O impacto da guerra da Ucrânia sobre o processo sinodal. Artigo de Massimo Faggioli

Papa Francisco. Foto: Paul Haring | CNS

18 Abril 2022

 

“O ataque de Putin contra um país soberano nos ajuda a perceber o que podemos e não podemos esperar em termos de participação no processo sinodal dos católicos na Ucrânia, mas também daqueles em outras áreas devastadas pela guerra ao redor do mundo. Eles não podem oferecer uma síntese bem elaborada de sessões de escuta. Sua contribuição será de outro tipo: menos quantificável, mais mística. Seu sofrimento pode ensinar uma grande lição sobre o que significa ser Igreja no mundo de hoje. E a sinodalidade também significa que nós, católicos, devemos descobrir como podemos “caminhar juntos” com a Igreja na Ucrânia neste momento terrível”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor na Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 12-04-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

 

Eis o artigo.

 

A primeira baixa da guerra é a verdade, e a guerra na Ucrânia criou uma mentalidade que inevitavelmente terá um impacto sobre o “processo sinodal” que está ocorrendo na Igreja Católica.

Encontro, escuta e discernimento são muito mais difíceis em tempos de guerra – e ao mesmo tempo são mais urgentes.

Mesmo antes do início da invasão russa à Ucrânia em 24 de fevereiro, o processo sinodal estava apresentando a Igreja com problemas incomuns.

Por exemplo, o Caminho Sinodal ocorrido na Alemanha estava sendo atacado há meses por vários bispos das diferente partes do mundo – indivíduos como o arcebispo Samuel Aquila, de Denver, EUA, e conferências episcopais inteiras, como da Escandinávia e Polônia.

E só nesta semana 74 bispos de todo o mundo – incluindo 49 dos Estados Unidos – assinaram “uma fraternal carta aberta”, dizendo aos alemães que o Caminho Sinodal está causando confusão e pode levar ao cisma.

A guerra na Ucrânia mudou dramaticamente o humor na Igreja desde o ponto de vista do contexto político internacional.

Os encontros sinodais e conciliares na Igreja Católica tem sempre interagido com conflitos armados. Suas agendas não estiveram imunes dos efeitos da turbulência na ordem internacional.

 

Encontros da Igreja moldados pelos eventos do seu tempo

 

Basta olhar para os últimos dois séculos. O Concílio Vaticano I (1869-1870) foi suspenso, efetivamente interrompido, pela guerra que levou à captura de Roma pelo reino italiano em setembro de 1870.

Preocupações com a segurança, tanto interna quanto internacionalmente, dissuadiram Pio XI e Pio XII de convocar novamente um concílio geral na década de 1920 e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial.

O Vaticano II (1962-65) teria sido interrompido se a crise dos mísseis de Cuba em outubro de 1962 se transformasse em um confronto nuclear entre as duas superpotências, os EUA e a URSS.

Os concílios gerais ou ecumênicos não são como os sínodos em nível diocesano e nacional, e existem alguns precedentes aqui. Por exemplo, o movimento sinodal no final do século XVIII foi interrompido pela Revolução Francesa. Após a queda de Napoleão, a ordem política pré-existente e a consolidação do poder papal foram restauradas.

Um dos muitos paradoxos dos ataques anticlericais entre o final do século XVIII e o início do século XIX é que tornou a Igreja Católica mais papal e menos sinodal, como deixaram claro as definições do Vaticano I.

O processo sinodal 2021-2023 abriu a Igreja para uma de suas experiências historicamente mais importantes de encontro com seus membros nos níveis local, nacional e global. Mas chega em um momento em que os temores de uma guerra nuclear estão no auge desde a crise dos mísseis em Cuba, sessenta anos atrás.

 

Choques e confrontos

 

A novidade é que o futuro do que parecia ser uma ilha de paz em um mundo conturbado – isto é, a Europa – parece tão incerto quanto desde a Segunda Guerra Mundial.

Em um interessante artigo publicado recentemente na Bloomberg, John Micklethwait e Adrian Wooldridge (dois jornalistas também com um olhar aguçado para as relações entre religião e política) escreveram o seguinte:

 

Na grande batalha intelectual da década de 1990 entre Francis Fukuyama, que escreveu O Fim da Históra e o Último Homem (1992), e seu professor de Harvard Samuel Huntington, que escreveu O Choque de Civilizações (1996), os CEOs geralmente ficaram do lado de Fukuyama”.

