Um ritual público para elaborar o luto

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22 Abril 2020

"Em breve será necessário pensar na Itália de um rito público que una uma comunidade ferida e ajude a elaborar um luto igualmente assustador. Nossa história recente nos ensina que a ofensa à dignidade da morte mina toda a comunidade, impede o trabalho do luto, inibe a memória. A impossibilidade de elaborar o passado suspende o presente, bloqueia o futuro", escreve Donatella Di Cesare, filósofa italiana, em artigo publicado por L'Espresso, 19-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

É na noite de 18 de março que um comissário de bordo filma da varanda de sua casa um comboio de veículos militares que sai do cemitério de Bergamo para levar para outras cidades os caixões dos mortos. O crematório não consegue dar conta de tantos corpos. O vídeo causa um profundíssimo trauma na Itália. São imagens que parecem irromper da escuridão do passado da guerra, uma ferida nunca curada. E são imagens de um direito negado: o rito de despedida. As procissões tristes se repetem ao longo das autoestradas, cruzamentos, ruas periféricas, escoltadas por patrulhas policiais. Os mortos não devem perturbar a cidade dos vivos.

Mas, sob aquelas lonas de camuflagem, estão o homem da tabacaria, a professora aposentada, o padre dos pobres, o policial, o farmacêutico, a senhora do terceiro andar, um casal que morreu juntos. Pequenas, grandes histórias provinciais, subitamente extintas por uma história que nos últimos tempos adotou uma cadência apocalíptica. Tudo parece terminar assim. "O número de mortes hoje – se repete em jargão frio - não foi tão alto".

Mas as vítimas são centenas. E por trás desses números, dessas curvas, desses gráficos, há uma geração inteira que é apagada, a que construiu a Itália do pós-guerra. São os idosos ceifados pelo vírus nas "casas de repouso", aqueles grandes espaços vazios onde a velhice é estacionada, são os mais abandonados e, como sempre, os mais pobres. Eles morreram em uma solidão diferente daquela que acompanha os últimos momentos. O vírus já isola antes. Lutamos para respirar intubados, ligados a máquinas. Sem parentes, sem amigos por perto. Nem um aceno de cabeça, o simulacro de uma despedida.

Na atual cultura higienizante, a morte deve ser limpa, desinfetada e esterilizada. Portanto, é removida para os bastidores da cena pública. O fato de um vírus desconhecido estar causando isso torna ainda mais evidente. Isso é testemunhado pelas valas comuns que alguns drones descobrem aqui e ali - como em Hart Island, a sombria ilhota de Nova York.

É repugnante a modalidade do sepultamento, ferozmente asséptico, impiedosamente apressado. Incomoda o expurgo da morte da cidade. Mas se os mortos desaparecem e os corpos são tratados como resíduos contaminantes, a cidade se torna uma necrópole, um espaço asséptico e estéril de morte. Não podemos aceitar que o distanciamento resulte em um sumário isolamento das vítimas. Ainda não se fala a respeito, porque o choque é profundo, a perda enorme. Mas em breve será necessário pensar na Itália de um rito público que una uma comunidade ferida e ajude a elaborar um luto igualmente assustador. Nossa história recente nos ensina que a ofensa à dignidade da morte mina toda a comunidade, impede o trabalho do luto, inibe a memória. A impossibilidade de elaborar o passado suspende o presente, bloqueia o futuro. Os gestos individuais de despedida, os ritos coletivos da perda são, portanto, indispensáveis.

Se a morte é irreversível, no entanto, ela não se esgota na negatividade. Mesmo para os não crentes, é uma tarefa o resgate da morte alheia. Aqueles que sobrevivem são chamados a responder - têm uma responsabilidade que vai além da culpa que os atormenta, além da obrigação à deferência. Com a morte do outro, termina também aquele seu mundo único, insubstituível - que também era um pouco meu, que também era um pouco o nosso. Quem fica está mais sozinho, mas também mais pobre de mundo. O compromisso de luto é trazer consigo o outro e o mundo do outro. Nossos anciãos, nosso mundo, nossa memória se foram. A Itália não será mais a mesma de antes. E será pior, se não os prantearmos juntos em breve.

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