Dialogar com Deus graças à leitura. Artigo de Gianfranco Ravasi

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27 Mai 2020

"A leitura do texto sagrado tem como base o relacionamento com uma pessoa, Deus, que está vivo e presente no ato de ler, que se transforma assim em um diálogo. Aliás, como aconteceu com Santo Agostinho, produz efetivamente uma mudança interior, se essa experiência for vivida com fé e disponibilidade".

A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 24-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

Meditazione. O ensaio de Cecilia Falchini, monja em Bose, destaca como a meditação dos textos sagrados pode produzir uma mudança interior, se essa experiência for vivida com e disponibilidade. Uma das leituras mais intensas e apaixonadas que experimentei nos últimos meses diz respeito a um livro sobre a leitura, fascinante já no título, Uma maravilhosa solidão, de uma estudiosa extraordinária que nossos leitores conhecem bem, Lina Bolzoni. Em uma viagem através dos séculos e nas regiões da Europa, somos levados aos espaços mágicos das bibliotecas de autores como Petrarca ou Tasso, subindo à torre do castelo de Montaigne, parando diante dos retratos de nobres leitores, penetrando nos meandros de um “eu” que lê, por exemplo, os Evangelhos, como fazia Erasmo, encontrando o Verbo. Com base no tema proposto por esse livro, já apresentado em nosso suplemento, repropomos o ato de ler que um estereótipo sugere ser obsoleto em nossos tempos.

No entanto, já Leopardi em seu Zibaldone, em 5 de fevereiro de 1828, anotava: "Já pode-se dizer, na verdade, especialmente na Itália, que existem mais escritores do que leitores, uma vez que a maioria dos escritores não lê e menos ainda lê quem não escreve". Uma tendência que, no entanto, Goffredo Parise, na resposta a uma leitora do Corriere della Sera de 28 de julho de 1974, paradoxalmente invertia: “Os filhos de seus filhos, cara senhora, que não serão obrigados a ler mais nenhum livro, soltarão um suspiro de alívio; e talvez, naquele momento e por curiosidade turística, eles comecem a lê-los”. Não podemos saber se esse milagre ocorreu nos nossos dias informatizados.

O fato é que, no entanto, o fluxo de livros publicados é incessante devido à bulimia leopardiana de autores (muitas vezes deveríamos dizer "produtores"), enquanto a anorexia dos leitores (ou "consumidores") não parece diminuir. É assim que se desperdiçam os apelos à leitura de acordo com a retórica e lema (nunca seguido) de Daniel Pennac e de seu Como um romance de 1992: "O tempo para ler, como o tempo para amar, dilata o tempo para viver". O jovem Agostinho de Hipona já ouvia ecoar aquela voz que lhe sugeria "Tolle, lege!", como ele mesmo recorda em suas Confissões (8,12,29), com o desconcertante resultado final que conhecemos bem. O próprio Jesus, como consta no Evangelho de Lucas, praticava a leitura, como é atestado por um episódio que ocorreu na modesta sinagoga de sua aldeia, Nazaré, durante o culto do shabat: "E levantou-se para ler, Foi-lhe entregue o pergaminho do profeta Isaías" (4,16-17) . O verbo usado para indicar a leitura é significativo: anaghinóskô, ou seja, um "conhecer" discursivo e subsequente (aná, "longo, entre"), um vocábulo que aparece 32 vezes no Novo Testamento. De fato, não devemos esquecer aquela o que o cristianismo chama de graphê, "Escritura" sagrada, na tradição judaica é miqra', isto é, a "Leitura" por excelência, a proclamação pública, expressa com a mesma raiz verbal que será encontrada no vocábulo árabe. "Alcorão" com idêntico significado.

