Um estranho Rei, inerme, indefeso, submisso

19 Novembro 2021

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste domingo, 21 de novembro de 2021, solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo (Jo 18, 33b-37). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Chegamos ao fim do Ano Litúrgico B, no qual escutamos na liturgia dominical o Evangelho segundo Marcos. No domingo passado, o anúncio d’Aquele que vem, o Filho do homem (cf. Mc 13,26), nos alegrou, porque esta é a nossa esperança, a nossa expectativa: que o Senhor Jesus venha na glória e venha logo.

Hoje, na verdade, celebramos um aspecto dessa vinda na glória, por meio do quarto Evangelho, que, com audácia profunda, sabe lê-la já na história de Jesus de Nazaré, até mesmo na sua paixão. Nela, ocorre uma epifania: justamente quando Jesus está no pretório romano de Jerusalém, entregue pelos chefes dos judeus, ele se confessa diante de Pilatos como “Rei dos judeus”, isto é, o Messias deles, ungido e enviado por Deus ao seu povo.

Mas atenção: no quarto Evangelho, Jesus é um Rei paradoxal, um “Rei ao contrário”, porque não tem o poder mundano, a glória dos reis da terra, não se orgulha do aplauso das pessoas, não aparece em uma cenografia triunfal.

Ao contrário, justamente na nudez de um homem tratado como escravo e, portanto, torturado, flagelado, até mesmo coroado de espinhos, ele se revela como único e verdadeiro Rei de todo o universo, com uma glória que ninguém pode lhe arrancar, a glória de quem ama o mundo até ao fim (cf. Jo 13,1), de quem sabe dar a vida pelas pessoas (cf. Jo 15,13), permanecendo no amor (cf. Jo 15,9): portanto, glória do amor vivido e do amor nunca contradito.

Mas tentemos ler com obediência o relato dessa cena ou, melhor, dessa “epifania”. A paixão segundo João (cf. Jo 18,1-19,42), compõe-se de 11 cenas, cada uma situada em um dos diversos lugares aonde Jesus foi arrastado pelos seus perseguidores.

No centro está a cena (a sexta) da coroação de espinhos, que, na paixão joanina, é o ápice da revelação da identidade de Jesus (cf. Jo 19,1-3). Jesus foi flagelado como um escravo, e os soldados se enfurecem contra ele. Para desmentir a sua pretensão real, colocam sobre a sua cabeça uma coroa de espinhos, que o perfuram e o desfiguram, e o revestem com um manto de púrpura como o dos reis da terra. Essa entronização prevê a homenagem dos súditos, e os soldados, então, se prostram diante dele e lhe fazem dons, enquanto, dando-lhe bofetadas, saúdam-no assim: “Salve, ó Rei dos judeus!” (Jo 19,3).

É uma cena objetivamente de escárnio, uma paródia, mas, no Evangelho segundo João, é uma verdadeira epifania, porque nela é revelada a verdadeira realeza de Jesus, servo do Senhor e vítima inocente do mal do mundo.

A cena-epifania descrita na perícope de hoje é anterior (a quarta), quando os chefes dos judeus já entregaram Jesus ao procurador romano, para que o condene à morte como malfeitor. Pilatos, que não gostaria de se interessar pelo destino desse judeu, por causa da pressão dos acusadores, entra no pretório, faz com que chamem Jesus e o interroga. Acima de tudo, pergunta-lhe o que mais lhe interessa: “Tu és o Rei dos judeus?”. Isto é: “Tu ostentas um poder político sobre esta terra e sobre esta gente?”. De fato, isso pode ser um atentado ao poder imperial romano, uma ameaça para César. Mas Jesus não lhe responde imediatamente, fazendo-lhe, por sua vez, uma pergunta: “Tu, que não és judeu, mas pertences aos gentios, aos gojim, me fazes essa pergunta movido por uma busca pessoal ou simplesmente porque és instigado pelos meus acusadores?”. Em suma, Pilatos é manipulado pelos chefes dos judeus, ou a sua pergunta nasce de uma moção interior?

Pilatos, porém, não compreende e, ao contrário, mostra o profundo desprezo pelos judeus e também por Jesus, um homem amarrado, entregue a ele, inerme e nada belicoso. Ele repete apenas a Jesus que são precisamente os seus compatriotas, os chefes religiosos dos judeus, que o entregaram à mercê do seu poder de procurador romano em Jerusalém. Segue-se, portanto, a pergunta: “O que fizeste para ser culpabilizado por eles, que delito contra a lei tu cometeste?”.

E aqui Jesus faz a revelação: “O meu Reino não é deste mundo”. O reino de Jesus não se instaura com a violência da espada, não tem soldados prontos para a guerra, não é um poder entre os poderes deste mundo, em concorrência entre si. Não é possível nenhuma competição, muito menos uma conciliação entre o Reino que Jesus anuncia e os reinos que estão sobre a terra. O Reino de Jesus é outro: não é dominação, mas serviço, é portador de vida, não de morte, é paz, justiça e não pode ser sequer compreendido a partir da experiência dos poderes deste mundo.

