Em louvor às burocracias: no governo e na Igreja

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16 Abril 2020

A única coisa que se mantém de pé entre as pessoas deste planeta e uma catástrofe ainda pior do que a que estamos enfrentando são as instituições e as burocracias, que não desfrutavam de uma boa imagem antes do vírus. Como Dana Milbank demonstrou no The Washington Post, o vírus eclodiu no fim de quatro décadas que foram muito definidas politicamente por um desejo de encolher o governo e cortar seu orçamento, na esperança de que os mercados preencheriam o espaço vago.

O comentário é de Michael Sean Winters, publicado em National Catholic Reporter, 15-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A apoteose da ideologia libertária antigoverno nas narrativas de Milbank foi o movimento Tea Party, cujo ethos foi resumido pelo ativista antitributário e fazedor de reis do Partido Republicano, Grover Norquist, que disse: “Eu não quero abolir o governo. Eu simplesmente quero reduzi-lo ao tamanho em que eu possa arrastá-lo para o banheiro e afogá-lo na banheira”.

Essa foi uma declaração mais agressiva da piada de Ronald Reagan: “As nove palavras mais aterradoras da língua inglesa são: “Eu sou do governo e estou aqui para ajudar”. Esse ponto de vista havia adquirido uma grande quantidade de darwinismo social ao longo do caminho e foi fortalecido em termos de números, mas não de vigor moral, quando se alinhou ao racismo nos anos de Obama.

Dizem que os vícios, assim como as virtudes, tendem a se unir; portanto, não deveria surpreender que essa ideologia antigoverno tenha encontrado uma forma de se alinhar com o presidente Donald Trump, um homem sem qualquer ideologia conhecida.

Sob a tutela de Steve Bannon, Trump deu voz ao populismo “exploda-se tudo” que estava se formando em todo o país. Ao racismo do Tea Party, ele acrescentou a xenofobia e o mantra do movimento “America First”. E Trump acrescentou seu próprio narcisismo a essa mistura, diminuindo a ideologia, mas fortalecendo o movimento político com uma devoção fascista ao caudilho. Quem mais discutiria os índices de audiência da TV das suas coletivas de imprensa enquanto as pessoas estão morrendo?

Daí a humilhação dos repórteres que fazem perguntas importantes e a preocupação com a aparência sobre a substância que resultaram em uma resposta nacional atrasada à ameaça, o esforço para culpar a China, o questionamento contínuo do “estado profundo”, a sugestão de que o governo federal não ajudará Estados cujos governadores são insuficientemente servis a ele.

Se algo está claramente óbvio nestes dias sombrios do coronavírus, é o valor das instituições. Onde estaríamos sem os Centros de Controle de Doenças e o Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas? Onde estaríamos sem o seguro-desemprego, administrado pelas burocracias do governo estatal? Onde estaríamos sem os burocratas da Administração de Pequenas Empresas que estão implementando aqueles milhões de dólares em empréstimos para empresas de todo o país, para que elas continuem evitando dispensar temporariamente ainda mais milhões de pessoas? Onde estaríamos sem o Serviço Postal dos EUA, cujos destemidos funcionários continuam fazendo seu trabalho enquanto o restante de nós se protege em casa?

O valor das instituições e das burocracias não se limita ao setor governamental. O seguro-desemprego foi promulgado pela primeira vez em Wisconsin em 1932, e a Lei de Seguridade Social de 1935 incentivou outros Estados a seguirem o exemplo, mas foi proposta em 1919 pela nascente Conferência dos Bispos dos EUA.

Apesar de todas as minhas divergências com a Conferência dos Bispos, das quais não retiro nenhuma, sua equipe tem desempenhado um papel crucial para evitar os cortes no vale-refeição, na preservação da Affordable Care Act e no apoio a uma vasta gama de esforços de combate à pobreza durante esses 40 anos de fervor antigoverno.

