“O neoliberalismo como filosofia hegemônica está morto”. Entrevista com Nancy Fraser

Fonte: Public Domain Pictures

28 Setembro 2021

 

Nascida em 1947, em Baltimore, e professora da New School de Nova York, Nancy Fraser mantém diálogos críticos com Judith Butler sobre as políticas de identidade e de classe. Entre suas publicações, destacam-se Dominación y emancipación, com Luc Boltanski (Capital Intelectual), Contrahegemonía ya (Siglo XXI) e Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica, junto com Rahel Jaeggi (Boitempo).

Suas pesquisas giram em torno da problematização da sociedade e natureza, produção e reprodução, economia e política. Formada com Jürgen Habermas, coloca em questão o “público” e realiza diagnósticos sobre as intersecções entre as formas de produção e as de organização social.

 

A entrevista é de Florencia Angilletta, publicada por Le Monde Diplomatique e reproduzida por Rebelión, 27-09-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Com a pandemia, ocorre certo paradoxo entre a igualdade (todas as pessoas são vulneráveis ao vírus) e a diferença (as pessoas podem se proteger de acordo com o capital que dispõem), atravessada pela gestão estatal que oscila entre a volta do Estado (como marco normativo e institucional) e a crise do Estado (os Estados estão limitados pela distribuição geopolítica das vacinas). De que modo é possível continuar pensando sobre a desigualdade estrutural e a intervenção estatal?

 

É uma excelente pergunta e começarei minha resposta dizendo que vejo a Covid-19 como uma tempestade perfeita de irracionalidade e injustiça capitalista. A pandemia é o ponto no qual convergem todas as falhas e contradições do sistema, incluídas as que você menciona. Muitas vezes se diz, e com razão, que o vírus serviu como diagnóstico perverso, ao iluminar todas as lacunas de nossa sociedade. Mas não ouvimos falar o suficiente acerca do sistema social que gera essas lacunas, ainda que seja o mesmo sistema que nos trouxe o vírus, em primeiro lugar, e que está bloqueando nossos esforços para enfrentá-lo. Sendo assim, quero insistir nesse ponto: o que a pandemia diagnostica, na realidade, é a disfuncionalidade profundamente arraigada do capitalismo.

 

 

Para ver o motivo, consideremos de onde veio o vírus. Ocorre que o SARS-CoV-2, há muito tempo, estava abrigado em cavernas remotas, sem efeitos nocivos para o ser humano. No entanto, recentemente, o vírus passou para uma espécie intermediária e depois para nós. Então, o que causou esta “transferência zoonótica”? O que aconteceu para que os morcegos entrem em contato com a espécie intermediária e depois conosco? Duas coisas, ambas resultado direto do capitalismo: o aquecimento global, em primeiro lugar, e o desmatamento tropical.

 

Juntos, esses dois processos forçaram inúmeros organismos a sair de seus habitats naturais e a entrar em outros novos, onde começaram a interagir com espécies que nunca antes tinham encontrado, incluindo algumas que estão em contato conosco. O resultado foi uma série de epidemias virais entre os humanos, não “só” Covid-19, mas também AIDS, Ebola, SARS e MERS. Podemos estar certos de que virão mais, graças à persistência das mudanças climáticas e o desmatamento, que são impelidos implacavelmente pelo “desenvolvimentocapitalista.

 

De fato, o sistema capitalista está desenhado para destruir o planeta. Incentiva as empresas a que se apropriem da riqueza biofísica da forma mais rápida e barata possível, ao mesmo tempo em que as exime da responsabilidade de reparar o que danificam e repor o que consomem. Empenhadas em aumentar suas ações e lucros, dizimam as matas tropicais, bombardeiam a atmosfera com gases do efeito estufa e desencadeiam uma cascata crescente de pragas letais. Em resumo, é o capitalismo que gerou a pandemia, e nos trará muitas outras, a menos que o detenhamos.

 

Agora, vejamos o aspecto que você mencionou, ou seja, o Estado. O que se joga aí é o aspecto político da crise, que convergiu com o aspecto ecológico de um modo que exacerbou ambos e nos colocou em perigo. É verdade, é claro, que a pandemia seria horrível para os seres humanos de qualquer modo. No entanto, foi muito pior devido os 40 anos de financeirização neoliberal que afetaram as capacidades políticas que, de outro modo, teríamos conseguido utilizar para controlar a Covid.

