2022: “as coisas estão em movimento, mas precisamos saber quais são nossos horizontes”. Entrevista com Ludmila Costhek Abílio

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12 Janeiro 2022

 

Ano novo, vida que, de nova, parece só apresentar novas tragédias. O brasileiro passou o período de festas com o sentimento de alívio por poder reviver os ritos de passagem negados pelo hiato de 2020, mas, já antes de os fogos silenciarem, as mazelas do que promete ser outro longo e tenebroso ano se acumulavam: chuvas e enchentes em Minas e Bahia, mortes, cidades destruídas e várias barragens dando sinais de que estamos às portas de repetir Mariana ou Brumadinho, além de um novo surto de gripe, a combinar vírus e contaminações diversas.

 

Paralelamente, um colapso socioeconômico que não para de se aprofundar, enquanto alguns dos mais importantes setores esperam normalidade no ainda distante pleito eleitoral que tentará evitar a reeleição de um ser que, dentre tantos crimes praticados à luz do dia, se recusa a agilizar a vacinação infantil. Para refletir, sem ousar previsões, o Correio da Cidadania entrevistou a socióloga Ludmila Costhek Abílio, estudiosa do que já se popularizou como “uberização do trabalho”, que conversou conosco a respeito deste complexo quadro por um ângulo no qual os invisíveis são o eixo gravitacional.

 

Neste sentido, é possível notar o início de uma disputa política que exprime as verdadeiras polarizações que nos dividem. De um lado, aqueles que começam a questionar os resultados reais das reformas liberalizantes; de outro, os que tentam se distanciar da imagem de proto-fascistas, escancarados ou enrustidos, mas não cedem em sua agenda de ajustes econômicos a gosto do grande capital privado, dono de fato dos destinos da nação nos últimos anos. Pouco repercutida até em setores populares e progressistas, a CPI dos Aplicativos em São Paulo oferece uma pequena fresta do perfil das confrontações que incidirão na vida do brasileiro médio.

 

“Aconteceu que os entregadores mostraram sua importância social e a contradição e a desigualdade ficaram muito evidentes. Para que os isolados se mantivessem em tal privilégio, esses trabalhadores precisavam circular e se expor ao vírus, entregando tudo quanto é tipo de coisa. Não foi só comida, mas um monte de serviços e mercadorias. Vários setores econômicos são hoje atravessados por essa forma de organização do trabalho. E a condição de tais trabalhadores se evidenciou”, explicou Ludmila Abilio.

 

No entanto, a socióloga enfatiza que tais mudanças marcam o mundo do trabalho há anos, e as novas relações de trabalho mediadas pelas empresas de aplicativos, associadas com a pandemia, apenas intensificaram-nas.

 

“A informalização uberizada é ainda mais complexa. Ela se refere a uma perda de formas estáveis e reguladas que regem o processo de trabalho. Não tem a ver só com plataforma digital, é algo que atravessa todo o mundo do trabalho. Nós que hoje trabalhamos isolados entendemos perfeitamente do que se trata. É a perda de referências claras do que é tempo de trabalho ou não; o que é custo do trabalho ou não. A energia elétrica da minha casa, o café que tomo, o material que uso, uma série de coisas que não se medem e não se conseguem formalizar. Tal perda se mostra extremamente produtiva, opera uma transferência de riscos e custos aos trabalhadores”.

 

Estudiosa das novas modalidades de trabalho, pelas quais praticamente todo jovem brasileiro já passou em algum momento, Ludmila compreende aquilo que começa a ser expressado por essas massas de trabalhadores cada vez mais informalizadas e destaca o caráter político daquilo que a própria CPI chamou de “caixa preta”.

 

“Há uma série de informações que passamos um ano pesquisando e tentando descobrir e estão ao alcance de um clique. São informações totalmente processadas, só não vêm a público por questão de privacidade das empresas, ou seja, política. A dialética é assim: as novas tecnologias permitem o mapeamento de tudo, da multidão e do indivíduo. Abrir a caixa preta é pensar nisso. E refere-se a algo mais complexo: o gerenciamento algorítmico do trabalho”.

 

No entanto, ela mostra incerteza ao comentar a capacidade de atores políticos compreenderem essas atuais dinâmicas e se apresentarem como aptos a defender os derrotados da relação capital-trabalho, enquanto a extrema-direita e os políticos que a lideram seguem a se apresentar como “antissistema”.

