Onde estás, Lisístrata? Artigo de Anita Prati

Foto: Maite Oz | Flickr CC

16 Março 2022

 

Todas as guerras são iguais – as mesmas razões, as mesmas falsidades. A Guerra do Peloponeso assim como a guerra na Ucrânia. Dois mil e quinhentos anos de história, e nada mudou.

 

A reflexão é de Anita Prati, professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior “Francesco Gonzaga”, em Castiglione delle Stiviere, Itália. O artigo foi publicado por Settimana News, 13-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

 

As guerras eclodem em um instante, mas vêm de longe. Tucídides (c. 460-403 a.C.), o grande historiador da grande guerra do Peloponeso, sabia bem disso.

 

Uma guerra grande em duração – 26 longuíssimos, intermináveis anos, de 431 a 404 a.C.; e grande e grave pelas suas consequências para a vida dos indivíduos e a existência e os equilíbrios entre os Estados que, de vários modos e de várias formas, se viram envolvidos no conflito.

 

A Guerra do Peloponeso

 

O primeiro dos oito livros que compõem a obra de Tucídides é dedicado à análise das causas que levaram ao desencadeamento das hostilidades entre as duas grandes superpotências da época, Esparta e Atenas.

 

Mas desembaraçar a meada dos fatos anteriores é trabalhoso até mesmo para um analista especialista em política e em fatos de armas como Tucídides. Dedicam-se páginas e páginas para apresentar as motivações ocasionais e remotas da conflitualidade que fez a Grécia mergulhar em uma espiral sangrenta de violência fratricida por quase 30 anos.

 

O prelúdio da grande guerra é remoto também no plano geográfico. Porque, se a guerra se chama “do Peloponeso”, é “em outro lugar” que as hostilidades começam.

 

Devemos nos voltar para o Ocidente, para a costa da atual Albânia, na cidade que hoje se chama Durrës e que, na época, se chamava Epidamno, cidade fundada por colonos de Córcira (hoje Corfu), fundada por sua vez por colonos de Corinto.

 

Tucídides nos explica que um dos prenúncios da guerra do Peloponeso foi o conflito que começou entre corciranos e coríntios pela ampliação da sua própria esfera de influência sobre a cidade de Epidamno (traduzindo: batalha naval, navios destruídos, soldados mortos, capturados, reduzidos à escravidão).

 

Atenas assinou uma aliança com Córcira em função defensiva contra Corinto. As tramas das hostilidades se alargaram e se adensaram; do ocidente, elas se deslocam para o oriente, na península calcídica. Batalha de Potidea, mais mortos. E depois bloqueios navais, novas tropas para contratar, cidades que se insurgem, cidades sitiadas, privadas dos bens alimentícios, arrasadas. E milhares e milhares de pessoas forçadas a fugir das suas casas. E deportações e violências. Tudo isso “antes” da eclosão da guerra.

 

Os fatos e as causas

 

No primeiro livro da Guerra do Peloponeso, Tucídides reconstrói na sua concatenação causal e analisa com rigor científico os fatos que levaram ao desencadeamento dessa autêntica guerra “mundial”, envolvendo a maior parte da humanidade [1].

 

As motivações das partes são, por assim dizer, iluminadas a partir de dentro, através da sua apresentação sob a forma de discursos diretos proferidos pelos diversos protagonistas do debate político e militar que precedeu e acompanhou a guerra em todas as suas fases. Um livro inteiro para contar os fatos prévios, e duas breves e lapidares passagens para selar o julgamento sobre as causas profundas do conflito.

 

No capítulo 23: “Estou convencido de que a motivação mais autêntica, a que menos transparecia a partir dos discursos oficiais, era o formidável poder alcançado por Atenas e a apreensão que daí derivava para Esparta”.

 

E no capítulo 88: “A votação espartana sobre os pactos a serem considerados dissolvidos e sobre a guerra a ser travada não surgiu do trabalho de convicção dos aliados, mas da apreensão suscitada pelo poder ateniense, em constante desenvolvimento. Eles viam que Atenas tinha suas mãos sobre a maior parte da Grécia”.

 

Expansionismo econômico e militar por um lado, medo de serem removidos de posições significativas na trama de alianças e acordos internacionais por outro. Rios e rios de palavras para tentar desembaraçar o gnommero. Mas, no fim, o que é a guerra, toda guerra, senão uma prova de força, em que o jogo das partes se reduz a um simples jogo de poder em que quem paga a conta não é quem move as peças?

