A memória é minha missão. Entrevista com Liliana Segre

(Foto: Reprodução)

10 Junho 2022

 

A senadora Liliana Segre quase se surpreende com minha proposta de entrevistá-la e imediatamente expressa sua preocupação: sou judia e sou ateia, não sei que interesse posso despertar para um jornal como L'Osservatore Romano. Explico-lhe que o jornal da Santa Sé é um jornal curioso, que quer conhecer e dar a conhecer, compreender e possibilitar compreender tudo o que exprime a humanidade em todos os níveis, dimensões, origens. Um jornal que escolheu a linha do aprofundamento, tentando explorar os grandes nós da existência humana: o tema da memória é, portanto, incontornável. Ao fazê-lo, pronunciei a "palavra-chave".

 

A entrevista é de Andrea Monda, publicada por Vatican News, 08-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

“Eu pessoalmente, de um certo ponto da vida, fiz da memória a minha tarefa, a minha missão existencial. Porque eu ainda era criança quando fui expulsa da escola, um choque enorme me sentir excluída sem ter feito nada de errado. Comecei a perguntar, a atormentar todo mundo com os meus "por quês?" mas ninguém queria me responder. Todos na família estavam muito preocupados com minhas reações, então comecei a superar aquele que depois foi apenas o começo de todas as expulsões que recebemos a seguir. Aos poucos, mas cada vez mais, ouvi na família de primos, de outras pessoas que “partiam”, de vidas interrompidas... sim, porque às vezes se interrompiam e depois recomeçavam, mas algumas vezes se interrompiam definitivamente e alguém se suicidava, outros podiam se tornar até mais fortes com a interrupção, outros acabaram ficando insensíveis e jogaram tudo para trás.

 

Tive esse "começo" e depois fui seguindo o destino da minha família, ou seja, meu pai e meus avós, pois não tinha irmãos e minha mãe morreu quando eu tinha poucos meses. Estávamos, portanto, muito unidos, mas perdi todos eles tão cedo... em 1945, quando ainda não tinha completado 15 anos, todos meus parentes já haviam morrido. Eu era a única sobrevivente da família paterna junto com um tio que havia escapado a tempo. Depois me casei muito cedo e, aos 21 anos, já tinha um filho, que hoje tem 70 anos.

 

Confira a entrevista.

 

Quando você tomou a decisão de contar sua história?

 

Eu vivi minha vida por muito tempo, querendo primeiro aproveitar o presente. Eu estava muito apaixonada pelo meu marido Alfredo, que morreu há 14 anos. Então, por muito tempo eu não pensei na memória. Afinal, eu tenho minha memória presa ao meu braço, então não é como se ela pudesse escapar de mim, nem eu quero escapar porque eu sou aquela pessoa, não outra. Mas então algo mudou, por volta dos meus 60 anos. Quando me tornei avó. Compreendi que tinha sido, a contragosto, uma testemunha e, portanto, o seria para sempre. Naquele dia, 30 de janeiro de 1944, eu tinha subido naquele trem e minha vida mudou, o que mais eu podia fazer além de contar?”

 

Plataforma 21

 

Naquele trem, no dia seguinte ao encontro com Liliana Segre, eu também subi para visitar o Memorial do Holocausto na "plataforma 21" da Estação Central. Foi justamente a senadora que me convidou, me exortou a não perder a oportunidade agora que estava em Milão e organizou, com o excelente presidente do Memorial Roberto Jarach, uma visita guiada cujo momento mais intenso foi quando entramos em um dos aqueles vagões "de mercadorias", com argolas nas paredes para amarrar 8 cavalos (ou vacas) e, em vez disso, de janeiro de 1944 a janeiro de 1945 serviram para "hospedar" cerca de 80 seres humanos, para serem enviados aos campos de extermínio ou de prisão. Mais de 8 mil no espaço de um ano foram os homens e as mulheres, mais simplesmente "pedaços", empilhados e arrastados numa viagem da vida à morte. Do ponto de vista arquitetônico, o Memorial está muito bem organizado e terá uma nova inauguração no dia 14 de junho para a ampliação da biblioteca e outros espaços destinados a tornar este local não apenas um local de visita, mas também um local de estudo e reflexão. E é à luz dessa experiência "imersiva" feita no dia seguinte que revejo e releio a conversa que aconteceu na tranquila e ensolarada sala de estar da casa da senadora vitalícia.

 

A memória é a minha missão”, repete Liliana Segre com plácida firmeza, “o ponto central da minha vida, porque vi pessoalmente o que aconteceu e para mim tudo isto é inesquecível, sob todos os pontos de vista. É por isso que, com muita humildade, comecei a falar e só parei um ano e meio atrás, com o último encontro público na Cittadella di Rondine, em Arezzo. Na verdade, nem vou mais às escolas, já estou muito velha e não posso assumir novos compromissos. Decidi contar também pelos meus familiares, os homens da minha vida, meus avós, meu pai e depois meu marido e meus filhos... O "príncipe da memória" foi meu pai Alberto, em homenagem a ele e meus avós e tudo o que vi com os meus próprios olhos, decidi dedicar-me à memória”.

