O sexo como dom e como tarefa. Artigo de Andrea Grillo

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09 Novembro 2021

 

O sexo não é simplesmente um “dado natural” que nos caracteriza originalmente, nem é apenas um “dom” pelo qual devemos agradecer. O sexo, como qualquer outra parte do nosso corpo e da nossa vida, também é uma tarefa.

 

O comentário é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 05-11-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Em um breve e interessante comentário para o site Settimana News, que pode ser lido aqui, Giuseppe Lorizio identifica o ponto-chave do debate em torno dodecreto Zan [projeto que busca criminalizar a homofobia e transfobia na Itália] na última das definições encontradas no início do decreto. Para utilidade, relato aqui série de quatro definições que abre o texto da lei:

 

a) por sexo, entende-se sexo biológico ou civil;

b) por gênero, entende-se qualquer manifestação exterior de uma pessoa que seja conforme ou contrastante com as expectativas sociais ligadas ao sexo;

c) por orientação sexual, entende-se a atração sexual ou afetiva por pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo ou de ambos os sexos;

d) por identidade de gênero, entende-se a identificação percebida e manifestada de si em relação ao gênero, embora não correspondente ao sexo, independentemente de ter concluído um percurso de transição.

 

Diante da última dessas definições, Lorizio diz que “se abre um abismo antropológico, filosófico e teológico entre quem considera que a identidade de gênero deve ser assumida como critério legislativo e quem, por sua vez, se opõe a ela”. Qual é a argumentação que sustenta essa discordância? Lorizio indica em uma abordagem “realista” a aceitação de uma “precedência” em relação ao ser humano, que é ao mesmo tempo um “dado” e um “dom”. Essa precedência impediria que se pudesse aceitar uma “perspectiva de gênero” como normativa.

 

Reproduzo por inteiro as duas frases em que Lorizio sintetiza a sua posição, comentando o ponto “d” da definição:

 

“ Quem, como eu, pensa que o ponto ‘d’ representa uma criticidade real e não sub-reptícia do projeto de lei, move-se em uma perspectiva de realismo, segundo a qual há algo que nos precede e nos seguirá, razão pela qual, por exemplo, não decidimos se, como e quando existir, mas existimos, vivemos e somos chamados, caso não o tenhamos sido, a nos reconciliar com a nossa existência.

É isso que queremos dizer quando afirmamos que a vida é ‘dom’ a ser recebido e oferecido. E o ‘sexo’ faz parte da vida (ponto ‘a’ das definições). O sexo é dom! Talvez nem sempre ensinamos isso e percebido assim na forma do catolicismo convencional, mas é difícil defender o contrário. As escolhas subjetivas e individuais devem ser colocadas nesse horizonte de sentido da vida e da morte.”

 

Nessas palavras claras, parece-me que emerge uma posição clássica, com a qual não só a fé católica, mas também a razão comum, elaborou posições importantes de proteção da tradição e da humanidade do ser humano.

 

Precisamente devido a essa longa tradição, Lorizio pode dizer que não se alegrou com o resultado da votação do dia 27 de outubro, na qual ninguém venceu: “Nem o amor pela vida e o sexo como dom, como representado também por grupos soberanistas e inclinados às rejeições, nem o respeito pelas pessoas, que mereceria uma lei contra a violência homofóbica que salvaguardasse a sua dignidade”.

 

Penso que essa passagem “preocupada” do texto pode ajudar a captar outra questão, que não transparece a partir do texto e que talvez mereça uma atenção específica. Tento explicá-la em seguida.

 

Não só dados e dons, mas também tarefas

 

O sexo, na bem da verdade, não é simplesmente um “dado natural” que nos caracteriza originalmente, nem é apenas um “dom” pelo qual devemos agradecer. O sexo, como qualquer outra parte do nosso corpo e da nossa vida, também é uma tarefa.

 

Essa categoria, que certamente é clássica, visto que construímos refinadas doutrinas morais ao redor do sexo, torna muito mais complexa a relação que temos com o sexo, com o corpo e com a vida. Precisamente porque somos “animais que têm a palavra e as mãos”, nunca podemos simplesmente “alinhar” o dado e o dom. Entre o dado e o dom, está a tarefa, ou seja, o vínculo, a luta, a ciência, a técnica: há mediações tipicamente humanas.

 

Na palavra e nas mãos, a vida, o corpo e também o sexo são assumidos e transformados. Para o ser humano, é assim desde a origem. Com a palavra e as mãos, que o ser humano recebeu de Deus, o ser humano transforma a vida, o corpo e o sexo, e torna-se à imagem e semelhança de Deus. Não como posto ou dado, mas como realizado. No início que o ser humano recebe, está escrito o início que ele deve se tornar.

 

Essa diferença implica que a perspectiva, indicada por Lorizio como “solução”, ou seja, a “reconciliação”, assumiu rostos e formas bastante diversas ao longo dos séculos. É claro que, desde sempre, entre dado e dom, não houve uma perfeita coincidência para o ser humano.

