A guerra da missa. A linguagem litúrgica e o irreversível caminho eclesial. Artigo de Andrea Grillo

Fonte: Wikimedia Commons

02 Março 2022

 

“Há alguns anos, a revista Exodus me pediu uma pequena contribuição sobre o tema da ‘violência’ na tradição litúrgica católica. A partir desse texto, tiro algumas ideias para uma reflexão que hoje infelizmente volta a ser muito atual. E que revela, de modo verdadeiramente escandaloso, a inadequação dos textos do Missal de 1962, que alguns gostariam de utilizar despreocupadamente como expressão da experiência eclesial. Como diz o Eclesiástico da primeira leitura desse domingo: ‘Não elogies a ninguém, antes de ouvi-lo falar’: se dermos a palavra sobre a guerra ao Missal de 1962, descobrimos que ele fala uma linguagem escandalosa, que não é e não pode ser mais a nossa.”

 

O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 28-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

A guerra da missa. A linguagem litúrgica e o irreversível caminho eclesial

 

“Quem se mantém firme? Só aquele que não tem como critério último a própria razão, o próprio princípio, a própria consciência, a própria liberdade, a própria virtude, mas que está pronto a sacrificar tudo isso quando é chamado a uma ação obediente e responsável, na fé e no vínculo exclusivo com Deus: o homem responsável, cuja vida não deve ser nada mais do que uma resposta à pergunta e ao chamado de Deus.”
D. Bonhoeffer

 

“A convicção de que agir contra a razão está em contradição com a natureza de Deus é apenas um pensamento grego ou vale para sempre e em si mesma? Acho que, nesse ponto, manifesta-se a profunda concordância entre aquilo que é grego no melhor sentido e aquilo que é fé em Deus sobre o fundamento da Bíblia.”

Bento XVI

 

A delicada relação com Deus, como “objeto imenso”, “silêncio altíssimo”, “pai de misericórdia”, que diante do ser humano se faz palavra e carne, que assume uma forma e uma matéria, que se torna “fenômeno”, suscita imediatamente algumas questões de fundo, que evidentemente também dizem respeito à relação entre o princípio da paz e da composição de todos os conflitos e a experiência da violência e da opressão que caracteriza a vida humana.

 

Se Deus é convertido, pela palavra e pelo culto, em “princípio de autoridade”, pode ser confundido, sobreposto e até identificado com aquilo que as autoridades humanas fazem para impor as suas lógicas de justiça e de paz, mediante as lógicas da violência, da sanção e da opressão.

 

Deus torna-se assim o último carimbo de uma soberania violenta, a mais alta das sanções, o primeiro guardião de toda violência “comum”.

 

Deus e a violência da guerra

 

Essa dinâmica atravessou a história. A própria atestação bíblica, a palavra mais original, já está profundamente marcada por essa possibilidade, que muitas vezes se torna uma espécie de cumplicidade de Deus com as tramas violentas dos homens e das mulheres.

 

A primeira forma de violência contra Deus, com efeito, é aquela que consiste em deslocar sobre Deus os desígnios violentos dos homens, a fim de vê-los justificados, transformando-os quase em “atos devidos” ou até em “atos de culto”. Faz-se de Deus o princípio de autoridade e, de certa forma, cego de uma realidade despedaçada, dilacerada e duramente dividida em dois lados opostos, entre amigos e inimigos, entre bem e mal, entre positivo e negativo. Deus torna-se a garantia de um desespero, não de uma esperança, torna-se princípio de maldição, não de bênção, de inveja, não de louvor, de ingratidão, não de ação de graças.

 

Nessa dinâmica, que diz respeito já na origem à própria Escritura e à organização da forma régia e ministerial do povo de Deus – do Primeiro e também do Novo Testamento – entram necessariamente também as formas da elaboração do culto e do pensamento teológico.

 

Gostaria de me deter aqui sobre as formas com que o culto cristão assumiu – em mundos bastante diferentes do nosso – um componente violento das relações sociais e o deslocou sobre Deus. Isso se evidencia sobretudo nos formulários das “missas em tempos de guerra” e nas orações “contra o inimigo”, que marcaram a expressão eclesial até poucas décadas atrás.

 

Por outro lado, a teologia, por sua vez, introduziu argumentações, princípios, referências que extraiu da “razão comum”: princípios de evidência violenta e hostil, que depois também deslocou sobre Deus.

 

A missa e a guerra depois do Vaticano II

 

O Missal Romano, na edição mais recente (1970), também contém um formulário “em tempos de guerra e de desordem”. Mas o trabalho feito após o Concílio Vaticano II removeu todo elemento de “violência” tanto na demanda da Igreja quanto nas qualidades e nas ações atribuídas a Deus. De fato, hoje lemos na coleta:

 

Ó Deus, forte e misericordioso,
que condenais as guerras
e abateis o orgulho dos poderosos,
afastai os lutos e os horrores que afligem a humanidade,
para que todos os homens, pacificados entre si,
possam verdadeiramente ser chamados de vossos filhos.
Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus,
e vive e reina convosco, na unidade do Espírito Santo.
[tradução a partir da versão italiana]

 

Ou:

 

Ó Deus, amigo da paz,
conhecer-vos é viver, servir-vos é reinar;
libertais de toda agressão o povo que confia em vós,
para que, sob a vossa defesa e proteção,
possa se dedicar sem temor ao vosso serviço.
Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus,
e vive e reina convosco, na unidade do Espírito Santo.
[tradução a partir da versão italiana]

 

Aqui fica evidente como a linguagem litúrgica foi submetida a um processo de purificação, que ainda até 1969 trazia textos de estrutura e cultura muito diferentes.

