“Depois de Auschwitz o amor e o estudo me salvaram, ainda tenho esperança”. Entrevista com Liliana Segre

Auschwitz | Foto: Pixabay

01 Setembro 2020

Caros rapazes, agora é com vocês. Peguem pela mão seus pais, seus professores. Neste momento de incerteza, peguem pela mão a Itália. Liliana Segre, uma sobrevivente do Holocausto, se dirige aos mais jovens como uma avó, como sempre fez desde que foi nomeada senadora vitalícia por Sergio Mattarella, em 19 de janeiro de 2018, e por trinta anos como testemunha nas escolas. Ela completará 90 anos em 10 de setembro. O Corriere a encontra no apartamento de Pesaro que pertencia a seus sogros. Com ela estão os policiais da escolta que lhe foi designada devido às mensagens de ódio e as ameaças, que se tornaram um apêndice afetuoso da família. Aqui na região das Marche, de onde vieram seus avós maternos, Liliana Segre passa todos os verões. Aqui, à beira-mar, ela conheceu o homem que se tornaria seu marido e pai de três filhos, o amor salvífico depois do abismo.

A entrevista é de Alessia Rastelli, publicada por Corriere della Sera, 30-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

Liliana Segre (Foto: Reprodução do Yoputube do Senato Italiano)

 

Eis a entrevista. 

Senadora Segre, como a senhora passou os meses de lockdown?

Fiquei em minha casa em Milão. Foi muito difícil, sentia saudades dos meus filhos e dos meus netos, sentia-me menos forte e o medo de morrer sozinha surgia de vez em quando. A cidade lá fora estava deserta, ouviam-se apenas as sirenes das ambulâncias. Quantas ouvimos na Lombardia! Em minha mente, ecoavam outras sirenes, as dos bombardeios, antes de me deportarem, quando tínhamos que correr para os abrigos. Naquela época os chacais entravam nas casas que ficavam vazias e mesmo agora, em diferentes formas, reapareceram: fazendo negócios enquanto na televisão víamos todos aqueles caixões. Isso me entristeceu, me deixou abatida, me fechei um pouco, mas agora está melhor. Eles não me oprimiram na época e não tiveram sucesso hoje. Ainda sinto esperança.

De onde vem ela?

Em primeiro lugar, pelas muitas histórias de heróis da saúde, médicos e enfermeiros que escolheram estar do lado certo. Eles são os vencedores, não os chacais. E depois há os jovens. Não são só os que vão à discoteca todos amontoados, arriscando-se a transmitir a Covid, nosso inimigo invisível, aos avós e aos pais. Existem outros maravilhosos. Infelizmente, os velhos entubados acabam sucumbindo. Por isso, cabe ao mais jovem neste momento passar uma palavra de ordem entre eles, a de um sacrifício corajoso, para ser, até que tenhamos uma vacina, como Eneias carregando o pai Anquises nos ombros. Seria realmente um hino à vida. Assim como seria importante, na atual incerteza sobre a reabertura das escolas, que fossem eles, os jovens, a dizer: ‘Estamos aqui’. Presencial ou à distância, sem aproveitar esse momento para faltar às aulas. Eu fui mandada embora quando tinha oito e foi um drama. Enquanto o amor pelo estudo, em vários momentos, me salvou.

De que forma?

Em Auschwitz, trabalhei como uma escrava em uma fábrica de munições. A certa altura, tive que entregar pedaços de ferro para outro trabalhador escravo. Ele era francês, professor de história. Era proibido falar um com o outro, mas conseguíamos trocar algumas palavras e assim todos os dias, nos dois minutos da entrega, ele me contava um acontecimento do passado. Por um tempo, naquele momento, não éramos mais “peças” sem nome, mas uma aluna e um professor. O estudo foi depois decisivo no meu retorno do campo de concentração. Eu era um animal ferido, tinha perdido o meu pai e os avós, concentrar-me na recuperação dos anos escolares perdidos permitiu-me não enlouquecer.

 

 

A senhora alguma vez voltou para Auschwitz?

Não, não vou voltar, porque não aguento. Embora eu sinta muito porque perdi pessoas muito queridas lá. Meu pai foi a figura mais importante da minha vida. Minha mãe Lúcia morreu quando eu tinha um ano e meio, então ele era tudo. Ele me amou e eu o amei com tudo de mim. Continua sendo o grande nó não resolvido da minha vida. Demos um ao outro a maior dor do mundo: eu pela perda dele, ele porque quando soltou minha mão na rampa de Auschwitz-Birkenau, acho que pensou que eu não conseguiria sobreviver. Eu tinha 13 anos. Ainda me lembro do meu último aniversário antes do campo de concentração, dois dias depois de 8 de setembro de 1943.

 

Crianças no campo de Theresienstadt - Wikimedia Commons

 

Onde vocês estavam?