 

 

Durante esse período, “os mercados” exigiram e receberam investimento estatal em massa da privatização da infraestrutura pública. Isso é verdade para a infraestrutura em geral, e para a infraestrutura de saúde pública em particular. Salvo algumas exceções, os Estados reduziram as reservas de equipes para salvar vidas, destruíram as capacidades de diagnóstico e reduziram as capacidades de coordenação e tratamento. E o que acompanhou o desinvestimento estatal foi a privatização. Além disso, uma vez destruídas as infraestruturas públicas, os governantes transferiram funções sanitárias vitais para provedores e seguradoras, empresas farmacêuticas e fabricantes com fins lucrativos.

 

Essas empresas controlam parte dessas capacidades, incluindo a mão de obra e as matérias-primas, a maquinaria e as instalações de produção, as cadeias de fornecimento e a propriedade intelectual, as instituições de pesquisa e os profissionais. E centrados somente em seus lucros e no preço de suas ações, importam-se muito pouco com o interesse público. Os resultados são trágicos, mas não surpreendentes. Um sistema social que submete os assuntos da vida e a morte à “lei do valor” estava estruturalmente preparado, desde o início, para abandonar milhões de pessoas à sua sorte diante da Covid-19.

 

Você também mencionou a desigualdade que ficou muito evidente sob as condições da pandemia. Um dos aspectos que ficou exposto é o racismo estrutural, que impregna todos os aspectos da crise atual. Em nível global, impacta na vertente ecológica, já que em grande medida o capital sacia sua sede de “natureza barata” retirando a terra, a energia e a riqueza mineral das populações racializadas, privadas de proteção política e de direitos acionáveis. Desproporcionalmente vulneráveis aos resíduos tóxicos, às “catástrofes naturais” e aos múltiplos impactos letais do aquecimento global, agora, estão no fim da fila da vacinação. Enquanto isso, em nível nacional, durante muito tempo foi negado às comunidades migrantes e BIPOC [em inglês, negras, indígenas e de cor] o acesso às condições que promovem a saúde: acesso a um atendimento médico de alta qualidade, água limpa, alimentos nutritivos, condições de trabalho e de vida seguras.

 

Não causa estranhamento, portanto, que seus membros se infectem e morram de forma desproporcional por causa da Covid. As razões não são misteriosas: pobreza e atendimento à saúde inferior; condições de saúde preexistentes relacionadas ao estresse, desnutrição e exposição a tóxicos; sobrerrepresentação em trabalhos na linha de frente que não podem ser realizados de forma remota; falta de recursos que permitam que rejeitem trabalhos inseguros e de direitos trabalhistas que permitam que tragam proteções; moradias que não permitem o distanciamento social e facilitam a transmissão; acesso reduzido à vacina. Em conjunto, essas condições ampliam o significado do slogan Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), fazendo sinergia com sua referência original à violência policial e contribuindo para alimentar os protestos atuais.

 

 

A cor, além disso, está profundamente entrelaçada com a classe, no sistema mundial capitalista em geral e no período atual em particular. De fato, os dois são inseparáveis, como demonstra a categoria “trabalhador essencial”. Se deixarmos de lado profissões da medicina, essa denominação abarca trabalhadores agrícolas migrantes, trabalhadores imigrantes dos matadouros e do empacotamento de carne, distribuidores dos depósitos da Amazon, motoristas de UPS (um sistema de envio de pacotes), auxiliares das residências de idosos, limpadores dos hospitais, repositores e caixas dos supermercados, aqueles que entregam comida para levar. Especialmente perigosos em tempos de Covid, esses trabalhos são em sua maioria mal remunerados, não sindicalizados e precários, desprovidos de auxílios e proteções trabalhistas, sujeitos a uma supervisão intrusiva e aceleração implacável. Embora exista uma diversidade de pessoas, são ocupados de forma desproporcional por mulheres e pessoas afro-americanas.

