Dos “sinais” à “glória”: Johan Konings, ouvinte e servidor da Palavra

Johan Konings | Foto: abliblica.org

27 Mai 2022

 

"O testemunho da experiência de quem conviveu com Konings é a expressão do que foi a sua vida, profundamente modelada por aquilo ao qual mais se dedicou: escutar e servir à Palavra, que, no evangelho de João, ao qual consagrou grande parte de suas investigações, ensinamentos e escritos, é uma Palavra feita carne. O término de uma vida, sobretudo tão fecunda e com tantas contribuições à teologia do Brasil, levanta a questão de seu legado".

 

O artigo é de Geraldo De Mori, SJ, professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.

 

 

Eis o artigo. 

 

“Foi este o início dos sinais que Jesus fez, em Caná da Galileia. Manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele” (Jo 2,11)

 

No dia 21 de maio morreu, em Belo Horizonte, o jesuíta belga Johan Konings, depois de ter vivido cinquenta anos no Brasil, inicialmente como padre fidei donum, ensinando exegese bíblica na PUC RS (1972-1982) e na PUC Rio (1984), assessorando o Movimento Cristão Universitário (MCU), e, a partir de 1986, ainda como noviço jesuíta, ensinando na Faculdade de Teologia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus (CES), nome eclesiástico do que, desde 2002 é a Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).

 

Diretor da Faculdade de Teologia (1994-1999) e reitor do CES (1999-2002), consagrou seus muitos talentos e sua exímia formação, feita na prestigiosa KU Leuven (Bélgica), a atividades acadêmicas, pastorais e editoriais.

 

Combinou a docência, feita de ensino, pesquisa, orientação de estudantes, com a capacidade de levar adiante projetos de longa duração, como o da tradução oficial da bíblia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a assessoria a Edições Loyola, sobretudo nas coleções Bíblica Loyola e Bíblia Passo a Passo, sem contar a tradução do Compêndio de símbolos, definições e declarações de fé e moral, de Denzinger/Hünernan, a edição de uma Sinopse dos Evangelhos e a editoria adjunta de Theologica Latinoamericana. Enciclopedia digital, iniciativa editorial da FAJE, em parceria com a PUC-Rio, a Unisinos, a Unicap e a Pontificia Universidad Javeriana (Colômbia).

 

Sabia como ninguém conjugar as exigências da vida acadêmica com a pastoral e as inúmeras amizades que estabeleceu ao longo da vida, sempre fiel e atento a cada uma.

 

O fim temporal de uma história de vida suscita sempre um ato de memória, que, através de imagens e palavras, busca recolher o que significou essa história para quem dela participou. Dentre as imagens ou expressões utilizadas para falar de Konings desde que partiu, se destacam as da “sabedoria”, “simplicidade”, “bom humor”, “amizade”. Sem sombra de dúvidas, os que tiveram a graça de conviver com ele podem oferecer inúmeros testemunhos de sua capacidade de valorizar cada um, tanto do ponto de vista acadêmico quanto humano, de sua fidelidade às amizades, da fineza do trato, do gosto pelas coisas do Brasil, que conhecia como ninguém, não só nas diversas nuances da língua, mas também na forma como apreciava seus sons, seus sabores, cheiros e gestos.

 

O testemunho da experiência de quem conviveu com Konings é a expressão do que foi a sua vida, profundamente modelada por aquilo ao qual mais se dedicou: escutar e servir à Palavra, que, no evangelho de João, ao qual consagrou grande parte de suas investigações, ensinamentos e escritos, é uma Palavra feita carne. O término de uma vida, sobretudo tão fecunda e com tantas contribuições à teologia do Brasil, levanta a questão de seu legado. Essa questão, que em outras latitudes é muito valorizada, provavelmente nunca passou pela cabeça do jesuíta belga, que não possuía nenhuma vaidade acadêmica e nenhuma tentação de autorreferencialidade. Uma vez concluída sua trajetória humana, os que por ela foram afetados ou beneficiados, podem, no entanto, propor algumas chaves para relê-la, pois, uma vez completada, a vida de certas pessoas se torna uma espécie de monumento ou texto e se presta à interpretação, mas igualmente, e, talvez, sobretudo, à ação de graças, por ter sido por ela beneficiado.

 

A vida acadêmica de Konings foi marcada principalmente por três grandes focos de interesse, com suas atividades: os escritos joaninos, a tradução, a questão pedagógica.

