“Acabou a era em que as Big Techs podiam criar suas próprias regras.” Entrevista com Luciano Floridi

Logo das Big Techs | Foto: Reprodução

24 Dezembro 2021

 

O filósofo da internet afirma: “A autorregulamentação, como estratégia principal para resolver os problemas levantados pelo digital, acabou. Ela deve ser repensada em termos de uma ética soft”.

 

A reportagem é de Adele Sarno, publicada por L’HuffingtonPost.it, 22-12-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Alguns dias atrás, algo mudou no Facebook. Os mais atentos podem ter notado que, ao compartilhar um artigo de qualquer jornal online, como o Huffpost, o La Repubblica ou o La Stampa, ele aparece sem uma imagem nem um resumo. O motivo é bem explicado por Claudio Giua no HuffPost. Entraram em vigor as normas que recebem a diretriz da União Europeia n. 790 de 2019, e a Meta (como o Facebook se chama agora), sem comunicar os usuários e apenas informando os editores no último minuto, mudou as modalidades de publicação dos “links de terceiros”.

 

Como a diretriz também fala de direitos autorais, o Facebook ou o Google teriam que pagar uma compensação aos editores. Mas, por enquanto, eles não parecem dispostos a fazer compromissos. Veremos como a questão vai evoluir.

 

A história, porém, é apenas a mais recente de uma longa série. Basta pensar na multa de 1,1 bilhão de euros [sete bilhões de reais] por abuso de posição dominante da Amazon que a autoridade antitruste europeia impôs nas últimas semanas. Ou naquilo que aconteceu há sete anos na Espanha, onde o Google, em vez de retribuir pelos conteúdos editoriais do serviço News, conforme estabelecido pela lei nacional, preferiu encerrá-lo. Os jornais recuaram. Ou na Austrália, onde o Facebook, por alguns dias, proibiu o compartilhamento de notícias e de links aos usuários. Ou em como o Facebook e o Twitter decidiram eliminar a conta de Donald Trump.

 

Tudo isso nos mostra como as Big Techs, que até hoje desfrutaram do benefício da autorregulamentação em quase todo o mundo, não estão propensas a aceitar regras e leis impostas pelos Estados centrais.

 

Luciano Floridi é uma das vozes mais autorizadas da filosofia contemporânea, professor titular de Filosofia e Ética da Informação na Universidade de Oxford e de Sociologia da Cultura e da Comunicação na Universidade de Bolonha, onde dirige o Center for Digital Ethics. Ele publicou um estudo pela Universidade de Oxford no qual escreve que “a era da autorregulamentação acabou”. Ele nos explicou: “Depois da comercialização da web, a tentativa de se autorregulamentar fracassou”.

 

Eis a entrevista.

 

Professor Floridi, o que você acha do caso envolvendo a Meta e os editores italianos?

O atual caso italiano está em andamento e é difícil antecipar como ele vai terminar. Se o precedente da Espanha servir de indicação, poderá haver más notícias para os jornais. Mas, de modo mais geral, acho que a questão interessante é entender que novos modelos de partilha da publicidade podem ser aplicados de forma a conciliar o valor do tráfego gerado pelas plataformas online para os jornais com o valor dos conteúdos por eles fornecidos.

 

Como nasceu a autorregulamentação?

O governo Clinton, nos anos 1990, optou por regulamentar a internet apenas em um segundo momento. Dizia-se: “Comecemos a jogar e depois decidimos as regras”. Apenas 30 anos depois, damo-nos conta de que quem faz as regras faz o jogo. A nossa vida transcorre onlife (nem online nem offline), aqui tudo está sempre conectado, dentro de um espaço digital e analógico que pode ser chamado de infosfera. Por isso, Facebook, Google, Apple, Amazon, Microsoft têm um impacto muito profundo. Se a nossa vida onlife se baseia na circulação das informações, quem controla as informações tem as chaves de tudo. Quem controla as perguntas dá forma às respostas. Quem dá forma às respostas controla a realidade, parafraseando o livro “1984” de Orwell. Essas grandes potências estão determinando o modo como percebemos o mundo e a nós mesmos e como podemos interagir com ele e entre nós.

 

No estudo que publicou pela Universidade de Oxford, você fala da autorregulamentação como de uma oportunidade perdida.

Se eu tivesse que escolher um ano para marcar o início da web comercial, eu sugeriria 2004, quando o Facebook foi lançado, e o Google fez a sua IPO (“initial public offering”, oferta pública inicial para cotar uma empresa no mercado). Antes de 2004, havia entusiasmo e muita autorregulamentação. Mas ninguém nunca disse: “Atenção, agora que a web é comercial, precisamos de regras”. E assim continuou sendo.

 

O que aconteceu?

É como se houvesse um mau alinhamento de várias fases. Quando a internet nasceu, logo se começou com a autorregulamentação. Quando chegou também a comercialização da web, ela trouxe para a vida de todos os dias problemas éticos já presentes em contextos especializados. E as duas retas, a internet e a autorregulamentação, começaram a se ligar em uma espécie de mau entendimento. Começou a aumentar a pressão para melhorar as estratégias e as políticas empresariais, buscava-se um quadro normativo que fosse mais adequado às exigências do mercado. Mas a autorregulamentação continuou parecendo uma estratégia útil para enfrentar a crise ética. Circulava a ideia de que a indústria digital podia formular seus próprios códigos e padrões éticos, e solicitar e monitorar a adesão a eles, sem a necessidade de controles ou imposições externos. Não era uma má ideia. Eu mesmo a defendi muitas vezes.

 

Quais eram as vantagens de defender a autorregulamentação?