 

A Guerra do Peloponeso eclodiu na primavera de 431 a.C., com as tropas espartanas invadindo os campos atenienses, forçando os camponeses a se retirarem para dentro das muralhas da cidade, deixando os campos incultos. Seguem-se a fome e uma terrível epidemia de peste. Depois, mais invasões e batalhas. Assim por cerca de uma década. Depois, uma paz efêmera entre os contendentes em 421 a.C., a retomada do conflito, a guerra que se desloca para a Sicília. Milhares de soldados encontram a morte nas operações militares em Siracusa ou nas condições desumanas de prisão das Latomias.

 

Em Atenas, a confiança popular desmorona. Pais, maridos, irmãos, filhos – sacrificados por uma guerra que parece não ter fim. A cidade está exausta, as mulheres estão desesperadas.

 

A “Lisístrata” de Aristófanes e a de Garinei e Giovannini

 

O grande dramaturgo Aristófanes, com pouco mais de 20 anos quando a guerra começou, dá voz e corpo nas suas comédias ao desejo de paz que atravessa a cidade e se torna cada vez mais forte durante os longos anos do conflito.

 

E, em 411 a.C., 20 anos depois da eclosão da guerra, encena a “Lisístrata”. Porque a guerra é “coisa de homens”, é claro, mas quem paga a conta por ela são as mulheres e os filhos crianças.

 

Lisístrata - A greve do sexo. Obra de Aristófanes

 

Eis então a sacada genial. Lisístrata – “aquela que dissolve os exércitos” – reúne as mulheres atenienses no início da manhã e lhes propõe que convoquem a Atenas todas as mulheres gregas, incluindo as espartanas, para salvarem juntas a Hélade da violência insensata da guerra. Como? Simples: impondo aos seus próprios homens a renúncia às relações sexuais.

 

Assim será. Atenienses e espartanas, vinculadas por um juramento solene, empreendem o caminho da completa abstinência, da “greve de sexo”, com resultados hilários para os ardentes maridos, encurralados pela irredutibilidade de suas esposas: ou a paz ou... nada!

 

A guerra é uma coisa para mulheres, esta também é a sacada genial de “Lisístrata”: isto é, é algo sobre o qual mesmo quem, como as mulheres, não tem direito de palavra e não importa nada na cidade tem o direito (o dever?) de se pronunciar.

 

As mulheres gregas, atenienses e espartanas, inflexíveis – embora com alguma hesitação –, forçarão os homens a capitular. As negociações começarão, e o tão desejado tratado de paz será assinado. Mas… Cuidado para não repetir os mesmos erros no futuro!, dirá Lisístrata no tripúdio conclusivo da comédia, quando maridos espartanos e atenienses, dando os braços às esposas, dançarão uma dança de agradecimento aos deuses pela paz finalmente encontrada.

 

Nos anos da Guerra Fria, quando o mundo inteiro vivia o pesadelo de uma possível terceira guerra mundial, Garinei e Giovannini propuseram uma reescrita de “Lisístrata”, que velava nos atenienses os estadunidenses e, nos espartanos, os russos [2]. Voltava a ideia de que era precisamente das mulheres que podia chegar uma palavra diferente em relação àquela guerra que, fria ou quente, era, em todos os aspectos, apenas e unicamente uma “coisa de homem”.

 

A guerra, uma antiga festa cruel

 

“E sabe-se lá quantas mulheres estadunidenses e vietnamitas, primeiro, afegãs ou iraquianas, depois, no fim do século XX, teriam querido impedir com todos os seus meios que os seus homens se envolvessem em guerras sangrentas; assim como hoje desejariam o mesmo azeris e armênias, eritreias, etíopes ou tigrinas, e assim por diante. Mulheres que, precisamente como as atenienses e as espartanas de Aristófanes, perdem pais, maridos e filhos por essa antiga festa cruel que os homens não se cansam de celebrar: a guerra” [3].

 

A guerra? Uma antiga festa cruel, escreve Maurizio Bettini, antropólogo e classicista.

 

A guerra? Um estupro de impotentes, escreve Slavoj Žižek, filósofo e cientista político, que assim conclui o seu artigo no jornal Il Fatto Quotidiano no dia seguinte à primeira penetração direta do exército russo na Ucrânia:

 

“Aqueles que, como nós, vivem em países que são espectadores da triste comédia do estupro, devem saber que apenas uma decisiva castração poderá impedi-lo. Só podemos recomendar que a comunidade internacional efetue tal operação cirúrgica na Rússia e, em certa medida, também nos Estados Unidos: ignorando-os e marginalizando-os o máximo possível, tratando-os como embaraçosas obscenidades, como alguém que vemos defecando em via pública; e assegurando-se de que não cresça mais nada no lugar da sua autoridade global” [4].