 

“O horizonte do momento é juntar os cacos, numa espécie de busca de um patamar mínimo de justiça, dignidade. Pensar nos instrumentos e formas de organização que enfrentem as novas formas de exploração do trabalho nos demanda uma ousadia que não estamos tendo. Se não enfrentarmos as formas de desigualdade social e concentração de renda, os ganhos financeiros, seus fatores históricos, iremos sempre enfrentar atualizações, novas e refinadas, que perpetuem aquilo que nos estrutura”.

 

A entrevista completa com Ludmila Costhek Abílio é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 10-01-2022.

 

Eis a entrevista.

 

O mundo entra em 2022 com fortes sinais de esgotamento, objetivos e subjetivos. Um forte empobrecimento material acompanhado de desemprego e precarização estruturais em meio a uma pandemia que não dá sinais definitivos de estancamento – além disso, apareceu nova epidemia de gripe, o vírus H3N2, que deriva do H1N1 que assustou a humanidade por volta de 2009, quando uma epidemia semelhante à atual entrou no nosso radar. Na entrevista da edição retrospectiva, o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes nomeou o atual estágio do capitalismo de “pandêmico, virótico”. Isto é, trata-se de um estágio desse modo de vida que naturaliza a tragédia de larga escala, causada justamente pelo seu metabolismo, e não deixa de funcionar por conta disso. Diante da formulação aqui exposta, o que esperar para o ano de 2022, em especial para as massas trabalhadores e via de regra invisíveis?

 

Mais do que dizer que a normalidade se manteve, talvez vivamos algo ainda mais bizarro: mantivemos uma normalidade que intensificou uma série de atividades do mundo do trabalho. Rapidamente, restabelecemos o modo de funcionamento daquilo que chegou a ser suspenso. Dentro da própria academia vimos uma profunda intensificação do trabalho. Mesmo o isolamento – que devia ser um direito, não um privilégio – foi inteiramente atravessado por todas as indistinções que estamos vivendo: indistinção entre o que é tempo de trabalho e o que não é, espaço de trabalho ou não, trabalho reprodutivo ou não. Toda essa dinâmica se intensificou na pandemia.

Na pandemia, a linha divisória entre quem pode se isolar e quem não pode evidenciou a estrutura e a desigualdade interseccional do mundo do trabalho e a nova normalidade que logo se constituiu. E vimos quem foi mais exposto, na territorialidade e na ausência de proteção.

Um elemento central do mundo do trabalho atual é o autogerenciamento subordinado, com uma série de elementos e regras que não dão margem individual de negociação. Isso se generalizou como modo de vida, mesmo agora com a vacinação alastrada na população.

Com a entrada do período eleitoral, há uma convulsão de fatores que devemos ver para onde nos conduzirá.

 

Você é uma estudiosa das novas condições do mundo do trabalho e das novas categorias de classes trabalhadoras, dentro do chamado processo de uberização. A Câmara Municipal de São Paulo encerrou seu ano com uma CPI dos aplicativos, que, segundo seus próprios condutores, visa a “abrir a caixa preta dos apps”. Qual seria, em sua visão, essa caixa preta e o que essa CPI pode indicar a respeito dos próximos conflitos sociais, econômicos e trabalhistas?

 

É interessante que a uberização ganhou muita visibilidade durante a pandemia. Por muitos motivos: primeiro que a precariedade, a instabilidade e a insegurança do trabalhador ficaram muito evidentes. Apesar de depender inteiramente de um trabalho subordinado a uma empresa, não há a menor garantia de quanto se ganha, do valor do trabalho, da quantidade de trabalho a executar, como receber... Tudo isso ganhou mais importância e ficou evidente que trabalhadores que sempre foram essenciais passaram muito tempo invisibilizados.

Importante destacar que motoboy é uma profissão de muitas décadas, não começou nas empresas de aplicativos. É uma profissão que foi expandida bem antes da aparição dos apps, sempre foram trabalhadores essenciais para a distribuição de documentos, mercadorias vendidas online, serviços cartoriais, pagamento de contas, dos mercados financeiros... Na pandemia esses trabalhadores garantiram nosso isolamento social. Ao mesmo tempo, os motoristas da Uber, muito invisibilizados, expuseram sua precariedade, pois dependem permanentemente das dinâmicas da demanda.