Desabrigados em Inverigo, em Brianza. Em 25 de julho de 1943, com a queda do fascismo, muitos se iludiram que o pesadelo havia acabado. Das janelas voavam símbolos fascistas e estatuetas de Mussolini. Mas não durou muito e foi como acordar de uma bebedeira. Em 8 de setembro, o centro-norte da Itália foi colocado sob o controle militar alemão e a administração civil dos fascistas. Duas semanas depois, foi anunciado que os judeus italianos seriam deportados. Dormia em um quarto com meu pai, ainda me lembro dele batendo a cabeça na parede. Ele estava dividido entre fugir comigo ou ficar. Meu avô não teria condições de viajar. Talvez faltasse a figura de minha mãe, uma mulher jovem e prática que poderia ter encorajado o marido. Apesar de tudo, em 10 de setembro de 1943 meu pai me levou para compartilhar a festinha de uma menina desabrigada que fazia aniversário no mesmo dia que eu. Ficamos apenas meia hora: já sentia que aquela festa não era para mim.

No fim vocês tentaram fugir para a Suíça.

Sim, 9 de dezembro de 1943, com meu pai e dois primos. Estávamos nas mãos de contrabandistas horríveis, não muito diferentes dos contrabandistas de hoje. Pagamos 45 mil liras para atravessar a fronteira e mais mil para passar a noite sob um teto. No entanto, a Suíça nos rejeitou. E depois se seguiram uma após a outra a prisão de Varese, San Vittore em Milão, a plataforma 21, Auschwitz-Birkenau, por culpa única de ter nascido.

 

 

A senhora e vários outros sobreviventes relataram que a salvação veio por acaso.

Em Auschwitz, um passo para a frente ou para trás podia mudar o destino. Estou velha, mas nunca saí daquela que fui naquela época. E a cada ano que passa, me pergunto ‘Mas como eu fiz, mas como eu fiz, mas como eu fiz?’. Eu poderia continuar ao infinito, mas não tenho a resposta. Homens aqui, mulheres ali: quando descemos do trem e nos separamos, meu pai disse-me para ficar com uma conhecida nossa, a senhora Morais. No entanto, quando o guarda me perguntou se eu estava sozinha, tive o instinto de dizer sim. Acabei em uma fila, a senhora Morais em outra, e foi para o gás.

Primo Levi escreveu que “faltam à nossa língua palavras para expressar esta ofensa, a demolição de um homem”. Como a senhora as encontrou quando começou a dar testemunho?

Peguei muitas emprestadas de Primo Levi. Teve a coragem de escrever imediatamente, entre 1945 e 1947. Li Se questo è un uomo na edição Einaudi de 1958 e aos poucos descobri uma forma de dar voz ao que havia vivido. O espanto, o espanto com a maldade alheia que Primo Levi sentia diante dos nazistas que empurravam os prisioneiros nos trens, senti-o o tempo todo no campo de concentração.

 

 

Vocês se conheceram?

Não, mas eu escrevi para ele duas vezes. A primeira imediatamente após ler Se questo è um uomo, porque esperava que seu amigo Alberto, sobre quem ele escrevia, pudesse ser meu pai. A segunda vez foi depois do lançamento de I sommersi e i salvati, em 1986. Deixou-me muito perturbada. “Chega - eu disse a ele - se de Auschwitz nunca se sai, como você afirma, e se os salvos também estão submersos, então não há esperança”. Ele respondeu com uma carta seca: "Se você ainda não entendeu, é inútil falar sobre isso." No ano seguinte tirou a própria vida. Jamais irei visitar o campo de concentração, não aguento: sinto muito, perdi pessoas queridas ali. Primo Levi voltou a argumentar que "se não é possível compreender, conhecer é necessário, porque o que aconteceu pode voltar". Quando cheguei a Milão depois de Auschwitz, parecia-me normal contar, mas logo compreendi que a experiência que vivi permanecia inimaginável para a maioria. Uma professora de grego na sala de aula, na frente de todos, disse que minha deportação foi "uma experiência interessante". Foi terrível. Durante anos não falei. Só depois de uma forte depressão, por volta dos 60 anos, é que percebi que tinha de cumprir meu dever. Acompanhou-me no percurso a minha doce e determinada amiga Goti Bauer, também sobrevivente de Auschwitz.

Também seu marido Alfredo foi um sustento

Salvou-me com o amor quando o conheci aos 18 anos, em Pesaro, onde passava as férias com os meus avós maternos. Em 1943, ele foi um dos seiscentos mil "não", um dos soldados italianos capturados que não quiseram aderir à República Social e foram encerrados em campos de prisioneiros. Muitos anos depois, quando decidi testemunhar, sabia que ele estava lá para me acolher sempre que eu voltava para casa. Foi fundamental.

Houve apenas um momento de crise.

A certa altura o vi mudar. Ele ficou muito desapontado com a forma como as coisas iam em nossa democracia. Ele pensou que o que havia sofrido havia sido inútil. Aproximou-se à direita, a Almirante. Para mim, com a minha história, não era aceitável. Mas eu não queria limitar sua liberdade, simplesmente pedi que ele escolhesse. E ele me escolheu.