 

A sua missão não é simples, talvez não impossível, mas muito difícil. Porque o papel de sobrevivente é sempre incômodo, pungente (toda a literatura está impregnada desse gosto amargo, basta pensar na Odisseia). Quem volta pode contar o que viu com os próprios olhos, mas quem viveu a experiência muitas vezes não encontra as palavras e, por outro lado, os outros não conseguem encontrar a maneira certa de ouvir, entender e, portanto, a transmissão da memória é sempre frágil, fragmentada, precária.

 

Sim, frágil e difícil, mas necessária. Afirmo que sou uma pessoa muito realista e pessimista. Muitas vezes reflito sobre a tragédia dos armênios que estudei um pouco e devo dizer que, depois de um século, pensei que alguém ainda poderia saber algo sobre essa tragédia e, em vez disso, ninguém mais sabe nada sobre os armênios. Daí o meu pessimismo, mesmo sobre o Holocausto. Parece que a história nunca ensina nada ao ser humano, basta ver o que chega, todos os dias, do front da guerra na Ucrânia e o horror das coisas que estão sendo descobertas: homo homini lupus parece um destino inevitável. Com pouca, aliás, pouquíssima esperança, então tento fazer o que considero que é a coisa certa. Contar. Acho que não tenho escolha, não posso fazer de outra forma, além de ter me tornado uma das poucas remanescentes, mas tudo isso me sobrecarrega. Não é fácil contar, é verdade; tentei ser seguidora de Primo Levi que nunca usou palavras difíceis e sempre usou uma linguagem plana (e foi traduzido em todo o mundo). Procedemos assim, a pequenos passos, mas depois, sabemos: tudo desaparece. E na vida os vazios são preenchidos, como na física. Hoje é a vez dos influencers que também têm dezenas de milhões de seguidores… Esses são os deuses atuais, os heróis do momento, prontos para declinar e serem substituídos.

 

A senadora me oferece uma bebida, nos distraímos por um momento e me conta sobre a casa em que ela mora, que há anos pensava em trocar:

 

Antes da morte de Alfredo, meu marido, eu pensava que, como viúva, eu sairia desta casa, mas devo dizer, eu não pensava em ficar viúva, e disse a ele: "você não deve me deixar sozinha"; em vez disso, fiquei aqui. Entre filhos e netos sempre tem alguém que vem me visitar e quando estamos à mesa eu sempre sento no lugar do meu marido... depois de 70 anos juntos, pode imaginar, assim não sinto falta dele, o lugar vazio é o meu. Meu marido era um crente católico, minha sogra, uma mulher maravilhosa, era uma franciscana terciária. Quando ela morreu Alfredo manteve um pouco daquela fé de criança, que talvez seja a mais bonita, e ele sempre me dizia “vou rezar por você que não tem fé”, talvez agora ele esteja rezando.

 

Vamos recomeçar com os netos: especialmente nos últimos anos você tem falado muitas vezes com os jovens, por quê?

 

Os adultos me parecem indiferentes, o que para mim é a pior atitude. Os que hoje são adultos atravessaram o século sem compreender, entender a história, basta ver quem são nossos representantes; em vez disso, sinto estima e esperança pelos jovens. Vejamos o que aconteceu depois da guerra: apenas a busca por dinheiro, para ficar rico e aparecer. Há todo um mundo que quer aparecer, talvez mais do que em Milão em Roma, onde só conta se você é conhecido e se conhece "alguém". Enfim, por uma série de motivos, privilegiei o contato com os jovens, e aí tudo se acelerou quando comecei a falar, quando me tornei avó.

 

O Papa Francisco muitas vezes espera que avós e netos conversem entre si, que os netos aproveitem a memória e o tesouro da experiência de seus avós, assim como os avós se regeneram no diálogo com os netos.

 

É muito verdadeiro e bonito. Eu penso em minha experiência como criança e depois como mulher. Os "projetos" eram que eu tinha que morrer e só por acaso não morri, justamente como em uma "porta de correr" me vi caminhando na beira do abismo e não caí, não porque eu fosse boa ou inteligente, mas por puro acaso. E em vez disso eu sobrevivi. Então eu também me casei e todos na família achavam que eu não poderia ter filhos porque quando eu estava em Auschwitz eles nos davam como ração, igual para todos, uma preparação à base de bismuto que causava a interrupção da menstruação. Fiquei quase dois anos sem menstruar, primeiro pelo medo, depois pelo bismuto, depois pela magreza absoluta e tudo o que tínhamos visto e sofrido. Quando saí de lá, a menstruação começou de novo, mas temia pela minha fertilidade. Mas tive três filhos e depois me tornei avó. Muito além da minha "esperança de vida", assim se dizia na época. A vida, isso conta, sempre falei da vida aos jovens, nunca da vingança. Escolham a vida! Eu sempre disse a eles, meu jeito de falar com os garotos nunca foi de ódio ou vingança, mas de saber fazer uma escolha. A vida e, portanto, a escolha. Na entrada da plataforma 21, no Memorial o Holocausto, quis que essa palavra fosse gravada em letras grandes: INDIFERENÇA. Para mim, a indiferença mata mais do que a violência.