Aconteceu que os entregadores mostraram sua importância social e a contradição e a desigualdade ficaram muito evidentes. Para que os isolados se mantivessem em tal privilégio, esses trabalhadores precisavam circular e se expor ao vírus, entregando tudo quanto é tipo de coisa. Não foi só comida, mas um monte de serviços e mercadorias. Vários setores econômicos são hoje atravessados por essa forma de organização do trabalho. E a condição de tais trabalhadores se evidenciou.

Fizemos uma pesquisa, depois corroborada por outras, de que, apesar do crescimento enorme da demanda por seus serviços, esses trabalhadores enfrentam uma queda brutal em sua remuneração, acompanhada da extensão do tempo de trabalho e do crescimento do número de acidentes de entregadores, tanto ciclistas como motociclistas.

Por fim, tais trabalhadores também ganharam visibilidade na medida em que se organizaram. Entre outras mobilizações, tivemos o #brequedosapps, a greve nacional dos trabalhadores uberizados (1 de julho de 2020). O nome mesmo sugere um freio, que nos leva a “abrir a caixa preta” da uberização, como diz a CPI. E quais as demandas dos trabalhadores? Tarifas justas, fim das demissões sumárias e injustas, fim dos bloqueios arbitrários, fim dos sistemas de pontuação que criam lógicas que sequer se compreendem e distorcem remunerações... Os trabalhadores pedem um freio a tal forma de exploração, o que só é possível quando se organizam coletivamente, e mesmo assim é bem difícil.

Quando pensamos na caixa preta, temos dois elementos centrais da uberização para pensar: o primeiro é que ela transforma as pessoas em trabalhadores sob demanda. Ou seja, passa-se o dia na rua, não em casa, à espera da chamada, da solicitação do serviço. E temos cada vez mais trabalhadores vivendo desta forma, o trabalhador just-in-time. Este é um elemento central.

 

O segundo ponto é a informalização do trabalho. Ela quer dizer:

 

1) trabalhadores são jogados nesta condição. Nos últimos 6, 8 anos, esse processo, que já era precarizado, se aprofundou. O que era insalubre, de alta periculosidade, ainda contava com mais direitos, CLT, direitos associados ao trabalho formal. Em 5, 6 anos a multidão se tornou informal;

2) a informalização uberizada é ainda mais complexa. Ela se refere a uma perda de formas estáveis e reguladas que regem o processo de trabalho. Não tem a ver só com plataforma digital, é algo que atravessa todo o mundo do trabalho. Nós que hoje trabalhamos isolados entendemos perfeitamente do que se trata. É a perda de referências claras do que é tempo de trabalho ou não; o que é custo do trabalho ou não. A energia elétrica da minha casa, o café que tomo, o material que uso, uma série de coisas que não se medem e não se conseguem formalizar. E a perda das formas tradicionais de trabalho, com sua não contabilização, está em curso há décadas. Tal perda se mostra extremamente produtiva, opera uma transferência de riscos e custos aos trabalhadores, opera formas de intensificação e extensão do trabalho que são difíceis de contabilizar, pois perdem seu formato estável.

 

A informalização/uberização se intensificou. Não se sabe mais a forma estável do trabalho. Assim, não há nem a estabilidade e nem a garantia mínima formalizada a dizer quanto vale a hora-trabalho. Informaliza-se também a forma de distribuição do trabalho, dinâmica na qual os trabalhadores tentam cotidianamente entender porque veio corrida pra um e não pra outro. São regras e mais regras que operam, são onipresentes e extremamente flexíveis, mas sem forma definida. Não se sabe se o trabalho é demandado ou deixa de sê-lo porque a pessoa recusou uma corrida, foi mal avaliada em algum momento, se está no melhor lugar e horário... Não se sabe, o que não quer dizer que tais regras não existam. É programado, com big data, inteligência artificial, uma infinidade de elementos que não poderiam ser mapeados humanamente, a combinar uma enormidade de variáveis. Isso é humanamente programado, tem um trabalho humano definindo como tais critérios funcionam.

Vejamos, portanto, até onde vai o processo de informalização. De fato, não há mais formas definidas de precificação do trabalho, o tempo de trabalho, a distribuição do trabalho, o acesso, os bloqueios, nada disso tem forma clara e contratualmente definida. Funciona como espaço aleatório que parece terra de ninguém, mas tem donos bem claros.

 

Portanto, o termo caixa-preta parece bem adequado. Há toda uma gerência de trabalho, circulação de dinheiro e geração de lucros operando à margem de qualquer regulação social e estatal, sem qualquer transparência pública.