 

A guerra no Missal de 1962

 

A coleta do Missal de 1962, último exemplar da tradição tridentina, e que alguns hoje pretendem usar como se nada tivesse acontecido, soa de fato como uma oração a um Deus que “toma parte no conflito”, que tem inimigos e que ajuda um lado contra o “outro”.

 

Deus, qui conteris bella, et impugnatores
in te sperantium potentia
tuae defensionis expugnas: auxiliare
famulis tuis, implorantibus misericordiam
tuam; ut, inimicorum suorum
feritate depressa, incessabili te gratiarum
actione laudemus. Per Dominum.

(Ó Deus, que destruís as guerras, e que
derrotais aqueles que combatem quem espera
em vós com o poder da vossa defesa, ajudai
os vossos servos que imploram a vossa misericórdia,
para que a crueldade dos seus inimigos seja vencida,
e vos louvamos com inesgotável ação de graças.
Por Nosso Senhor Jesus Cristo...)

 

Ainda mais significativo é comparar as duas orações dos postcommunio. Por um lado, temos o Missal de 1962 que reconstrói um rosto de Deus que castiga e pune os seus servos:

 

Deus, regnorum omnium regumque dominator,
qui nos et percutiendo sanas et ignoscendo conservas:
praetende nobis misericordiam tuam;
ut tranquillitate pacis, tua potestate
servata, ad remedia correctionis utamur. Per Dominum.

(Ó Deus, que dominais todos os reinos e todos os reis,
curais com os flagelos e preservais com o perdão:
estendei sobre nós a vossa misericórdia,
para que, seguros do vosso poder,
usemos a tranquilidade da paz
para emendar as nossas vidas.
Por Nosso Senhor Jesus Cristo...)

 

No novo missal, lemos, por outro lado, uma oração após a comunhão que não atribui a Deus nenhuma intenção “retributiva”, mas que nutre, reconcilia e confirma na fraternidade:

 

Senhor, que nos nutristes com a doçura deste único pão,
que nos confortais nas provações da vida,
concedei que a humanidade, devastada pela guerra,
recupere o bem da paz,
para viver segundo a vossa lei
na justiça e na fraternidade.
Por Cristo nosso Senhor.
[tradução a partir da versão italiana]

 

A oração pelos “inimigos”

 

No entanto, além dos textos “reformulados” e “repensados”, encontramos também um segundo nível de transformação da tradição litúrgica: ou seja, aqueles textos que, até 1969, estiveram formalmente no Missal e que utilizavam a expressão “oração pelos inimigos” e soavam, no Missal de 1962, com estas palavras no postcommunio:

 

Haec nos communio, Domine, eruat
a delictis: et ab inimicorum defendat
insidiis. Per Dominum.

(Que esta comunhão, Senhor, nos liberte dos pecados:
e nos defenda das armadilhas dos inimigos.
Por Nosso Senhor Jesus Cristo...)

 

Depois de 1970, ela se torna um texto mais articulado e pensado de forma menos drástica:

 

Por este mistério da nossa redenção
concedei-nos, Senhor, viver em paz com todos
e olhai com benevolência para aqueles que nos afligem,
para que, em um renovado vínculo de fraternidade,
possamos juntos dar graças ao vosso nome.
Por Cristo nosso Senhor.
[tradução a partir da versão italiana]

 

Assim, fica evidente que a tradição litúrgica, depois de séculos de linguagem comprometida gravemente com uma “hostilidade” e com uma “violência reparadora”, deslocada também sobre Deus, soube despedir-se desse registro e purificá-lo de toda leitura parcial e conflituosa.

 

O próprio termo “inimigos” é superado e se torna “aqueles que nos afligem”. Trata-se de um trabalho precioso de redefinição das relações e de descrição da ação, e não do sujeito que a realiza.

 

Como a linguagem é o primeiro nível de elaboração da relação com o outro, o cuidado na purificação eclesial da oração é uma grande contribuição para o crescimento da cultura da paz. A guerra, como é evidente ainda hoje, debaixo dos nossos olhos, começa sempre pela linguagem. A paz começa por encontrar, diante do outro, até mesmo na pior das crises, as palavras mais serenas e mais pacificadoras.

 

Por isso, a reforma litúrgica não é apenas uma passagem técnica entre ritos diferentes, mas um crescimento moral e um aprofundamento cultural que não pode ser considerado “opcional”. O rito pré-conciliar ainda não elaborou uma cultura da paz.

 

Evidentemente, não é culpa do rito, que está fechado no seu tempo. A culpa, no mínimo, é de quem hoje quer se obstinar em permanecer firme naquela linguagem, imunizando-se da história e da responsabilidade, e propondo a mistificação da “intercambialidade” entre o rito anterior e o rito atual.

 

A guerra é um critério discriminante: ao pensar e ao viver a relação entre a missa e a guerra, não é possível ficar ao mesmo tempo em 1962 e em 2022, sem se tornar uma caricatura de si mesmo, distante demais do ser humano verdadeiramente responsável pela paz, acima de tudo pelas palavras que usa e que reconhece na boca de Deus.

 

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