Antônio Vieira, a estátua e a vida

"Padre Antônio Vieira", pintura de Cândido Portinari, 1944

01 Julho 2020

Para Antônio Vieira, "o mundo era lugar de peregrinação e nunca de desterro, um império em que a paz era a primeira condição das felicidades esperadas, às quais atribuía duas perpetuidades: uma neste mundo até ao fim dele e outra no outro sem fim. O império da paz e das felicidades esperadas, extensível a todos os homens e a todos os povoseuropeusíndiosnegros, chineses e japoneses, haveria de verificar-se na terra e não apenas no céu", escreve Pedro Calafate, professor universitário, em artigo publicado por Diário de Notícias, 21-06-2020.

 

Eis o artigo.

 

Foi seguramente um teólogo e um missionário com a sua opção pela verdade, e dela fazia parte a afirmação da unidade do gênero humano e da igualdade natural entre os homens, independentemente de coordenadas culturais ou geográficas. Partindo daí, viveu o cristianismo em todas as esferas da vida: espírito e corpo, homem e sociedade, reino e império, tempo e eternidade.

 

Assumiu um cristianismo combativo que o fez considerar, contra um certo angelismo, que nem sempre é maior espiritualidade o que mais se opõe ao corpo, razão por que cumpria assumir o homem na sua plenitude, nela se incluindo a sua natureza social e a dimensão política que dela emanava, projetando-se num ideal de justiça e paz universais. A respeito da grandeza do seu projeto, considerou que se era sonho dormia e que caso fosse loucura estaria louco, embora tal loucura fosse não a dos que estavam abaixo da razão e por isso se buscavam, mas a dos que estavam acima dela e por isso se deixaram. E ao deixarem-se partiram e se excederam, levantando-se a si sobre si, porque o mundo era lugar de peregrinação e nunca de desterro, pensando um império em que a paz era a primeira condição das felicidades esperadas, às quais atribuía duas perpetuidades: uma neste mundo até ao fim dele e outra no outro sem fim.

 

 

Vieira sublinhou muito a primeira: o império da paz e das felicidades esperadas, extensível a todos os homens e a todos os povos, europeus, índios, negros, chineses e japoneses, haveria de verificar-se na terra e não apenas no céu. Na terra inteira: "Inteira repito, não em sentido figurado, mas pleno e genuíno, ou seja, na terra inteira."

 

Não era um império entendido apenas espiritualmente, circunscrito à paz interior e das almas. Isso não chegava nem bastava perante as injustiças do mundo. Mas estava longe de ser um império colonial, no rigor histórico do termo. Era a expressão política da unidade sempre afirmada do gênero humano, desse desejo de irmandade e paz entre os homens em torno de princípios éticos universais a que o poder civil deveria submeter-se. Pressupunha uma evangelização universal, porque era no fundo a paz que Cristo nos deixara, e uma igreja bem mais perfeita do que a do seu tempo, a par de uma autoridade política ou civil à escala do mundo, não imposta pela espada, mas resultando de um acordo entre príncipes soberanos. Vieira considerou que, após a evangelização universal, haveria um momento em que os reis da terra "mediante alguma aliança se ponham todos de acordo entre si", "sacudindo" parte da sua soberania em favor de um monarca universal. Reinaria então a paz nos últimos séculos da história e a todos seria dado "gozar espiritual e temporalmente a felicidade" desse novo e futuro estado do mundo, em que "executiva, completa e plenariamente se acabaria a maldade". É disso que fala quando invoca o império universal.

 

 

No plano político, três anos antes de morrer, consagrou no Brasil a tradição da filosofia política ensinada por Azpilcueta e Suárez em Coimbra e por Molina e Fernando Pérez em Évora. Em voto de vencido contra os seus confrades, e invocando os princípios cristãos, defendeu que em matéria de soberania e liberdade valia tanto a coroa de penas como a de ouro e tanto o arco como o cetro, porque o poder civil radicava na razão natural, comum a todos os homens, sendo naturalmente constitutivo das comunidades por eles formadas.

 

Já no plano da igreja universal não foi defensor da conversão pela espada, mas pelo poder da palavra, razão por que se incumbiu e não sucumbiu na tarefa de aprender as línguas dos povos indígenas.

 

Incorporando uma experiência de vida difícil de exagerar, cedo percebeu que em se tratando da fé seria insensato impor um ideal de pureza que afastaria os homens em vez de os aproximar, e que por isso era preferível ferir a rigidez da lei, do mesmo modo que se fere o tronco de uma árvore para enxertar a seiva da diversidade dos povos, obtendo assim copiosa abundância de frutos. Assim deveria ser a árvore do cristianismo. Em matéria de fé, pensando não apenas nos gentios mas também nos judeus, o caminho mais acertado era o de aceitar ritos e costumes ancestrais que não afrontassem a razão natural, o de não sufocar "o imemorial costume de uma raça" pela violência ou pelo desprezo, mostrando grandeza de alma para, sem pôr em causa a "pedra angular" que une as extremidades, aceitar condições, interpor dispensa, "para distinguir e mostrar as próprias extremidades unidas, as quais não poderão distinguir-se suficientemente sem algum vestígio da antiga diferença". Que mais poderia dizer um jesuíta no século XVII, quando o mesmo disse o Papa Francisco no 2.º Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em 2015, na Bolívia?

 

 

Com essa mesma abertura de espírito defendeu que os africanos e os ameríndios poderiam obter a salvação sem o batismo, antes da chegada dos missionários, e que, falando dos judeus, não era legítimo considerar a existência de povos intrinsecamente maus, pois, assim como houve judeus que condenaram Cristo outros houve que levaram as mãos ao peito.