 

Caixa preta, neste caso, é algo que começa em coisas mínimas, como o contingente de trabalhadores uberizados no Brasil. E isso é política, não é técnica. Há uma série de informações que passamos um ano pesquisando e tentando descobrir e estão ao alcance de um clique. São informações totalmente processadas, só não vêm a público por questão de privacidade das empresas, ou seja, política.

Abrir a caixa preta é começar a discussão lá do ponto mínimo: quantos trabalhadores estão cadastrados e ativos na plataforma? Quantas horas diárias eles fazem? Qual a remuneração?

A dialética é assim: as novas tecnologias permitem o mapeamento de tudo, da multidão e do indivíduo. Abrir a caixa preta é pensar nisso. E refere-se a algo mais complexo: o gerenciamento algorítmico do trabalho. Sabemos pouco sobre isso, os debates apenas engatinham, não temos clareza sobre os instrumentos para regular e formalizar as regras que já regem o mundo do trabalho das plataformas digitais.

Como estabilizar as regras do gerenciamento de forma a garantir hora de trabalho, remuneração certa etc.? Não se trata apenas de reconhecer vínculo de emprego, que é urgente, mas de lidar com o fato do trabalho intermitente. Porque se se reconhecer o vínculo, mas não se estabelecerem parâmetros mínimos de tempo e valor da hora/trabalho, poderemos ter uma multidão que seguirá a viver sem saber quantas horas precisa trabalhar por dia e quanto receberá. São esses os desafios.

Dessa forma, devemos compreender melhor como as novas tecnologias são utilizadas politicamente, que incidem num campo já extremamente conflituoso e atravessado por uma série de desigualdades profundas que potencializam as formas mais degradadas de exploração do trabalho, e ao mesmo tempo organizadas e controladas. Mas são meios de controle e exploração que vão se informalizando também, perdem suas formas estáveis, reguláveis, reconhecíveis.

Quando olhamos a CPI, devemos ver bem os interesses em jogo. Uma empresa como a Uber não incide só em seus 500 mil motoristas cadastrados na cidade de São Paulo. Ela entra no tecido social urbano de forma profunda, reconfigura toda a questão da mobilidade urbana, do transporte público... São questões muito profundas mobilizadas neste debate. A caixa preta envolve inclusive como tais empresas pagam seus impostos, o que mal sabemos. Elas têm várias estratégias para evitar isso, pagam uma parcela desproporcional em relação a seus ganhos.

As reformas que incidem no trabalho já aconteceram e devemos nos armar para pensar em instrumentos de proteção, segurança, redução das desigualdades em favor dos trabalhadores.

 

Não há uma profunda desconexão entre as velhas e novas classes trabalhadoras que se reflete na representação política inclusive de partidos e grupos progressistas? Isso não pode significar fortes decepções com a política em período próximo?

 

Temos esperança quando vemos, de fato, movimentos – que envolvam partidos, associações – que se proponham a enfrentar a profunda desigualdade social que marca um lugar. O horizonte do momento é juntar os cacos, numa espécie de busca de um patamar mínimo de justiça, dignidade. Pensar nos instrumentos e formas de organização que enfrentem as novas formas de exploração do trabalho nos demanda uma ousadia que não estamos tendo.

Se não enfrentarmos as formas de desigualdade social e concentração de renda, os ganhos financeiros, seus fatores históricos, iremos sempre enfrentar atualizações, novas e refinadas, que perpetuem aquilo que nos estrutura. Com certeza devemos nos armar e entender o que são as novas tecnologias e como possibilitam novas formas de exploração do trabalho, olhar dialeticamente como as novas formas de exploração atualizam elementos estruturais e permanentes da exploração capitalista do trabalho.

Por exemplo, a remuneração por peça – que Marx em O Capital já apontava como o ideal do capitalista – se generaliza com a uberização. Mas não é a mesma remuneração por peça do século 19. Ela se atualiza, traz novidades, a forma de organização, gerenciamento e transferência de tarefas é nova. Não é século 19. É uma atualização perversa de elementos estruturantes das relações entre capital e trabalho. Nós podemos demandar a formalização do trabalho, temos de brigar por uma Constituição que amplie e universalize a rede de direitos e proteção social. Mas não podemos fazer vista grossa para as profundas desigualdades e injustiças sociais que historicamente atravessam o mundo do trabalho e sempre atravessaram, inclusive por dentro do mundo do emprego formal. Isso porque precisamos entender porque o motoboy não está pedindo CLT. Temos de entender as experiências desses trabalhadores, e não pensar que eles se autoenganam e se consideram um empreendedor, um chefe de si mesmo. Não é assim que eles se percebem.

