e como oportunidade, tanto para o caminho ecumênico quanto para o papel que as duas Igrejas – hoje impulsionadas e apoiadas pela sensibilidade convergente do Patriarca Bartolomeu e do Papa Francisco – podem desempenhar ativamente na virada que envolve toda a família humana.

 

As comunicações e os debates trouxeram à tona a consciência da urgência de desenvolver um ethos ambiental compartilhado, a necessidade de aprofundar os estudos interdisciplinares sobre a crise ecológica e a responsabilidade educativa das Igrejas (e das tradições religiosas) nesta virada epocal.

 

Retomamos a contribuição de Sergio Rondinara, professor de Epistemologia e Cosmologia no Instituto Universitário Sophia, na Itália, sobre a crise antropológica subjacente à crise ecológica que interpela as Igrejas e a humanidade.

 

O artigo foi publicado por Settimana News, 12-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

 

Começo esta reflexão sobre as raízes da crise ambiental levando em consideração algumas palavras expressadas pelo Papa Francisco na Laudato si’. Essa carta encíclica sobre o cuidado da nossa casa comum tem o mérito de retomar reivindicações centrais da doutrina social da Igreja em sintonia com algumas características do sentir contemporâneo a ponto de ser uma verdadeira operação de inculturação do Evangelho.

 

 

No número 101 lemos: “Para nada serviria descrever os sintomas, se não reconhecêssemos a raiz humana da crise ecológica.” Essa afirmação, nas suas poucas palavras, evidencia e sublinha o caráter antropológico da crise ambiental e a sua relevância. Gostaria de voltar a atenção justamente para esse aspecto.

 

Uma crise mais profunda

 

Se no passado a relação entre a pessoa humana e a natureza foi uma relação equilibrada e muitas vezes de colaboração, hoje ela assumiu uma configuração crítica a que comumente damos o nome de “crise ambiental”.

 

Com essa expressão expressamos com amargura aquela deterioração da relação entre a sociedade humana e o ambiente natural típica dos países industrializados, mas que já está se estendendo para todas as latitudes.

 

Tal crise ambiental remete a uma crise mais profunda que afeta a pessoa humana como um todo, isto é, uma crise antropológica. É o sinal de alerta de uma profunda crise antropológica filha de uma concepção específica que o ser humano moderno e contemporâneo tem de si mesmo. Um ser humano – e, portanto, uma humanidade – que, na busca da própria autorrealização, se conformou mais ao homo faber do que ao homo sapiens, e se autonomeou senhora absoluta do próprio destino e da natureza.

 

A crise ambiental, portanto, é uma crise antropológica, e em particular é uma crise semântica, uma crise de significados. Estamos perdendo cada vez mais a nossa capacidade de reconhecer e de dar significados duradouros – para além dos utilitários – aos objetos do mundo natural.

 

Pessoalmente, acredito – e aqui está a tese que proponho à atenção de vocês – que uma relação pessoa-natureza renovada e adequada aos dias de hoje passa necessariamente pela recuperação do significado das relações que ligam cada um de nós à própria natureza.

 

Como é possível recuperar o significado das relações que nos ligam à natureza? Essa interrogação é um desafio cultural não irrelevante, pois é preciso realizar uma pesquisa abrangente que nos mostre a riqueza semântica dos termos “pessoa”, “natureza” e das “relações” que existem entre eles.

 

Tal desafio, dada o porte cultural que envolve, só pode ser articulado em vários níveis do agir humano. Por exemplo, no nível antropológico cultural, no nível do pensamento, no nível ético e no nível religioso.

 

Esses vários níveis são igualmente caminhos para a recuperação dos significados que estamos buscando e, ao mesmo tempo, também são momentos igualmente de um caminho educativo pessoal e social a ser totalmente explorado. Detenho-me apenas no nível religioso, referindo-me ao momento cristão.

 

Recuperar os significados

 

A interrogação sobre como recuperar os significados – adequados para hoje – das relações que nos ligam à natureza é um desafio para o ser humano de que, na busca de uma relação adequada e renovada com a natureza, é chamado a fazer com que se torne cultura também aquele componente da mensagem revelada que diz respeito à nossa relação com o mundo natural.