Teoricamente, por meio da autorregulamentação, da ética soft e da soft law, as empresas poderiam adotar modelos de comportamento melhores, mais adequados eticamente às exigências comerciais, sociais e ambientais, de forma mais rápida, ágil e eficiente, sem ter que esperar uma nova legislação ou acordos internacionais. Quando desenvolvida e aplicada corretamente, a autorregulamentação pode prevenir desastres, aproveitar mais oportunidades e preparar a indústria para se adaptar a futuros quadros jurídicos.

 

Mas, de oportunidade, ela se transformou em uma oportunidade perdida...

Começou um curto-circuito, e nunca chegou o momento da legislação. Só a Europa sentiu a necessidade de intervir. Basta pensar que o Oversight Board do Facebook, que deveria se ocupar com a autorregulamentação e a ética, foi instituído em 2020. Muitos anos depois do início da web comercial e do escândalo da Cambridge Analytica. Quando a legislação já tinha chegado à indústria digital: o GDPR, o regulamento europeu sobre a proteção dos dados pessoais, é de 2016.

 

Em outras palavras, a Europa está à frente dos Estados Unidos e da China.

Sim. Depois do GDPR, chegou a hora do Digital Service Act e do Digital Market Act. Desse modo, a Europa reivindicou, de fato, uma liderança na adoção de leis que limitam fenômenos como a incitação ao ódio e ataques racistas online, incitação à violência, fake news e outros conteúdos ilegais. Mas o que deve ser lido com atenção é a abordagem geral que retoma um ponto fundamental do regulamento GDPR: desvincula a legislação da localização. Em outras palavras, se o usuário for europeu, aplica-se a legislação europeia. Este é o século XXI: onde quer que você esteja, se os seus dados forem europeus, aplicam-se as regras europeias.

 

Depois, chegou também o AI Act.

Foi necessário. Quando a indústria reagiu aos desafios éticos impostos pela inteligência artificial, criando centenas de códigos, diretrizes, manifestos e declarações, o vácuo da autorregulamentação pareceu constrangedor. No AI Act, está escrito que a inteligência artificial deve ser cuidadosamente controlada quando se trata de uma tecnologia de alto risco. Há muitos benefícios na sua utilização, mas ela também pode aumentar a vigilância, por exemplo. Por isso, as regras são fundamentais. Já avançamos bastante com a legislação europeia.

 

No estudo, você indica outra data: fala de 2014 como o ano em que a era da autorregulamentação alcança a maioridade. Por quê?

Em 2014, o Google instituiu o Advisory Council (do qual eu fui membro) para enfrentar as consequências da sentença sobre o “direito ao esquecimento” do Tribunal de Justiça da União Europeia. Foi a primeira de muitas outras iniciativas semelhantes. Mas, de modo geral, a era da autorregulamentação foi decepcionante. Nos anos seguintes, o escândalo Facebook-Cambridge Analytica em 2018 e o Advanced Technology External Advisory Council, evidentemente mal concebido e de curtíssima duração, instituído pelo Google sobre a ética da inteligência artificial em 2019 (do qual eu fui membro), mostraram como a autorregulamentação era difícil e, em última análise, falimentar.

 

Então, as Big Techs sempre preferiram decidir as regras do jogo sozinhas?

O Facebook sempre insistiu na oportunidade de não legislar, mas de operar de modo “soft”. Usando normas sem uma eficácia vinculante. Os códigos de conduta, por exemplo, garantiriam a presença na plataforma somente de pessoas maiores de 13 anos. Continuo convencido de que, naqueles anos, era realista e razoável acreditar que a autorregulamentação pudesse favorecer um diálogo eticamente construtivo e frutífero entre a indústria digital e a sociedade. Valia a pena tentar o caminho da autorregulamentação, pelo menos em um sentido complementar em relação à legislação em evolução. Infelizmente, não foi assim.

 

Zuckerberg lançou o metaverso e mudou o nome do Facebook para Meta. E acrescentou: “Queremos ser lembrados não como uma rede social, mas como a empresa que construiu o metaverso”. Essa também é uma tentativa de desviar a atenção dos problemas da sua empresa e afastar a necessidade de se ter leis?

O metaverso corre o risco de ser o Waterloo do Facebook. É o filho de dois grandes fracassos: o Google Glass e o Second Life. No entanto, pelo que vemos, parece que Zuckerberg prefere seguir nesse caminho a fim de desviar a atenção dos analistas dos Facebook Papers e encontrar novas áreas onde ainda não existe a legislação necessária.

 

Mais um sinal de que a autorregulamentação não funciona.

A era da autorregulamentação como estratégia principal para resolver os problemas éticos levantados pelo digital acabou. Ela deixa como herança um bom trabalho de esclarecimento, em termos de análise dos problemas e das suas soluções, de conscientização cultural e social, de sensibilidade ética e também de algumas contribuições positivas para a legislação. Por exemplo, o High-Level Expert Group on Artificial Intelligence (do qual eu fui membro) instituído pela Comissão Europeia contou com a participação de parceiros industriais e forneceu o quadro ético para o AI Act. No entanto, o convite a se autorregulamentar, dirigido pela sociedade à indústria digital, tem sido amplamente ignorado. Essa também foi uma oportunidade histórica enorme, mas perdida, infelizmente de alto custo social e econômico. Hoje, a autorregulamentação deve ser repensada em termos de uma ética soft, ou seja, de uma ética que entra em cena depois da conformidade com a lei, o chamado compliance, obviamente quando a lei existe e está bem feita. Entendida como ética soft, a autorregulamentação pode oferecer uma grande vantagem competitiva, tanto em relação a outras empresas, quanto para a manutenção e o crescimento dos talentos internos.

 

Leia mais