O que chamamos de pauta progressista é só uma pauta mínima. Quando olharmos além, aí sim, poderemos falar em transformações reais, e essas não ocorrem do dia para a noite. Mas a uberizaçao está na ordem do dia, atravessa programas de governo, está no discurso de candidatos. O próprio PT vem falando constantemente da uberização, temos vários Projetos de Lei, CPIs, decisões judiciais que envolvem a questão do vínculo de emprego. As coisas estão em movimento, a questão é sabermos dos nossos horizontes políticos.

 

Estaríamos voltando a um período mais aberto de lutas de classes e confrontações do tipo esquerda-direita, algo que os 30 anos de hegemonia neoliberal tinham ofuscado? Em termos de horizontes políticos, o caso chileno e a eleição de Gabriel Boric, após amplo processo de mobilizações sociais que abriram caminho para uma nova constituinte onde a direita não tem poder de veto sobre questões fundamentais na alteração do escopo político e econômico, mas também com a aparição de um candidato de extrema-direita no segundo turno, deixam quais sinais?

 

Não me arrisco a fazer previsões. Estamos diante de uma série de polarizações, e vamos compreendê-las na medida em que assentarmos nossa compreensão nas desigualdades estruturais que compõem nosso país. Pra entender, por exemplo, os evangélicos, devemos olhar para o mundo do trabalho. Este mundo se invisibiliza muito facilmente em nossas interpretações, inclusive quando decretamos que há uma massa de trabalhadores descartáveis, quando na verdade as pessoas estão ralando cada vez mais, em formas cada vez menos reconhecíveis, instáveis, precárias, que algumas vezes nem são reconhecidas como trabalho.

É um desafio enorme e enquanto não conseguirmos construir essas pontes analíticas é difícil fazer previsões. E é uma questão séria a nossa dificuldade em entender porque uma base que era petista passou a bolsonarista e dá sinais de que está mudando novamente para o lado do PT. A questão do trabalho dessas pessoas desaparece rapidamente de muitas análises.

Por exemplo, o #brequedosapps evidencia a relação capital-trabalho, nas ruas, nas diversas esferas da circulação. Os entregadores, assim como os caminhoneiros, têm esse poder: quando eles freiam, interrompem um elemento central da dinâmica capitalista, que é a circulação. Mas não sei se veremos conflitos tão claros entre capital e trabalho, porque não sei se partidos e grupos estão dispostos a encarar este conflito.

 

Dessa forma, quais seriam as condições essenciais para uma nova fase de “normalização”, se podemos chamar assim, das relações sociais, isto é, o estancamento da atual conjuntura de dissonância e estranhamento entre grupos e classes sociais e a manutenção dos pactos democráticos, num contexto onde a direita mais extremada e proto-fascista se vende como “antissistema” ao passo que fomenta ódios e busca por bodes expiatórios em grupos sociais historicamente desfavorecidos?

 

Temos um dilema terrível. Apesar de seguirmos na defesa da democracia, a realidade é que vivemos há tempos um totalitarismo financeiro. Temos populações mundiais e economias nacionais amarradas por instâncias e formas de organização que sequer compreendemos. A concentração de renda é mundial e global, cada vez mais perversa e profunda. A economia do Brasil é totalmente financeirizada, até os pobres são cada vez mais financeirizados.

Recomendo a fala da professora Lena Lavinas na última Conferência de Estudos do Trabalho (aqui), na qual ela mostra bem como trabalhadores são atores da financeirização, via crédito, endividamento. Tal questão atravessa nossa vida individual e coletiva, e não combina com democracia, exceto em aparências e formalidades. E nosso horizonte por ora não é de transformação disso, mas de juntar os cacos.

Eu não sei qual a expectativa. A nova classe média, que se tornou “novos pobres”, quer voltar a ser nova classe média. Isso não é pouco, sair da pobreza no Brasil é significativo. Mas é o patamar mínimo, repito. Precisamos entender a base da população, entender seus movimentos eleitorais da última década, e tirar o foco da classe média alta, ressentida, com camisa da seleção brasileira. Tenho a impressão de que até hoje não compreendemos tal base e colocamos nossas fichas na ideia de que ela só quer ser nova classe média de novo. Saliento que não é pouco, mas a mudança recente virou fumaça em pouco tempo porque não houve mudança estrutural na sociedade.

 

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