 

 

E é bom lembrar que, para equiparar a experiência, uma via clássica, nunca totalmente exaurida e muitas vezes até vitoriosa, foi e continua sendo a reconciliação, a aceitação, a entrega, a obediência. Mas o mundo tardo-moderno, correndo o risco de “querer reduzir tudo sob o seu controle” e de desobedecer ao infinito, descobriu “mediações novas”, nas quais as “mãos” ensinaram algo à palavra.

 

Aqui, eu acredito que a tradição da “tarefa”, ou seja, a tradição ética, conheceu novas aberturas, novas crises e novas oportunidades. Tento dar dois exemplos.

 

Dois dados/dons clássicos: ser escravos e ser cardiopatas graves

 

A história da razão comum e também da reflexão teológica conheceu por muito tempo formas de “reconciliação” na vida dos sujeitos, que diziam respeito à sua condição “social” ou “natural”. O que significava, no mundo antigo ou moderno, ter “nascido escravo”? Era um “dado” que certamente podia ser vivido como um “dom”. E assim foi.

 

Mas, desde que a ideia de escravidão foi culturalmente excluída da dignidade humana, nasceu uma “reconciliação diferente”: mudaram as relações sociais por meio de novas leis e criou-se um mundo sem escravidão (pelo menos sem escravidão formal). Não foi um fenômeno linear: mesmo em tal mundo “novo”, podia haver regras pelas quais uma mulher negra tinha que ceder o lugar no ônibus se um homem branco entrasse.

 

A mesma coisa, em um nível diferente, ocorreu com as pessoas cardiopatas graves. Elas eram chamadas, por uma longuíssima tradição, a assumir o “dado” embaraçoso como um “dom” e inventavam uma razão para isso. E podiam se reconciliar com a sua doença e ser capazes de viver a vida inteira como um dom. Mas, quando nasceu a “possibilidade tecnológica” do transplante de coração, a relação entre dado e dom mudou. Houve uma tarefa intermediária, uma luta, uma busca, uma experimentação, uma “infração/substituição da natureza” que abriu espaços de vida, de experiência e de esperança novos e antes inconcebíveis.

 

A lei e a tarefa, entre dado e dom

 

Por que propus esses dois exemplos, que podem até parecer impertinentes em relação ao tema? Porque, nessa relação entre “dado” e “dom”, que podemos aplicar ao sexo, ao corpo e à vida inteira, não podemos ler todas as passagens culturais fortes, em que entram novas palavras ou novas tecnologias, apenas com a categoria de “abismo antropológico”. Porque é o próprio homem/mulher que são constitutivamente abismais.

 

 

E a transformação da identidade sexual não inicia quando alguém pensa em “mudar de sexo”, mas quando a cultura comum não pensa mais o sexo como um simples equipamento para a geração. Essa “transformação da intimidade” é um fenômeno que já tem 200 anos e que é paralelo a uma compreensão diferente da lei. Ela não descerra simplesmente um olhar benevolente sobre o “delírio de um ser humano manipulador”, mas consegue dar solução a questões novas, que são e continuam sendo urgentes.

 

Mas aqui, precisamente, é necessário sair de uma visão da lei exclusivamente pedagógica e se abrir a uma função com a qual a lei reconhece um sofrimento novo e um novo direito. Sempre será possível pensar que uma eventual lei sobre a discriminação sexual poderia favorecer o capricho de quem quisesse tentar ser homem, sendo mulher, ou ser mulher, sendo homem.

 

 

Mas essa avaliação é típica de quem pensa o problema a partir de fora. A tutela de quem não se percebe no plano do gênero alinhado com o seu sexo constitui uma questão verdadeira, uma experiência profunda e dura, a respeito da qual o abismo antropológico corre o risco de ser sobretudo aquele de quem se arrisca a entendê-la apenas como o fruto de uma “campanha de imprensa” ou de um “lobby de poder”.

 

Entre o dado natural e o dom do sentido está o espaço aberto e complexo da tarefa. Esta não é uma invenção moderna. Nesse espaço, é possível legislar bem ou mal. Mas não acho que se possa simplesmente reduzir a tarefa ao dom ou ao dado. Isso, substancialmente, seria permanecer em uma abordagem que, não apenas teologicamente, seria dependente demais de um mundo que não existe mais.

 

Que fique claro, isso absolutamente não significa que a decisão de um sujeito que “quer mudar de sexo” (psicológica ou fisicamente) pode ser colocada imediatamente no campo dos direitos subjetivos aos quais é preciso oferecer uma proteção direta, nem no campo dos caprichos que mereçam apenas uma repreensão ou uma punição.

 

Existem ordenamentos jurídicos que nem sequer concebem a ideia de tutelar essas escolhas. Existem ordenamentos que as permitem até mesmo a um menor. O discernimento permanece necessário e precioso: mas não pode ser resolvido com a referência imediata ao dado ou ao dom. Pois o sexo nunca é apenas “natureza” nem apenas “graça”, mas também caminho histórico e passagem de consciência, compreensão geracional da relação entre gênero e sexo. Essa complexidade, a meu ver, exige categorias mais complexas. Mas nem por isso menos urgentes.

 

 

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