Então, "dizer que todos são maus é erro patente e efeito de ódio" porque "o sangue é o que Deus dá a cada um sem eleição de quem o tomou". Estava feita a afronta aos inquisidores. Mas não ficou por aí, pois teve a coragem de escrever, a respeito dos juízes do Santo Ofício, que se o "ofício" era "santo", eles eram homens, tal como os réus que condenavam, e que se o tribunal lhes poderia dar autoridade não lhes dava a ciência, e ao fazê-los temidos não os fazia respeitados. E quis também esclarecer que não era amigo de autoridades, porque geralmente não se conformavam com quem dizia o que ainda não fora dito.

 

A respeito da aceitação da salvação dos gentios fora do batismo, antes da chegada dos missionários, teve de confrontar-se com o legado de São Tomás e Suárez, dois dos pilares da sua formação teológica, invocando a sua experiência americana contra os raciocínios abstratos dos teólogos da sua igreja. Para Vieira, Deus não dera àqueles homens o conhecimento da lei natural que lhes permitiria distinguir o bem do mal, razão por que, na sua ignorância da lei, eram inculpáveis e por isso se salvariam. Ao não providenciá-los com o conhecimento da lei natural, Deus, na sua bondade, providenciou-os, permitindo que se salvassem. "Olhou por eles não olhando. Providenciou-os não os providenciando."

 

 

Quanto aos negros, considerou que a cor preta dos homens primava sobre a branca, porque congregava a luz tanto quanto a branca a disgregava. Que a cor preta da pele resultava do fato de os homens nascerem mais perto do Sol, não devendo traduzir-se em relações sociais assimétricas, e avisou que se a escravatura se fundasse na cor, nós portugueses éramos bem mais negros do que os povos do norte da Europa...

 

Mas na situação em que viveu, na sociedade brasileira, não assumiu uma postura abolicionista que tinha por inexequível. Sendo, como dizia, "homem com alma", foi também "alma com homem", o que o não livrou de ser expulso do Brasil, atravessando o mar apenas com o Livro na mão. Em Lisboa, depois de ser expulso pelos colonos portugueses, pediu ao rei que lhe permitisse regressar com o Livro na mesma mão, mas, desta vez, com a espada na outra.

 

 

Não aceitou a escravatura natural defendida por Aristóteles, porque os homens eram naturalmente iguais. Mas, "para contentar a tirania dos cristãos", como disse, referindo-se aos índios, "acomodamo-nos à fraqueza do nosso poder e à força do alheio, cedemos da sua justiça e faltamos à sua defesa". E ainda assim nunca bastava.

 

Na tradição jurídica vigente na época eram comumente aceites pelos juristas quatro títulos de escravatura legal: guerra justa, venda da liberdade própria em necessidade extrema, ser filho de mãe escrava, condenação por crime.



Várias vezes disse que aceitaria a escravatura dos índios se a lei fosse respeitada. Mas como não era, conseguiu a sua proibição. No caso dos negros vindos da África viu-se na situação de presumir que os títulos da escravatura legal haviam sido respeitados na África, embora toda a escravatura lhe repugnasse.

 

No século anterior, Maquiavel, confrontando-se com uma Itália que era maquiavélica muito antes de escrever O Príncipe, ensinara que era necessário considerar, por um lado, o que as coisas devem ser e, por outro, o que são. Vieira viveu entre estes dois planos e a sua lógica não foi binária, sem contudo perder o norte.

 

 

É frequente invocar-se um sermão de Vieira em que, dirigindo-se aos escravos africanos no Brasil, lhes diz que as suas dores se comparavam às de Cristo e que por elas seriam acolhidos no céu. Mas não é correto omitir que também escreveu, na mesma ocasião, que "dominarem os brancos aos pretos é força e não razão ou natureza" e que "cada um é da cor do seu coração". A mesma "reta razão" que desde Cícero era a madre do direito. Estaríamos então perante leis injustas que só por analogia poderíamos chamar leis. Mas terá sentido que, na sua circunstância, não tinha outra saída perante os seus ouvintes senão procurar sublimar aquela dor brutal. Se a mesma não encontrava eco entre os cristãos, que o tivesse ao menos em Deus.

 

É comum também invocar-se a carta que escreveu aprovando o esmagamento do quilombo de Palmares. Sim, entendeu que se o quilombo se perpetuasse, toda a estrutura econômica do Brasil ruiria, sem alternativa exequível. Mas antes tinha dito, na mesma carta, que a situação ideal era a da concessão da liberdade àqueles homens, tal como já defendera a respeito dos índios.

 

Certa vez, referindo-se aos seus labirintos e dilemas, disse que a vida era um jogo numa mesa redonda, não só por causa da redondeza da Terra mas porque numa mesa redonda não havia lugares marcados, tendo tanto direito a ganhar os ricos como os pobres, os senhores como os escravos, e que quem escravizasse seria escravizado. Lembra então que foi por termos escravizado na África que, na mesa redonda do jogo da vida, perdemos o Oriente para os holandeses. No fundo, a condição da vitória ou da derrota era o valor ético do livre arbítrio.

 

Da sua obra, recentemente publicada em 30 volumes, disse não ter sido escrita num cubículo mas à face do mundo, e da sua vida disse ter sido uma peregrinação vária e perpétua. Convém, pelo menos, não perder a perspectiva.

 

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