 

Em conjunto, esses trabalhos, e aqueles que o desempenham, representam o rosto da classe trabalhadora no capitalismo financeirizado. Não se personifica mais na figura do homem branco mineiro, operário da fábrica e trabalhador da construção, mas, ao contrário, essa classe também inclui os trabalhadores e as trabalhadoras de serviços com salários baixos e a grande maioria de cuidadores/as. Pagos abaixo de seus custos de reprodução, quando são pagos, são expropriados/as e explorados/as. A Covid trouxe à luz também esse sujo segredo. Ao justapor o caráter essencial do trabalho dessa classe com a subvalorização sistemática que o capital faz dele, a pandemia evidencia outra das principais contradições da sociedade capitalista: a incapacidade do mercado da força de trabalho em calcular com precisão o valor real do trabalho.

 

Em geral, a Covid é uma tempestade perfeita de irracionalidade e injustiça capitalista. Ao aumentar os defeitos inerentes do sistema até o ponto de ruptura, faz brilhar um raio de luz penetrante sobre todas as contradições estruturais de nossa sociedade. Tirando-as das sombras e expondo-as à luz, a pandemia revela o impulso inerente do capital em canibalizar a natureza até a beira da conflagração planetária, desviar nossas capacidades dos trabalhos verdadeiramente essenciais da reprodução social, eviscerar o poder público a ponto de não poder resolver os problemas gerados pelo sistema, alimentar-se da riqueza e a saúde cada vez piores das pessoas racializadas, não só explorar, mas também expropriar, a classe trabalhadora. Não poderíamos pedir uma lição melhor de teoria social.

 

Entre as diferentes medidas de isolamento anunciadas pelo governo na Argentina, um das que mais gerou expectativa foi a relacionada às trabalhadoras em casas de família, se poderiam ou não se deslocar até seus locais de trabalho. Como essa crise e essa pandemia impactam na revalorização do que você chamou de “reprodução social” e o problema das “cadeias globais de cuidado”, junto com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya, em ‘Feminismo para os 99%: um manifesto’?

 

Assim como as outras dimensões da crise, o aspecto de gênero também tem suas raízes no capitalismo, que subvaloriza cronicamente as tarefas de cuidado e fomenta as crises de reprodução social. Hoje, vemos isso claramente. O mesmo regime neoliberal que se despojou da infraestrutura dos cuidados públicos, também quebrou os sindicatos e reduziu os salários, forçando a aumentar as horas de trabalho remunerado por lar, inclusive de cuidadores/as principais. Desse modo, descarregou o trabalho de cuidados nas famílias e nas comunidades justamente no momento em que também estava requisitando as energias sociais que necessitávamos para realizar esse trabalho. O efeito foi uma crise aguda de cuidados, que surgiu inclusive antes da pandemia e que se intensificou.

 

 

Como sabemos, a Covid transferiu novas e importantes tarefas de cuidado para as famílias e comunidades, já que o cuidado das crianças e a escolarização foi repassado para os lares das pessoas, durante o confinamento. A carga recaiu principalmente sobre as mulheres, que continuam realizando a maior parte das tarefas de cuidado não remuneradas. Não causa estranhamento, portanto, que muitas mulheres empregadas tenham deixado o seu emprego para cuidar de seus filhos/as e outros familiares, enquanto muitas outras foram demitidas por seus empregadores. Os dois grupos enfrentam importantes perdas de posição e de salário, caso se reincorporem ao trabalho.

 

Um terceiro grupo, que tem o privilégio de conservar o seu emprego e trabalhar de modo remoto, ao mesmo tempo em que realiza tarefas de cuidado, inclusive de crianças confinadas em casa, levou o multitasking a novos níveis de loucura. Um quarto grupo, que inclui tanto mulheres como homens, integra com honra os “trabalhadores essenciais”, mas recebem uma miséria, são tratados como se fossem descartáveis e é exigido deles que desafiem diariamente a ameaça de infecção, junto com o medo de levá-la para casa, para produzir e entregar as coisas que permitem que outros/as se refugiem em seu local.