 

Hoje, como nunca no passado, a questão ambiental apresenta-se como um lócus privilegiado onde a fé é diretamente interpelada e onde somos convidados a dar as razões da nossa esperança (cf. 1Pd 3,15).

 

No contexto atual, a fé cristã é interpelada não tanto a dar uma resposta apologética a quem acusou o cristianismo de ser a principal causa da atual crise ecológica, mas a fé é aqui posta em causa porque, para o fiel, a plena recuperação semântica das relações entre pessoa e natureza implica a redescoberta da própria relação com a natureza à luz de toda a relacionalidade presente na criação. Isso pode ser feito segundo a tríplice perspectiva da temporalidade: passado, presente e futuro; que, no horizonte da Revelação, se torna: passado protológico, presente histórico e futuro escatológico.

 

À luz dessa tríplice perspectiva, é possível obter uma ressemantização dos termos “pessoa humana” e “natureza”, e consequentemente a sua valorização. De fato, à luz da fé:

 

1) a natureza pode ser plenamente valorizada, pois se reconhece que ela, como criação, tem um valor em si mesma independentemente daquele que lhe é atribuído pelo ser humano; além disso, reconhece-se que na natureza há uma manifestação de Deus que é dom-de-Si (Rm 1,20), e desta se conhece o seu fim último: ser a base física para os novos céus e a nova terra profetizados por Isaías e anunciado no Apocalipse (cf. Is 66,22; Rm 8,22; 2Pd 3,13; Ap 21,1).

2) pode-se valorizar a rede das relações que a une a nós, pois adquirimos a consciência de que somos companheiros de viagem rumo à recapitulação final (Ef 1,3-10), em que Deus será tudo em todas as coisas (cf. 1Cor 15,24-28).

3) por fim, pode ser valorizado o papel criativo que a pessoa humana desempenha ao conduzir a natureza a Deus, pois ela se autocompreende como uma mediadora capaz de valorizá-la e guiá-la rumo a uma plenitude que ainda não possuímos e envolvê-la no desenvolvimento cultural da humanidade por meio do trabalho humano.

 

Qual antropocentrismo?

 

Neste ponto, porém, o pensamento cristão é chamado a recolocar com clareza, à luz dessa tríplice valorização e relativa semantização, a própria posição antropocêntrica derivada dos textos do Gênesis (Cf. Gn 1, em particular Gn 1,27-28; 2,15). Tal operação teria um grande significado cultural, especialmente em âmbito ético, no qual, hoje, a miríade de doutrinas sobre a ética ambiental se caracteriza essencialmente por abordagens de fundo totalmente contrastantes entre si.

 

A posição antropocêntrica, fortemente marcada pelo liberalismo econômico, tende a afirmar a diferença fundamental entre o ser humano e todos os elementos naturais que constituem o seu habitat. Na base dessa posição, está o pressuposto de que a pessoa humana tem um papel central dentro do mundo natural, e este último não possui um valor intrínseco próprio, mas possui apenas o valor que a própria pessoa lhe confere.

 

A segunda abordagem, a fisiocêntrica – marcada pelo pensamento ambientalista –, afirma a preservação da natureza independentemente dos interesses do ser humano. Este último, pertencente também à natureza como qualquer outro elemento biótico, deve viver em consonância com ela, conformando-se às suas leis.

 

Ora, como se disse, o pensamento cristão é convidado a redefinir o caráter do antropocentrismo dos textos do Gênesis. O que equivale a se perguntar: qual antropocentrismo para uma ética ambiental nascente em âmbito cristã?

 

Dimensão oblativa

 

A resposta só pode ser encontrada à luz do evento Cristo, coração da antropologia cristã. É esse evento que demarca a especificidade da ética cristã em relação à realidade natural. O evento Cristo realiza uma transformação radical da pessoa humana, pois, como afirma o apóstolo Paulo na Segunda Carta aos Coríntios: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. As coisas antigas passaram” (2Cor 5,17).