Nossos hospitais e asilos católicos estão na linha de frente da luta contra o coronavírus. Nossas despensas paroquiais estão ajudando aqueles que perderam seus empregos. A Catholic Charities, em nível nacional e local, está profundamente envolvida em quase todos os aspectos dessa crise nacional, e a Catholic Relief Services estão trabalhando para ajudar as pessoas em todo o mundo para as quais o vírus é apenas a mais recente de muitos flagelos. O Jubilee USA está pressionando pelo alívio da dívida para os países em desenvolvimento, e qualquer pessoa familiarizada com as tentativas de ajudar as pessoas que sofrem em Porto Rico sabe que o Jubilee USA tem estado na vanguarda dessa luta.

Então, com isso em mente, fiquei horrorizado com um artigo publicado aqui no NCR na semana passada, escrito por Mary Hunt. Ela também trouxe suas viseiras ideológicas para a discussão: em nenhum momento ela expressou qualquer empatia por aqueles que sofrem, mas, em vez disso, mal pôde conter sua empolgação com o fato de que essa pandemia possa promover sua agenda ideológica, que chegou muito antes. Ela dá as boas-vindas às liturgias caseiras nas quais não há “nenhum padre à vista”, escrevendo: “Isso é mudança, progresso”. Se ao menos o vírus tivesse chegado antes!

Trazendo todo o cuidado de um incendiário às nossas mais veneráveis tradições e crenças católicas, ela opina que “uma reavaliação geral da Eucaristia é tudo o que impede que esses grupos e muitas outras comunidades religiosas locais se envolvam na celebração costumeira da Comunhão”. Exceto que isso não é habitual, não é? E como a Eucaristia, que é um dom de Deus para toda a Igreja, pode ser submetida a qualquer “reavaliação geral” e por quem?

Os “grupos de mulheres da Igreja e outras comunidades eucarísticas intencionais” que Hunt celebra poderão preencher o espaço vago se a tão maligna “Igreja institucional” for incapaz disso? Tenho certeza de que eles são tão capazes de generosidade quanto qualquer outra pessoa, mas, se você leva a sério amar os outros em uma sociedade complexa, você precisa pensar em construir instituições para isso. “Aqueles que amam a paz devem aprender a se organizar tão efetivamente quanto aqueles que amam a guerra”, disse o Rev. Dr. Martin Luther King Jr.

Eu também noto que duas das instituições mais importantes da nossa Igreja institucional neste momento, a Catholic Health Association e a Catholic Charities USA, são lideradas por religiosas altamente competentes. Agradeço a Deus pela Ir. Mary Haddad, das Irmãs da Misericórdia, e pela irmã dominicana Donna Markham e pelas instituições que elas lideram. Sim, eu gostaria de ver mulheres em mais cargos de liderança na Igreja, mas são essas mulheres altamente competentes que tornarão mais provável essa esperança, e não quaisquer falações teológicas que estão tão longe da nossa tradição teológica católica e são automarginalizantes.

Hunt não fornece dados de pesquisa para sustentar a sua conclusão abrangente de que a mudança está próxima e será semelhante àquilo que ela deseja. Não há nenhuma analogia histórica, nem modelagem sociológica. A maior dificuldade, no entanto, é moral: qual é a diferença moral entre Trump ignorar o sofrimento de milhões de pessoas para divulgar seus índices de audiência e a visão de Hunt sobre a epidemia como um mero pretexto para a implementação da sua visão eclesial?

Estou sendo muito duro? É verdade que a consequência dos fracassos de Trump será medida sobre as milhares de vidas a mais que serão perdidas. Mas o custo dos fracassos de Hunt é a automarginalização dos católicos progressistas em um tempo em que tanto o país quanto a Igreja precisam das intuições e da visão dos católicos progressistas.

Se é demais exigir rigor intelectual e moral de porta-vozes proeminentes, então merecemos ser marginalizados. A distinção entre ver a pandemia como uma oportunidade para fazer avançar uma agenda ideológica anterior e reconhecer que nossos compromissos morais e intelectuais podem ajudar a aliviar o sofrimento e a reconstruir uma sociedade mais justa e mais segura da pandemia não é uma distinção pequena. Ninguém sugeriria que as instituições estão acima da crítica.

No entanto, em todo o mundo nestes dias sombrios, as pessoas necessitadas estão recorrendo às instituições do governo e da Igreja para ajudá-las nessa crise. É moralmente irresponsável difamar as instituições ou transformar esta tragédia em um veículo para uma agenda ideológica, independentemente de quem o faça.

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