 

As pesquisas de mestrado e doutorado de Konings, feitas na KU Leuven, sob a orientação do eminente filólogo Frans Neirynck, foram sobre o evangelho joanino. Nas várias instituições em que ensinou no Brasil, além dos escritos joaninos, também ofereceu cursos sobre os evangelhos sinópticos, Marcos, Quelle, Cartas Católicas e Hebreus. Publicou vários livros sobre esses escritos, além de obras de introdução às Sagradas Escrituras.

 

Johan Konings (Foto: Diocese de Luz)

 

Sua grande paixão, porém, foi sempre o Quarto evangelho, cujo conhecimento compartilhou de muitas maneiras com diversos públicos. Além de seus próprios comentários, incentivou a tradução dos comentários de outros exegetas importantes, como o de Johannes Beutler, publicado pelas Edições Loyola, em 2016. Dentre as chaves de leitura que propunha para familiarizar-se com o evangelho de João, a articulação entre “livro dos sinais” (Jo 1-12) e “livro da glória” (Jo 13-20), merece um destaque particular.

 

Também apontava as características literárias do texto, a saber, o gênero narrativo-dramático, os diálogos e discursos de revelação, o autocomentário, o simbolismo e a metáfora, a polissemia e a ironia, dando especial atenção para seu caráter semítico e para a relação que estabelecia com o judaísmo veterotestamentário, além de mostrar suas diferenças e relações com os demais evangelhos sinópticos (Evangelho segundo João | Theologica Latino Americana).

 

O percurso iniciático do evangelho de João, que passa pelos “sinais”, grande parte dos quais relacionados à experiência sacramental, batismal e eucarística, só são plenamente revelados no “escândalo” da cruz, apreendida, porém, como lugar da exaltação ou da “glória”, por ser a máxima expressão da manifestação do amor de Deus pelo mundo, dando-lhe “seu Filho Unigênito [...] para que o mundo seja salvo por meio dele” (Jo 3,16. 17), mas também como a máxima revelação de uma vida que se dá “livremente” (Jo 10, 18), como sinal do amor de quem “dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). A revelação da “glória”, preparada pelos “sinais”, é, ao mesmo tempo, um caminho cristológico, ou seja, aponta o caminho do conhecimento da Palavra feita carne em Jesus de Nazaré, e um caminho soteriológico, ou seja, conduz do conhecimento de Jesus, como “Cristo, o Filho de Deus”, à fé nele, para que quem nele crê tenha a vida em seu nome (Jo 20,31).

 

O itinerário iniciático do evangelho joanino é, sob certo ponto de vista, uma retomada aprofundada e “mística” do querigma neotestamentário. Na obra Sobre a Palavra de Deus. Hermenêutica bíblica e teologia fundamental, publicada em 2012, organizada pela FAJE em homenagem aos 70 anos de Konings, mas tendo como eixo estruturante a Exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XVI, Konings escreveu o capítulo “A Palavra de Deus entre a letra e o espírito”, que recolhe sua experiência de tradutor, à qual dedicou grande parte de sua atividade acadêmica, e que, no fundo, indica o caminho de todo “escriba que se torna discípulo do reino dos céus”, que sabe tirar de seu “tesouro coisas novas e velhas” (Mt 13,52).

 

Nesse caminho é necessário saber articular o trabalho sobre a “letra” das Escrituras e seu “espírito”. Segundo Konings, o trabalho sobre a “letra” é o que é realizado pela análise histórico-literária, que mostra “as possibilidades de abertura intrínsecas, inerentes à estrutura geradora de sentido do texto”. Porém, esse trabalho, indispensável, é insuficiente. Com efeito, o trabalho sobre a “letra” corresponde ao “conjunto de textos que devem ser examinados em sua condição histórica e literária”. Por um lado, ele mostra “como, em que contexto e condições e mediante que processos esses textos nasceram”, e por outro, que significados geram mediante o uso concreto de seu código. Tudo isso é letra, mas sem o trabalho de apropriação pelo leitor, é “material morto, que só se torna vital quando o leitor o assume no sentido que ele dá à própria vida” (KONINGS, 2021, p. 16).

 

Os muitos anos que consagrou à “letra”, sobretudo através do trabalho de tradução, embora considerado por ele como “material morto” sem o trabalho de interpretação, que “fecha” o círculo hermenêutico, não pode ser ignorado. Prova disso é seu trabalho junto ao projeto de tradução oficial de uma bíblia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Várias traduções já tinham sido feitas no Brasil no decorrer do século XX, como a da Liga de Estudos Bíblicos, que circula sob o nome “Mensagem de Deus”, a bíblia da Vozes, a bíblia de Jerusalém, a bíblia pastoral, a bíblia sagrada de Aparecida, a bíblia do Peregrino, a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), sem contar a tradução de Almeida, no mundo protestante.