 

Como esses jovens respondem? Como você vê essa geração?

 

Mais sozinha e mais frágil. Eu os vejo ali, com os olhos no celular, o que lhes dá a sensação de que resolveram todos os seus problemas. Como se naquele dispositivo pudessem encontrar todas as respostas, todas as soluções; nisto vejo o risco de uma autossuficiência que pode levar à indiferença. Isso os leva a uma fragilidade que depois a vida traz à tona, inclusive de forma dura.

 

O que pode ser feito para ajudá-los?

 

Também é muito difícil porque existem grandes problemas do ponto de vista econômico e de trabalho. Muitos empregos hoje podem ser substituídos pela robótica e isso pode aumentar o desemprego e, portanto, o desespero. Você pode talvez contar sua história, sua experiência pessoal, esperando que desperte interesse, paixão. Mas não é fácil, hoje nada mais parece agregar, certamente não a política ou a religião, talvez aquela estranha "religião" que é o futebol. Há poucos dias pelo campeonato vencido pelo Milan, a cidade quase enlouqueceu.

 

A memória também tem a ver com o acolhimento. No chamado "credo de Israel", no capítulo 26 de Deuteronômio, é dito que o judeu deve sempre lembrar e repetir estas palavras "Meu pai era um arameu errante...". A memória mantém viva no coração a consciência de que somos todos filhos de pessoas que migraram, que receberam hospitalidade ou abusos nos lugares por onde passaram. Você não acha que a recuperação da memória pode ajudar a enfrentar o problema dos migrantes de forma mais humana?

 

Concordo e o Papa faz bem em recordar constantemente esse risco. A isso acrescento outro, o fato de que as migrações, trazendo novas culturas e novos costumes, acabam fortalecendo enormemente os partidos nacionalistas. Fico feliz em ressaltar que sou grande amiga e partilhei muitas iniciativas com a Comunidade de Sant'Egídio e, por isso, estou feliz por o papa ter eleito o Pe. Matteo Zuppi como Presidente da Conferência Episcopal. Outra belíssima realidade que vai na mesma direção do acolhimento e da integração é a da Cittadella di Rondine, criada por Franco Vaccari. Tenho um bom relacionamento com ele a ponto de querer me despedir das atividades públicas justamente ali. Talvez aquela de Rondine seja apenas uma utopia, mas também precisamos de utopias”.

 

E além disso, como dizia Nelson Mandela: “se você pode sonhar, você pode realizar”.

 

E ele dizia isso na prisão, graças à sua força mansa. Ele foi capaz de perdoar. Eu não.

 

No entanto, a senhora ensina os jovens a não seguir o ódio e a vingança.

 

Eu sempre disse a eles: "vamos escolher a vida". Sim, nunca ensinei ódio ou vingança, mas isso não significa que eu, pessoalmente, tenha perdoado. Não, eu não perdoei, mesmo que às vezes escrevam que eu perdoei (quem se importa em saber?); mas é assim: as coisas que eu vi, que foram feitas não só à minha família, mas a milhões de pessoas pela única culpa de ter nascido, porque essa é a culpa, pois bem, por tudo isso eu não fui e não estou disponível para o perdão. Sinto muito, eu gostaria de poder, mas não consigo.

 

O que é Deus

 

Termino esta reportagem no trem que me leva de volta a Roma e tenho diante dos olhos o trem que levou Liliana Segre a Auschwitz em 30 de janeiro de 1944. Entrei naquele vagão no Memorial do Holocausto e logo em seguida, na sala ao lado, vi, muito rapidamente, um vídeo em que a própria senadora vitalícia mostra aquele lugar para uma jovem de treze anos, da idade que ela tinha naquele frio dia de janeiro. Pude assistir apenas alguns minutos e fiquei impressionado com o gesto, repetido várias vezes, da senadora que abraçava e acariciava o rosto de sua jovem interlocutora, com ternura. E me lembrei do primeiro episódio do Decálogo de Krzysztof Kieslowski, dedicado ao primeiro mandamento. O protagonista é uma criança que perdeu a mãe e tem um pai, racionalista e ateu, que, ao ser questionado sobre Deus pelo filho, explica que Deus não existe. A criança o escuta com atenção; depois se confidencia com a tia, irmã da mãe, crente, e lhe faz a mesma pergunta: o que é Deus? A tia fica quase atrapalhada, parece não saber responder. Então abraça o sobrinho e sussurra: "Isto é Deus".

 

 

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