 

Todas as guerras são iguais – as mesmas razões, as mesmas falsidades. A Guerra do Peloponeso assim como a guerra na Ucrânia. Dois mil e quinhentos anos de história, e nada mudou.

 

Acompanhamos as notícias com o coração partido. A guerra contra a Covid nos parece pouco mais do que uma burla, agora que nossos olhos e corações se enchem de imagens e testemunhos de uma guerra de verdade, feita de tanques, de bombardeios, de sirenes, de bunkers, de ataques aéreos. Pensávamos que tínhamos deixado Belgrado para trás, e, ao invés disso, as bombas voltam a cair novamente na civilizadíssima Europa. Onde estás, Lisístrata, onde estás?

 

A voz de duas mulheres ucranianas

 

Quarta-feira, 2 de março, início do caminho da Quaresma. A Universidade Católica da Bréscia propõe aos estudantes um momento de reflexão e de oração [assista no vídeo abaixo].

 

 

Anna Baydatska, professora de língua materna russa, de origem ucraniana, dá o seu testemunho. Mostra um breve vídeo em que, em uma cidade ao norte de Kiev, pessoas comuns vão ao encontro dos blindados russos de mãos vazias, cantando o hino nacional ucraniano. Ela fala da prima, que mora em Kiev. A professora se ofereceu para hospedá-la na Itália, mas a resposta foi não: a casa onde a prima mora é a única do bairro que ainda tem água potável, e muitos contam com ela e com a sua família para as necessidades de água e de proteção.

 

Como nós, aqui na Itália, podemos fazer para ajudá-los?, pergunta a professora Baydatska às estudantes e aos estudantes que a ouvem, comovidos. E ela propõe, com simplicidade, três pensamentos que se tornam pontos cardeais.

 

Primeiro: a oração. A oração é uma força que, partindo de um coração convertido a Jesus, se estende por toda a parte.

 

Segundo: ler as informações de forma inteligente, sem parar na superfície de palavras que veiculam propaganda, de um lado e de outro.

 

Terceiro: encontrar formas concretas de solidariedade.

 

O cinismo não deve ter a última palavra. Quem lembra isso com emoção é Iryna Lavryshyn, uma jovem ucraniana que está há 11 anos na Itália, estudante da Faculdade de Ciências Linguísticas da Universidade Católica. A sua mensagem chega diretamente ao coração: hoje mais do que nunca, diz ela, é fundamental incrementar as relações interpessoais, porque estas são a base das relações interestatais. Se conseguirmos desenvolver cada vez mais o nosso amor, compreensão e respeito pelo próximo, conseguiremos criar um futuro melhor, em que não haverá espaço para a violência.

 

Escuto com comoção e esperança o testemunho dessas duas mulheres ucranianas que, com a voz quebrada pelas lágrimas, falam da não violência, e as palavras do professor Adriano Dell’Asta, docente de Língua e Literatura Russas, que indica o caminho da não violência como estrada a percorrer junto com os amigos russos.

 

E digo a mim mesma que, como cristãs, como cristãos, devemos hoje mais do que nunca ser firmes quanto à necessidade de caminhar nessa estrada, sem ceder à tentação de abençoar as armas, seja quem for que as empunhe.

 

O encontro na Universidade Católica termina com a distribuição aos presentes de belíssimas rosas brancas, em memória de Sophie Scholl, do irmão Hans e dos outros jovens da Rosa Branca, jovens cristãos que encontraram na fé as razões e o ardor para se contraporem ao nazismo de forma não violenta, com espírito firme e alma terna [5].

 

Outros caminhos são possíveis, além da guerra, da violência, do poder e do medo.

 

Notas

 

1. Tucídides, La guerra del Peloponneso, Introdução e tradução ao italiano de Ezio Savino. Ed. Garzanti, 1989. Cf. Introd., p. XVII.

2. Em 1958, foi levada ao palco do Teatro Sistina, em Roma, a comédia musical “Un trapezio per Lisistrata”. Em 1971, foi feita uma versão televisiva dela, intitulada “Mai di sabato, signora Lisistrata”.

3. Maurizio Bettini, “Uomini, tremate. Lisistrata è tornata”, La Repubblica, 8 fev. 2021.

4. Slavoj Žižek, “Goodbye Lenin nel Donbass”, Il Fatto Quotidiano, 25 fev. 2022.

5. Disponível aqui.

 

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