 

O projeto da (CNBB) contou, desde o início, com a dedicação incansável de Konings. Sua enorme capacidade de trabalho, suas experiências anteriores de acompanhamento de traduções de obras importantes para Edições Loyola, seu conhecimento profundo da língua portuguesa do Brasil, sua facilidade em trabalhar em equipe, foram fundamentais na execução do projeto, que durou vários anos, sendo concluído em 2018. Esse texto, “oficial”, será a referência de todos os documentos emitidos pela CNBB, como também dos textos litúrgicos e catequéticos. A maioria das introduções e das notas explicativas dos diversos livros que compõem a bíblia da CNBB são de autoria do exegeta belga. Como ele mesmo reconhece, as escolhas dos termos já é interpretação e visam, em grande parte, familiarizar o leitor com a “letra”. A passagem da “letra” ao “espírito” é, porém, trabalho a ser feito por cada leitor ou cada comunidade leitora. Esse trabalho não poderá ignorar a “letra”, mas somente se a “letra” cavar no leitor/ouvinte um sulco, seu “espírito” realmente fará nascer algo novo, que certamente produzirá fruto, pois o próprio da Palavra divina é não voltar vazia para Deus, mas realizar aquilo que ele decidiu (Is 55,11).

 

Johan Konings (Foto: CNBB)

 

O caminho que vai da “letra” ao “espírito” sempre preocupou o exegeta belga. Como ele diz na entrevista concedida a Graziela CruzJohan Konings, 80 anos: o homem, o biblista, o professor”, que constitui um dos capítulos da obra com a qual foi homenageado por ocasião de seus 80 anos, desde quando estudava teologia já fazia comentários sobre os textos da liturgia dominical. Tais textos, organizados num ciclo de três anos (A, B, C), oferecem uma “mesa ricamente preparada”, com uma “variedade de assuntos e abordagens que tocam em todos os aspectos da vida” (CRUZ, 2021, p. 309).

 

A bíblia, observa ele, constitui uma “grande paideia”, uma instrução para o povo de Israel e depois para sua extensão que é o cristianismo. E para todos” (CRUZ, 2021, p. 308). Essa “paideia” é uma sabedoria de vida e orientação para a felicidade. Porém, muitos a veem somente como um “código penal”. Ela é, porém, a “memória do povo, de sua experiência de Deus em sua caminhada. Por isso não pode se tornar um domínio fechado, acessível só para especialistas” (CRUZ, 2021, p. 309). É preciso “restituir a bíblia ao povo”. A missa e o culto dominical oferecem uma “audiência invejável”, embora mal aproveitada, não tanto porque os textos sejam difíceis, mas porque não se oferece ao povo a oportunidade de fazer o caminho da “letra” ao “espírito” dos textos litúrgicos.

 

As milhares de horas que consagrou à “letra” da bíblia e as diversas propostas que elaborou para que o povo pudesse ter acesso a seu “espírito”, formam, portanto, os dois polos fundamentais para se entender a grande contribuição de Konings para a teologia e a pastoral da Igreja católica no Brasil. Retomam, sob certo ponto de vista, o percurso do “livro dos sinais” ao “livro da glória”. Dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo de Belo Horizonte e Presidente da CNBB, na homilia da missa de exéquias do do Konings, afirmou que seu grande legado para a Igreja foi a tradução oficial da bíblia da CNBB. Como um são Jerônimo, para a Vulgata, seu trabalho, no qual colaboraram muitos outros exegetas brasileiros, marcará profundamente o anúncio da fé feito pela Igreja católica nas próximas décadas. Seu esforço em oferecer pistas de acesso ao “espírito” da “letra” com a qual conviveu durante grande parte de sua vida, é uma provocação à teologia preocupada com a formação na fé de todos os que são tocados pela Palavra, para que ela produza frutos abundantes: “cem, sessenta, trinta” (Mt 13,23).

 

Referências

 

KONINGS, J. A Palavra de Deus entre a letra e o espírito. Em GASDA, E. Sobre a Palavra de Deus. Hermenêutica bíblica e teologia fundamental. Goiânia/Petrópolis: Editora PUC Goiás/Vozes, 2012, p. 11-22.

KONINGS, J. Evangelho segundo João. Em Theologica Latinoamericana. Enciclopédia Digital (Evangelho segundo João | Theologica Latino Americana (teologicalatinoamericana.com). Acesso, 25/05/2022.

CRUZ, G. Johan Konings, 80 anos: o homem, o biblista, o professor. Em RIVAS, E.; TAVARES, S. Educação: distopias e veredas. Homenagem a Johan Konings por ocasião de seus 80 anos. São Paulo: Loyola, p. 305-313.

 

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