 

Está claro, portanto, que as tarefas de cuidado se cruzam com a organização do mercado de trabalho, a economia política, o cuidado social e os auxílios do Estado. O problema principal é que a sociedade capitalista nutre uma profunda tendência a se aproveitar da gratuidade do trabalho de cuidados, canibalizar as capacidades de cuidados e o preenchimento das mesmas. Isso se aplica ao capitalismo em geral. No entanto, o atual capitalismo neoliberal é especialmente predatório nesse aspecto. E a pandemia deixou claro como é importante o trabalho de cuidados, o quanto precisamos dele e como é irracional viver em uma sociedade que não o valoriza.

 

Dois extremos a ser considerados em torno da política e a economia são a dívida e os subsídios. A Argentina, por exemplo, está negociando suas capacidades de pagamento. Por outro lado, neste ano, vimos os anúncios históricos de Joe Biden sobre os subsídios. Quais são as possibilidades desse capitalismo entre o equilíbrio macroeconômico e a necessidade da economia injetada no bolso?

 

A dívida tem um papel especial no capitalismo neoliberal. Nas formas anteriores, as finanças eram um ramo da economia entre outros. Apoiavam o ramo produtivo, fornecendo créditos que permitiam a inovação e o crescimento. Mas esse não é o caso no neoliberalismo. Agora, as finanças não são simplesmente um ramo discreto da economia capitalista. Ao contrário, seus tentáculos se estendem por todas as partes da economia. Este é um exemplo disso: os fabricantes de automóveis, hoje em dia, ganham menos produzindo e vendendo carros do que oferecendo empréstimos aos compradores para que comprem carros. Em outras palavras, estão no negócio do crédito, que é um negócio mais rentável que o da produção.

 

 

A dívida circula por todo o sistema econômico, não só através dos bancos, mas também das empresas, Estados, lares e instituições financeiras mundiais. Falamos de “dívida soberana”, mas é irônico porque são os detentores dos títulos que determinam o que o Estado tem que fazer para que o crédito continue fluindo. Vimos muitos desses exemplos na crise financeira de 2008, quando a União Europeia soltou a mão da Grécia para agradar os credores. Essa forma de capitalismo mudou dramaticamente o equilíbrio de poder entre Estados e investidores, corporações e mercados financeiros.

 

Ao mesmo tempo, houve um grande aumento da dívida privada. As famílias trabalhadoras não ganham o suficiente para suportar seus gastos de manutenção por meio de seus salários. Dependem de cartões de crédito, de dívidas estudantis, hipotecas e créditos para o automóvel. Este é outro traço definidor do capitalismo atual, que não só explora as classes trabalhadoras, mas simultaneamente as expropria através do endividamento. Pais e mães não podem mais esperar que seus filhos vivam melhor que eles. Ao contrário, em muitos casos, estarão piores. A dívida é uma grande parte dessa história.

 

Você analisou o capitalismo não apenas como um sistema econômico, mas a partir do que chamou de “visão expandida do capitalismo”. As crises que vivemos atualmente não são apenas parte de um sistema econômico. Como, então, construir horizontes emancipadores?

 

O capitalismo não é apenas um sistema econômico, é uma forma de organizar a relação do sistema econômico com outras esferas da sociedade nas quais a economia se apoia. Organiza a relação da economia com a natureza, com a vida familiar e a reprodução social, e com a esfera política. Todos esses elementos são suportes necessários ou condições de fundo para uma economia capitalista. Não pode existir sem o trabalho não remunerado que sustenta os/as trabalhadores/as, os processos naturais que sustentam os sistemas ecológicos e uma grande variedade de bens públicos, incluindo os marcos legais, as forças repressivas, a oferta de dinheiro, a infraestrutura e as comunicações.

 

 

No entanto, a sociedade capitalista institui uma relação perversamente contraditória entre sua economia e esses apoios necessários. Incentiva os capitalistas a canibalizar as próprias condições de fundo das quais dependem para devorar nossas capacidades políticas, ecológicas e assistenciais. Por isso, nossa crise atual é sobre tudo. Não é “apenas” uma crise econômica. Também é uma crise ecológica, política e de reprodução social. Não podemos entender o que está acontecendo, a menos que adotemos uma visão ampliada do capitalismo, que problematize a relação da economia com suas condições de fundo não econômicas. A visão tradicional do capitalismo como sistema econômico não pode esclarecer a situação atual.