Mas Pilatos não consegue suportar essa resposta de Jesus, não consegue se sintonizar com as suas palavras. Não pode fazer nada mais do que lhe dizer: “Então, tu és rei?”, ou seja, pretendes – condenado como estás, em meu poder, reduzido a “coisa”, entregue a mim pelos chefes dos judeus e entregável por mim à morte – ser rei?

Jesus então replica: “Tu o dizes: eu sou Rei. Eu nasci e vim a este mundo para ser Rei, com uma missão que me pede simplesmente para ser testemunha da verdade: testemunha da verdade sobre o ser humano que é chamado a ser filho de Deus; testemunha da verdade que deve ser ‘feita’, realizada por cada homem e por cada mulher; testemunha da verdade de um Deus, meu Pai, que tanto amou a humanidade que lhe deu o seu Filho (cf. Jo 3,16)”.

Fiquemos atentos: a verdade não é uma realidade abstrata, não é sequer redutível a uma doutrina ou a uma ética, mas é, acima de tudo, uma “vida”, a vida de Jesus, a vida de um homem conforme a vontade de Deus, a vida de um homem que doa a si mesmo, amando até à morte e, portanto, a vida do próprio Deus que Jesus vive em si e narra humanamente a todos aqueles que o encontram, veem-no, escutam-no.

Nessa resposta a Pilatos, portanto, nessa epifania, Jesus é Rei mais do que nunca, Rei do universo, Rei de toda a humanidade, porque ele é a humanidade autêntica como Deus a pensou, desejou e criou. Aqui Jesus se mostra Rei mais do que nunca, porque não tem nenhum medo, porque reina sobre tudo o que o cerca e sobre tudo o que acontece; domina os eventos, permanece livre e fala, age apenas por amor: reina com a mesma realeza com que Deus reina!

Se há uma hora em que o Reino de Deus veio, esteve no meio de nós e se revelou, foi narrado, essa é a hora da paixão e da cruz. Compreendemos, então, por que o evangelista, logo depois, anota que Pilatos, dirigindo-se à multidão e aos chefes dos judeus, proclama por duas vezes que Jesus é inocente, que não há nenhuma culpa nele, de acordo com o direito romano (cf. Jo 18,38; 19,4; e ainda em 19,6); depois, após ter feito com que o flagelassem (cf. Jo 19,1), apresenta-o a todos com as palavras: “Eis o homem!” (Jo 19,5).

Pilatos, porém – o evangelista nos revela ainda –, durante aquele interrogatório, tem medo e, quando ouve que, de acordo com a acusação, Jesus se fez Filho de Deus, “ficou com mais medo ainda” (cf. Jo 19,7-8). Os poderes deste mundo podem não ter medo uns dos outros e, por isso, fazem guerra entre si; mas, diante de Jesus, “têm medo”, porque Jesus indefeso, inerme, manso, pobre, inocente, reina verdadeiramente, e é ele o Rei e o Juiz de todo o universo.

Esse título de Rei de Israel, de Rei dos judeus, no Evangelho segundo João, é decisivo em relação à identidade de Jesus. Desde o início do Evangelho, ele ressoa nos lábios de Natanael, na hora da sua vocação e do seu primeiro encontro com Jesus (cf. Jo 1,49): confissão de fé que reconhece o Messias, descendente de Davi, Rei-Filho de Deus, aquele que cumpre a promessa de Deus para o seu povo e traz a libertação, a justiça e a paz.

Justamente na expectativa do cumprimento dessa promessa, a esperança messiânica estava viva no tempo de Jesus, mas havia se carregado de expectativa política, de desejo de soberania mundana! Por isso, quando as multidões viram o sinal da multiplicação dos pães, queriam pegar Jesus para fazê-lo rei (cf. Jo 6,14), mas não conseguiram, porque ele fugiu deles, retirando-se para a solidão da montanha (cf. Jo 6,15). Mas, quando Jesus entra em Jerusalém para a sua última Páscoa, a multidão também vai ao encontro dele com ramos de palma, aclamando-o como “Rei de Israel que vem, bendito no nome do Senhor” (Jo 12,13). Contudo, esse evento também não é entendido no seu significado, nem mesmo pelos seus discípulos (cf. Jo 12,16).

Somente agora, na paixão, a realeza de Jesus é revelada e é significativamente rejeitada por aqueles que gritam a blasfêmia: “Não temos outro rei senão César” (Jo 19,15), senão o poder mundano. No entanto, quando Jesus estiver na cruz, o cartaz desejado por Pilatos nas três línguas da ecumene – hebraico, grego e latim – proclamará a verdade, “Jesus Nazareno é o rei dos judeus” (Jo 19,19). Sim, “toda língua confessa que Jesus é o Senhor” (Fl 2,11), Kýrios, a partir da cruz!

Eis, portanto, o fundamento da celebração desta festa de Cristo Rei, que foi novamente compreendida pela reforma litúrgica do Vaticano II, graças à escolha das leituras evangélicas que apresentam Jesus como Rei na paixão (o texto de hoje, no Ano B, e Lc 23,35-43 no Ano C) e como Juiz que vem na misericórdia (Mt 25,31-46 no Ano A).