 

A visão da direção tem sido direta: a democracia nem sempre vencerá (a China ensinou aos capitalistas tão rapidamente), mas a economia sensata geralmente vencerá.

Mas no final do parágrafo, Micklethwait e Wooldridge chegaram a esta conclusão: “Os capitalistas são todos huntingtonianos agora”.

O papado pós-conciliar moderno está, por padrão, incorporando uma visão que não é o “choque de civilizações” de Huntington. Mas a virada para uma visão de confronto das relações entre povos e culturas não está deixando os católicos milagrosamente inalterados.

 

Uma escalada na globalização das “guerras culturais” americanas

 

No coração de muitos católicos locais, que agora devem “caminhar juntos” com seus irmãos e irmãs na fé e na única família humana, há medo. O que eles ouvem em suas igrejas às vezes está em contraste, às vezes em uníssono com as batidas dos tambores da guerra.

A sinodalidade deveria ser um antídoto para a criação de posições arraigadas na Igreja, a incapacidade de dialogar e trabalhar em conjunto. Mas atualmente há uma escalada na globalização das “guerras culturais” americanas.

Temos visto sintomas disso nas últimas semanas.

Além da oposição sem precedentes que o Papa Francisco vem enfrentando há muito tempo dos neotradicionalistas, a guerra na Ucrânia criou outras vozes de oposição a ele por causa de sua decisão de não apresentar mais explicitamente que Putin e a Rússia são inimigos religiosos.

As críticas não vêm da habitual cabala dos tradicionalistas norte-americanos e suas franquias internacionais, mas de forma mais sutil de outros círculos, mesmo na Europa.

Durante uma guerra, a ordem democrática liberal é temporariamente suspensa e são aprovadas medidas extraordinárias que ampliam significativamente os poderes do Estado e limitam os direitos da população.

 

O clima social, cultural e político da época

 

A Igreja Católica não é uma democracia liberal, e a sinodalidade não deve transformar o sistema eclesial em uma democracia. Mas há semelhanças entre os efeitos da guerra na democracia e na sinodalidade na Igreja, entre a crise do ethos democrático e também do ethos sinodal.

O foco está mais na liderança forte do que na agência e responsabilidade das pessoas. A propaganda substitui a verdade. O “outro” está sujeito a um processo de construção da imagem do inimigo.

A sinodalidade deve tornar a Igreja Católica mais dialógica internamente e com outras Igrejas. Mas tanto em nível local quanto internacional, as relações ecumênicas com as Igrejas Ortodoxas (e dentro da própria Ortodoxia) estão agora em seu nível mais baixo em muito tempo.

Do ponto de vista histórico, os estudiosos dos concílios e sínodos sabem que tais eventos eclesiais só podem ser compreendidos incluindo o clima social, cultural e político da época. Também estamos aprendendo a incluir as vozes daqueles que não puderam estar presentes pessoalmente ou como personagens-chave do evento (por exemplo, mulheres no Vaticano II).

Precisamos fazer isso agora e nos próximos anos para o “processo sinodal”.

 

Em que os católicos em situações de guerra podem contribuir para o processo sinodal?

 

Em certo sentido, haverá muitas vozes ausentes do processo sinodal de 2021-2023 também devido à guerra, mas elas ainda precisam ser ouvidas.

Em outro sentido, o processo sinodal é a continuação da eclesiologia do Vaticano II. Mas este momento também marca o fim da era do Vaticano II, daquela visão de mundo pós-Segunda Guerra Mundial que anseia pelo fim da Guerra Fria.

Do ponto de vista teológico, é verdade que a sinodalidade não é um conceito novo, mas encontra suas raízes mais profundas na antiga tradição da Igreja.

Mas devemos lembrar que a sinodalidade hoje está se desenvolvendo em uma Igreja Católica que é mais global, menos identificável com uma área particular do mundo que domina as outras eclesial e eclesiasticamente.

O ataque de Putin contra um país soberano nos ajuda a perceber o que podemos e não podemos esperar em termos de participação no processo sinodal dos católicos na Ucrânia, mas também daqueles em outras áreas devastadas pela guerra ao redor do mundo.

Eles não podem oferecer uma síntese bem elaborada de sessões de escuta. Sua contribuição será de outro tipo: menos quantificável, mais mística. Seu sofrimento pode ensinar uma grande lição sobre o que significa ser Igreja no mundo de hoje.

E a sinodalidade também significa que nós, católicos, devemos descobrir como podemos “caminhar juntos” com a Igreja na Ucrânia neste momento terrível.

 

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