 

Em relação à emancipação, devemos ampliar nossa ideia do que conta como luta anticapitalista. Não são apenas as lutas nas fábricas entre os/as trabalhadores/as e patrões/as, ainda que sejam muito importantes. São também as lutas pela educação, moradia digna e saúde pública. Essas são lutas sobre a reprodução social, que envolvem o setor público e o privado. São lutas sobre a disfunção capitalista, por um novo sistema social, que repensaria toda a relação entre a sociedade humana e a natureza não humana, entre a produção e a reprodução, entre a economia e a política.

 

Em uma de suas últimas obras, dedicou-se a uma análise das “fronteiras”, e uma das fronteiras em seu trabalho se refere à existente entre os feminismos e a política. O que ocorre nessa “fronteira”?

 

Desenvolvi essa ideia sobre a luta de fronteiras para tentar me conectar com essa visão ampliada do capitalismo. Existem lutas não apenas dentro do setor econômico, entre o trabalho e o capital. Também existem lutas de fronteiras entre o sistema econômico e o Estado, e não só o Estado, mas também sobre capacidades estatais e instituições públicas. Algumas dessas lutas ocorrem em diferentes níveis. O caso da produção e a reprodução é de especial interesse para o feminismo porque tem a ver com fronteiras de gênero. Historicamente, a reprodução era uma esfera feminina e a produção uma esfera masculina. Hoje em dia, isso não está delimitado de modo tão claro e como as mulheres entraram em massa no mercado de trabalho remunerado, possuem duplo turno de trabalho.

 

 

Por que as mulheres, hoje em dia, em muitos países, estão à frente nesta luta de fronteiras sobre a reprodução social? As mulheres que ensinam não lutam apenas por melhores salários, mais aulas e mais recursos para as escolas. Estão se alinhando com os pais e mães que têm trabalhos em outros setores e que querem uma educação melhor para seus filhos/as. As mulheres que trabalham nesses setores, diferente dos trabalhadores industriais que às vezes lutam apenas por melhores salários, lutam pela qualidade do serviço.

 

As enfermeiras são outro exemplo: estiveram lutando não apenas por melhores salários, mas também pela quantidade de pacientes que podem tratar, para oferecer melhores condições. Esses são casos interessantes, porque não são lutas apenas pelas condições de trabalho, mas também pelos recursos e pela qualidade dos serviços. Envolve o Estado e a reprodução social, a esfera econômica e a social. Tudo está relacionado. As lutas pela reprodução social são também as lutas trabalhistas.

 

Grande parte da militância trabalhista não vem dos trabalhadores industriais, mas de quem faz o trabalho de reprodução social. Essa é uma grande mudança na luta de classes, no que significa a luta de classes. Todas essas mudanças estão transformando a classe trabalhadora, que não é mais composta apenas pelos/as trabalhadores/as das fábricas, mas também por aqueles/as que trabalham em serviços, reprodução social, nas comunidades ou lares e que não recebem uma remuneração. Essas pessoas também fazem parte da classe trabalhadora. Não sofrem apenas a exploração, mas também a expropriação por meio da dívida. O problema da dívida também faz parte da luta de classes.

 

Novamente, quando temos essa visão ampliada do capitalismo, é preciso levar em conta as formas de opressão, exploração e expropriação. Tem-se um panorama mais amplo sobre quais lutas são potencialmente ou diretamente anticapitalistas. E, depois, tem-se um panorama ainda maior de quais seriam as alianças possíveis. Se essa forma de capitalismo é a raiz de todas as crises, irracionalidades e injustiças, então, tem-se, ao menos potencialmente, a possibilidade de ter pessoas que estão situadas em diferentes lugares do sistema e, portanto, com diferentes preocupações existenciais pelas quais lutar. Isso significa que continua existindo possiblidades de que essas pessoas vejam as relações entre si, nesse sistema predatório.

 

Você escreveu sobre onde o neoliberalismo encontrou seu calvinismo, seu carisma, e a respeito dos vínculos entre neoliberalismo e progressismo. Quais são os desafios, em 2021, para continuar lendo a partir de classe e identidade, “redistribuição” e “reconhecimento”, pilares de seu trabalho?