 

 

Um ganhador do Nobel como Imre Kertész (1929-2016), que também sobreviveu ao Holocausto, lamentou a banalização da memória. A senhora mesmo ficou perplexa com "A vida é bela" de Roberto Benigni.

Não é um filme ruim, mas não é realista. Nenhuma criança poderia ter permanecido escondida no campo de concentração. Nenhum casal se comunicando com um alto-falante em um campo de extermínio. As crianças iam direto para o gás ou eram vítimas de experiências terríveis. Benigni deveria ter dito que se tratava de um conto de fadas.

A senhora nem mesmo se convenceu com a "Lista de Schindler" de Steven Spielberg.

As figurantes eram todas garotas lindas e gordinhas. Nós éramos esqueletos. E é improvável que Schindler conseguisse tirar do trem um judeu que já estava preso lá dentro. Lembro que fui à estreia com as escolas, no Odeon de Milão, justamente com Goti Bauer. E na cena em que o nazista atira da varanda, houve aplausos. Foi terrível. Eu não pude me segurar de pé e sai. Vi a Lista de Schindler mais tarde, às duas da tarde, em um cinema meio vazio. Felizmente, graças aos meus testemunhos, encontrei outros jovens, com excelentes professores, que com o tempo mostraram uma atitude muito diferente. Às vezes, depois de anos, eles me encontram e se lembram de detalhes da minha história. Mesmo que fosse só por um deles, valeu a pena. 

Falando sobre o conflito entre israelenses e palestinos, no Festival de Literatura de Mântua 2019, Abraham Yehoshua disse que "o excesso de memória é ruim para os dois povos". O que a senhora acha?

Respeito a opinião de todos, mas talvez seja um fato que mesmo um grande escritor não tenha vivido algumas experiências na própria pele. Em vez disso, quando fui a Israel pela primeira vez, percebi que para um estado que queria ser vitorioso, cercado por aqueles que queriam aniquilá-lo, o Holocausto era um tema difícil. Os nascidos lá tinham dificuldade para aceitar que milhões de pessoas tivessem morrido. Demorou anos, especialmente o julgamento de Eichmann, para que se reconhecesse que pessoas subnutridas, desarmadas, oprimidas, nada poderiam ter feito nem mesmo contra um único nazista armado em uma torre.

Recentemente, a reabertura dos arquivos do Vaticano de Pio XII revelou que os irmãos de sua mãe pediram a ajuda da Santa Sé para saber notícias sobre a senhora e seu pai.

Meus tios me falaram sobre isso depois da guerra. Infelizmente, foi uma tentativa em vão. Mas em 1945 fui eu quem recorreu ao meu tio Dario Foligno. Convertido ao catolicismo em 1933, depois de ler Santo Agostinho, era advogado da Sacra Rota. Pedimos audiência a Pio XII porque eu procurava desesperadamente notícias sobre o meu pai.

 

 

Inúmeras dúvidas foram levantadas sobre a atuação de Pio XII a respeito do Holocausto. Como foi o vosso encontro?

Causou uma grande impressão em mim. Pio XII tinha olhos negros como fendas. Mais tarde, vendo os cortes das pinturas de Fontana, sempre pensaria naquele olhar. Ele me disse para não me ajoelhar: ‘Sou eu quem deveria fazer isso diante de você’. Meu julgamento está suspenso sobre a sua conduta. Há anos esperava pela abertura dos arquivos. Mas tem uma bela foto dele abençoando em San Lorenzo, em Roma, depois dos bombardeios. Em minha fantasia sempre me perguntei: por que ele não se colocou de braços abertos diante das locomotivas que iam para os campos de concentração?

Durante o lockdown, o Observatório Mediavox sobre o ódio on-line da Universidade Católica de Milão encontrou postagens antissemitas no Twitter sobre um suposto poder judeu sobre as finanças. Em julho, o presidente Mattarella foi vítima de insultos sociais por ter Sami Modiano, sobrevivente do Holocausto, Cavaleiro da Grã-Cruz. Após a aparente trégua Covid, o ódio se reacendeu?

Sempre há antissemitismo e racismo. Em alguns momentos é mais fácil que ressurjam. É claro que, se o medo do outro retorna, demonizado como um infectado na Europa saudável, e nos acostumarmos a pensar que existem homens fortes em quem confiar, então não podemos ficar muito tranquilos. Tem havido cidades que fizeram barricadas por causa de meia dúzia de infelizes que chegaram do mar.

 

 

Os trabalhos da sua Comissão contra o ódio serão retomados?

Eles pararam por causa da Covid. Sei que vou completar 90 anos e estou menos forte fisicamente, mas acredito muito nisso. Pedirei ajuda de pessoas que têm menos anos e mais energia, mas estou pronta para orientá-las e espero que recomece em breve.

 

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