Pois bem, para a pergunta óbvia “Por que ler?” , a monja da comunidade de Bose (Biella), Cecilia Falchini, dedicou um ensaio, mas de acordo com um viés requintadamente espiritual, a partir de um poema de Rabano Mauro, um monge carolíngio, bispo de Mainz, que morreu em 856. Nele se delineia uma espécie de tríade: "o esforço do escritor, a energia no salmodiar e a aplicação e o cuidado necessário para a leitura". Não esqueçamos que ainda hoje na liturgia católica o livro de textos bíblicos a serem proclamados se chama "Lecionário", assim como o antigo "Breviário" (agora "Liturgia das Horas") se abre com um "Ofício de Leitura", que é o equivalente ao "Matutino" do passado. Ora, de acordo com a autora, a leitura do texto sagrado tem como base o relacionamento com uma pessoa, Deus, que está vivo e presente no ato de ler, que se transforma assim em um diálogo. Aliás, como aconteceu com Santo Agostinho, produz efetivamente uma mudança interior, se essa experiência for vivida com fé e disponibilidade.

Portanto, não é uma leitura meramente informativa, mas performativa, precisamente por causa da dimensão relacional com Deus que ela comporta. Apenas evocamos o início da reflexão de Falchini, porque as etapas do itinerário proposto passam a ser uma espécie de programa que, a partir da necessária interação entre livro e leitura (também há o risco de uma "não leitura" porque "se pode comer a palavra de Deus, mas permanecer em jejum, permanecer com o estômago vazio") chega à meditação que inclui um arco-íris de experiências, até mesmo sombrias e de luta. Para citar novamente o Leopardi do Zibaldone (setembro de 1823), meditar é derivado do latim medeor, "curar, medicar", de modo que "meditar em algo é uma continuação do simples fato de ter ou cuidar desse algo".

Eis, então, aquela plena compreensão que se alcança através de uma leitura gradual e comunitária que leva à descoberta do sentido autêntico e profundo: não é apenas a identificação correta de um conteúdo, mas um encontro vital, é admiração, gratidão, abertura ao amor. O círculo, portanto, se parte dos olhos ou dos lábios que leem, fecha-se no coração que ama, como Santo Agostinho diz novamente: no ápice da leitura sagrada ergue-se "o edifício do duplo amor de Deus e do próximo". Muitas outras regras governam a gramática da lectio divina preparada por Cecilia Falchini, mas a estrutura fundamental é construída com base em uma leitura incessante de autores espirituais cristãos, desde os Pais da Igreja até escritores medievais, de forma que todas as páginas do ensaio são um arranjo meticuloso de citações que constituem seu metatexto. Nesse momento, poderíamos citar outro volume com um título curioso, A música, antes de tudo, empréstimo do poeta Paul Verlaine, convencido da sonoridade inerente à poesia, cuja tonalidade e ritmo podem ser descobertos apenas “executando” o texto como se fosse uma partitura musical. A leitura proclamada é, portanto, necessária para a grande poesia. A esse respeito, é esclarecedor o que Luigi Pareyson escreveu em seu conhecido ensaio sobre Verdade e Interpretação (Mursia, 1971): “A existência da obra musical não é aquela inerte e muda da partitura, mas aquela viva e sonora da execução que, no entanto, devido ao seu caráter necessariamente pessoal e, portanto, interpretativo, é sempre nova e diferente, ou seja, múltipla. Mas sua multiplicidade não compromete em nada a unicidade da obra musical. A execução não é uma cópia ou reflexo, mas a vida e a posse da obra”.

A analogia musical é adotada por um renomado estudioso bíblico belga, o jesuíta Jean-Louis Ska, para definir a coleção de leituras exegéticas mencionada acima, organizadas precisamente como uma sequência de partituras baseadas no texto bíblico e que ele tenta "executar" com suas análises de iridescências inclusive espirituais. São catorze passagens do Antigo Testamento que têm como ponto comum um retorno a estepe do Sinai com o Israel bíblico que escuta as palavras divinas proclamadas e escritas por Moisés acolhendo-as como norma de vida, selando-as com o ritual de sangue, sinal de uma comunhão vital entre Deus e o povo, desabrochada da palavra lida e ouvida (Êxodo 24,3-8).

Cecilia Falchini, Perché leggere?, Qiqajon, Bose (Biella), p. 224, € 20.
Jean-Louis Ska, La musica prima di tutto, Dehoniane, Bologna, p. 242, € 25.
Lina Bolzoni, Una meravigliosa solitudine, Einaudi, Torino, p. 254, € 3.

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