 

Tenho um diagnóstico completo, uma espécie de diagnóstico ao modo de Gramsci, de como uma filosofia econômica tão daninha para tanta gente conseguiu suficiente apoio político e legitimidades para se tornar a força dominante e hegemônica para se apoderar dos governos em todo o mundo. Minha ideia é que isso nunca poderia ter acontecido, se a única história estimada tivesse sido o projeto econômico, já que é prejudicial para os pobres, a classe trabalhadora e a classe média.

 

Nunca poderia ter tido êxito somente a partir de sua filosofia econômica. Precisavam de algo a mais. E isso é o que Luc Boltanski e Ève Chiapello chamaram de “novo espírito do capitalismo”, e graças ao qual o neoliberalismo conseguiu cooptar, em minha opinião, um setor importante dos novos movimentos sociais que têm carisma e legitimidade: o feminismo, os direitos LGBTQ, os direitos civis, movimentos antirracistas e, ultimamente, também os movimentos ambientalistas.

 

 

O que o neoliberalismo fez foi sacudir os setores liberais convencionais dominantes, que nunca foram muito críticos, nem anticapitalistas, e deu um tapinha nas costas deles, fazendo-os sentir que tinham poder. Temos o feminismo corporativo liberal, como por exemplo Hillary Clinton, que fez tudo o que Wall Street queria e também promoveu um tipo de feminismo específico, concentrado em eliminar barreiras discriminatórias para que algumas mulheres talentosas ascendessem na hierarquia corporativa. Essa visão feminista não está relacionada a uma igualdade social real, está relacionada à meritocracia.

 

Black faces in high places, um livro crítico sobre o racismo, também ressalta esses conflitos a partir da presidência de Obama. É a velha história sobre como o neoliberalismo obtém o seu carisma. Chamo essa aliança de “neoliberalismo progressista”, porque é muito diferente do que acontece com Bolsonaro, que é um “neoliberal reacionário”.

 

Depois disso, houve alguns eventos importantes: 2016 foi um momento crucial nos Estados Unidos e, provavelmente, afetou o mundo todo. Naquele momento, Bernie Sanders enfrentou Hillary Clinton pela indicação democrata à presidência, e do outro lado estava Trump, que não era o típico republicano neoliberal. Havia dois desafios para o neoliberalismo, da direita e a esquerda. Por exemplo, alguns trabalhadores brancos que votaram em Sanders nas primárias, não votaram em Hillary Clinton nas eleições, mas, sim, em Trump. Houve uma rejeição popular contra o neoliberalismo, que é o neoliberalismo progressista. A verdade é que a rejeição mais forte partiu da direita. A esquerda também se manifestou, mas a direita a conseguiu capitalizar melhor.

Agora, temos a pandemia e, como disse no início, é uma grande lição de teoria social. A pandemia nos mostra que o livre mercado não pode fazer o que é necessário para garantir que vivamos de maneira decente. Acredito que o neoliberalismo como filosofia hegemônica está morto: segue no poder, mas não tem mais credibilidade. Estamos nesse “interregno” de Gramsci, no qual aparecem todos os tipos de sintomas mórbidos.

 

Joe Biden não é um neoliberal progressista. A ação transcorre no Partido Democrata, entre a velha facção Clinton e a facção Sanders. Sanders tem muito mais controle do que antes, embora não possua todo o controle. Essa é uma forma de ver o “interregno”. As contradições são graves, mas é um momento importante e há oportunidades reais para a esquerda. Não acredito que o fascismo esteja ao virar da esquina e que seja necessário correr para pedir proteção ao liberalismo. Se chegarmos a esse ponto, lutarei junto com os liberais contra o fascismo, mas isso depende do momento e agora não é o momento. O movimento de Sanders deveria construir um novo bloco anti-hegemônico com todos os setores anticapitalistas que já mencionamos.

 

Penso que temos margem de ação, se não nos conformamos apenas com a política de reconhecimento. É preciso deixar de lado a cultura do cancelamento e as microagressões. Servem como proteína para a direita. É preciso se concentrar na estrutura, nas instituições, nas demandas e lutas que podem realmente melhorar a vida material da classe trabalhadora. Existe uma oportunidade aí.

 

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