 

Ela é, portanto, uma criatura nova, não só porque foi resgatada da situação de não amor em que o pecado a havia relegado, mas porque o próprio ágape do Pai (isto é, o próprio Amor com que o Pai ama o Filho) foi derramado no seu coração, agora habita nele (cf. Rm 5,5) e o enche com o próprio Espírito de Deus.

 

Em Jesus, tornamo-nos realmente filhos no Filho, somos envolvidos na própria Vida de Deus, a ponto de que em nós habita o Espírito Santo que clama “Abbá, Pai” (cf. Rm 8, 15; Gl 4,6). Incorporados em Jesus e repletos do seu Amor, descobrimo-nos ligados por um profundo vínculo de unidade, descobrimo-nos “um” entre nós, pois somos “uma pessoa só em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Não somos mais indivíduos encurvados nas dimensões estreitas da nossa existência, mas, abertos ao Eu de Jesus, abrimo-nos também a todos os homens e mulheres; somos, como diz Cirilo de Jerusalém, consanguíneos e concorpóreos com Jesus e entre nós (Cat. Myst. 4,3; PG 33,1100).

 

Tornamo-nos, assim, fermento de unidade para toda a criação (humana ou não), tornamo-nos pessoas que compõem em unidade não só a própria dimensão interior e as várias expressões da vida humana (socialidade, política, ciências, economia), mas também os povos e as culturas; que preparam com o seu agir, por meio do próprio trabalho, o cumprimento do cosmos (cf. Rm 8,19-21).

 

Cultura do dom

 

Esse é o tipo de pessoa humana, nova criatura, que determina o tipo de antropocentrismo da ética cristã, um antropocentrismo crístico, um antropocentrismo oblativo, cujo peso ontológico, com grandíssima dificuldade, consegue ficar dentro das classificações fenomênicas das atuais análises filosóficas ou sociológicas.

 

Na relação com a natureza, há, portanto, uma pessoa humana que, ao realizar o dom-de-si, torna-se cada vez mais ela mesma, na medida em que vive como filha de Deus, vive em plena reciprocidade com os seus semelhantes, a ponto de ser com eles “um só coração e uma só alma” (At 4,32), e vive atraindo a humanidade e o mundo natural para a própria Vida de Deus.

 

No antropocentrismo oblativo, são salvaguardadas as peculiaridades da pessoa humana sem que ela degenere em uma autocompreensão hipertrófica do próprio “eu” e das próprias capacidades, mas funda em cada um e na sociedade uma cultura do dar-se, do dar a si mesmo.

 

Esta nada mais é do que a realização da tríplice vocação que, segundo o Gênesis, distingue o ser humano desde que Deus o criou: criou-o à sua imagem e semelhança (chamado à comunhão com Deus), criou-o na reciprocidade homem/mulher (chamado à comunhão com os outros seres humanos) e o criou e lhe confiou a terra (chamado à comunhão com o cosmos).

 

Mas é preciso que tudo isso se concretize no hoje, torne-se realidade na história dos nossos dias, e isso requer uma conversão ecológica, como nos lembram os proféticos ensinamentos do Patriarca Bartolomeu e do Papa Francisco (LS 217).

 

Conclusões

 

O desafio lançado pela crise ambiental exige e solicita um modelo antropológico (uma figura de homem e de mulher, um tipo de pessoa) – em grande parte ainda inédito hoje – em que a pessoa humana se autocompreenda nem como dominadora, segundo a perspectiva antropocêntrica, nem como um elemento biótico comum, segundo a perspectiva fisiocêntrica, mas como um sujeito consciente e responsável que faz parte da natureza, mas que, ao transcendê-la, se realiza existencialmente no seu dar-se, ou seja, na realização do dom-de-si para os seus semelhantes e para a realidade natural da qual ele também faz parte.

 

Portanto, trata-se de um modelo antropológico em que se passa de uma ótica predominantemente individual a uma ótica de comum-união, de uma ótica de grupo limitado a uma ótica de família humana global.

 

E aqui toda autêntica tradição religiosa e cultural é chamada a dar a sua contribuição.

 

Leia mais